24/04/2024 - Edição 540

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Justiça do RJ condena à prisão 23 participantes de protestos em 2013 e 2014

Publicado em 20/07/2018 12:00 -

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A Justiça do Rio de Janeiro condenou 23 manifestantes que participaram de protestos em 2013 e 2014 à prisão por crimes como formação de quadrilha, dano qualificado, lesão corporal e corrupção de menores. O juiz Flavio Itabaiana decretou penas entre 5 e 7 anos de detenção em regime fechado. A decisão foi em primeira instância e o juiz não decretou prisão preventiva, portanto todos os condenados poderão recorrer em liberdade. A íntegra da sentença pode ser conferida aqui.

“Eu ainda estou em choque com tudo isso. A minha mãe está passando mal e eu nem consegui apoiá-la. A notícia toda é um grande absurdo e eu só consigo pensar o que vai ser da minha vida”, desabafou uma das condenadas, Eloisa Samy Santiago, que, em breve, completará 50 anos. “Nós vamos recorrer, meu advogado já disse que há uma série de irregularidades e brechas na sentença para recurso”, explica.

Eloisa considerou toda a sentença absurda e, principalmente, a imputação de formação de quadrilha (artigo 288). “Grande parte daquelas pessoas eu mal conhecia. Com alguns deles tive um contato eventual, mas não eram amigos do meu convívio. Tudo isso é um absurdo desde o começo”, afirma.

Indignada, Eloisa critica também a condenação pelo crime de “corrupção de menores”, que diz respeito a presença de dois menores que teriam algum relacionamento com o “grupo dos 23”. Um desses adolescentes, na época menor de idade e hoje com 22 anos, é filho adotivo de Eloisa. “Eu adotei esse menino. Corrupção de menores porque eu adotei um menino abandonado. Eu pedi guarda provisória dele no carnaval de 2014. E agora diz que ele estaria envolvido nas manifestações. Pegaram dois menores para dizer que houve corrupção. Um deles que eu pedi guarda judicial”, emociona-se, ao falar do filho.

Outra da lista dos 23 condenados é Elisa Quadros Pinto Sanzi, a Sininho. Na decisão, o juiz recupera denúncia do Ministério Público Estadual em que Sininho teria sido apontada por testemunhas como principal articuladora de ações entre os anos de 2013 e 2014 e que teria exercido um papel de liderança no episódio do Ocupa Câmara, incitando e orientando outros manifestantes a pegarem gasolina para atear fogo no prédio.

Caio Silva de Souza e Fábio Raposo, que respondem em liberdade pela morte do cinegrafista Santiago Andrade, em 2014, atingido por um rojão, também foram condenados a 7 anos de prisão. Os outros condenados são: Luiz Carlos Rendeiro Júnior, Karlayne Moraes da Silva Pinheiro, Igor Mendes da Silva, Camila Aparecida Rodrigues Jordan, Igor Pereira D’Icarahy, Leonardo Fortini Baroni, Emerson Raphael Oliveira da Fonseca, Rafael Rêgo Barros Caruso, Filipe Proença de Carvalho Moraes, Pedro Guilherme Mascarenhas Freire, Felipe Frieb de Carvalho, Pedro Brandão Maia, Bruno de Sousa Vieira Machado, André de Castro Sanchez Basseres, Joseane Maria Araújo de Freitas, Rebeca Martins de Souza – todos esses a 7 anos de prisão – e Gabriel das Silva Marinho, Drean Moraes de Moura e Shirlene Feitoza da Fonseca, condenados a 5 anos e 10 meses de prisão.

Em um dos trechos, o juiz Flavio Itabaiana faz alusão ao protesto que ficou conhecido como Ocupa Cabral, contra a gestão do então governador do Rio, Sérgio Cabral, e afirma que “é inacreditável o então governador e sua família terem ficado com o direito de ir e vir restringido”. Em outro momento, o magistrado afirma que é possível observar desrespeito ao legislativo por causa do movimento “Ocupa Câmara”. O juiz também considerou que muitos dos réus têm “personalidade distorcida” e chamou o grupo de “associação criminosa armada com participação de menores”.

Decisão Nebulosa

Para o cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Paulo Baía, a condenação dos ativistas é nebulosa. Segundo ele, a decisão, além de ferir o direito à manifestação, é originária de uma reação violenta do Estado contra o movimento da época. “O fato acontece cinco anos depois. Na época, houve uma repressão brutal do governador Sérgio Cabral aos manifestantes de 2013 e 2014. Sobre os ativistas, é uma decisão judicial obscura. A denúncia contra o movimento Ocupa Câmara é nebulosa demais e o inquérito foi sujeito a paixões políticas”, diz o professor.

Em seu Facebook, a filosofa e comunicadora Ivana Bentes também criticou a decisão. Para ela, este caso, somado às prisões de Rafael Braga e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, configura a “tragédia completa de uma justiça injusta, de um quadro de anomia e de doença social”.

Ela lembra que os acusados anunciaram a crise econômica e política do Rio de Janeiro, após as denúncias de corrupção envolvendo o ex-governador Cabral. “Querem condenar e prender os anunciadores da crise de um velho mundo, que anunciaram também as saídas e outros horizontes. Quem estava nas ruas em 2013 sabe que essa sentença e essa justiça é uma fraude”, afirma Ivana.

Ao Consultor Jurídico, o jurista e professor Lenio Streck comparou o caso com o filme Minority Report, em que um sistema detectava que as pessoas cometeriam um crime e eram presas antes do delito. “Se a moda pega, vamos prender as crianças, porque no futuro cometerão crimes. Ou algo desse quilate. Pergunto: a teoria do Direito Penal tem alguma chance diante desse quadro? Chamemos Spielberg, porque parece que não mais precisamos de juristas, mas, sim, de diretores. Para dirigir essa imensa ficção que é o Brasil”, criticou.

"Aqueles que levantarem a voz para esse Estado policial e fascista que se instalou no nosso país estarão sujeitos a esse tipo de consequências", disse o advogado popular Marino D'Icarahy, que representa 11 dos 23 acusados.

Mariana Rielli é assistente jurídica da organização Artigo 19, organização que monitora os processos de repressão e criminalização do direito de protesto. Ela afirma que o caso é emblemático e contém uma série de ilegalidades.

"O tipo de indícios que foi utilizado no processo, como as orientações políticas dos manifestantes; as ligações pessoais entre os manifestantes; esse tipo de informação estar presente nos autos da investigação é uma coisa que foi muito marcante nesse período", disse.

A advogada considera a sentença genérica, assim como a investigação. "Ela fala dessas evidências de interceptações telefônicas que apenas indicam que as pessoas estavam se organizando para se manifestar e não se organizando para cometer crime", pontuou.

O advogado Marino D'Icarahy se preocupa com o precedente da decisão. "Ela pode servir de modelo para criminalizar todo mundo que promove luta por direitos. Ela é um atentado contra o livre direito de opinião, de expressão, de manifestação, de rebelião, de revolução".

Para Rielli, um paradigma perigoso já foi aberto. Ela lembra do episódio em que 18 jovens foram detidos, em 2016, antes de um protesto contra o impeachment de Dilma Rousseff em São Paulo. O grupo foi levado por Policiais Militares para averiguação, semelhante ao caso ocorrido no Rio de Janeiro.

"Eles também estão sendo, atualmente, processados por associação criminosa e por corrupção criminosa, que são os crimes pelos quais os 23 do Rio de Janeiro foram condenados. Então é muito preocupante, porque tem esse outro processo que está correndo e os processos de criminalização seguem muito presentes. Esse caso, com certeza, pode gerar consequências para corroborar esse cenário mais amplo", compara.

Reação

Defensores e entidades de direitos humanos criticaram a sentença do juiz Flavio Itabaiana. O entendimento é que a decisão restringe o direito de protesto, além de não apontar provas por atos supostamente praticados pelos réus. As penas vão de 5 a 7 anos de prisão, em sua maioria por formação de quadrilha e corrupção de menores.

Diante da notícia, parte dos 23 condenados, além de familiares e apoiadores, se reuniram para traçar estratégias de uma campanha de repúdio à condenação. Na ocasião, foi definido o relançamento da campanha “Não é só pelos 23, é por todos que lutam”, prevista para a próxima terça-feira (24), no IFSC (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ), às 18h. O grupo acredita que a sentença abre um precedente que poderá permitir que muitas outras pessoas sejam condenadas e que há risco de que uma “caça às bruxas” entre em curso em plena intervenção federal.

Um dos responsáveis pela defesa de Caio Silva de Souza, condenado a cumprir 7 anos de prisão em regime fechado, o advogado Antonio Pedro Melchior recebeu com surpresa a decisão. Segundo ele, o MP (Ministério Público) pediu a “absolvição por ausência absoluta de provas” quanto a ligação de Caio com os demais denunciados. Para ele, Itabaiana “converteu nada em uma condenação”. Ao lado de Fábio Raposo, também condenado, Caio em liberdade pelo homicídio culposo do cinegrafista Santiago Andrade, morto em 2014 depois de ser atingido por um rojão.

“Nenhum acusado disse conhecê-lo, tampouco as testemunhas. A sentença não cita nada, em termos de depoimento, e não diz nada a respeito desta inserção em alguma organização. Na sentença condenatória, o juiz não cita testemunha, nem depoimento. Só faz referência a declarações do próprio réu”, sustenta Melchior.

O sentimento de estranhamento citado pelo advogado quanto a condenação é visto como ‘natural’ por quem acompanhava o desenrolar do processo. A decisão é definida como temerária por entidades de direitos humanos e garantia de direitos, entre eles o de manifestação. Para Mariana Rielli, advogada da Artigo 19, uma série de arbitrariedades foram feitas até chegar à condenação.

“Não há evidências que caracterizam os crimes que os 23 foram acusados e condenados. Desde 2014, na detenção por 5 dias, e o seu desenrolar, acompanhamos com muita preocupação. Este é um exemplo emblemático do processo de criminalização do direito de se manifestar”, analisa, comparando com o caso de jovens presos em SP, em que o espião do Exército de codinome Balta, o agora major Willian Pina Botelho, se infiltrou no grupo de manifestantes e foi responsável pela detenção deles antes mesmo que o protesto começasse, no dia 4 de setembro de 2014.

“É semelhante à prisão de 18 manifestantes no CCSP (Centro Cultural São Paulo) e pelos mesmos crimes: associação criminosa e corrupção de melhores. Há similaridade, pois em ambos se tenta criar um link entre as pessoas com bases frágeis. Têm pessoas que nem sequer se conheciam, se conheceram na cadeia. A tentativa é de demonstrar um link pela participação política”, continua.

Outra entidade internacional de direitos humanos, a Justiça Global avaliou a condenação como “um triste capítulo de criminalização dos movimentos sociais e da luta popular”. “A condenação insere-se em um contexto de recrudescimento da repressão a ativistas e manifestações populares, a partir de junho de 2013. Nas páginas do processo judicial, a ponta da caneta que decide reencontra a ponta da arma que dispara contra a justa indignação popular”, critica o grupo.

Na decisão, o juiz Flavio Itabaiana citou que um dos atos era “inacreditável” pois o “o então governador e sua família terem ficado com o direito de ir e vir restringido”, em referência à Sérgio Cabral e os atos Ocupa Cabral. Em 2017, o ex-governador do RJ foi condenado por corrupção passiva, recebimento de vantagem indevida e lavagem de dinheiro em uma ação da Operação Lava Jato. A pena de 14 anos e 2 meses de prisão foi somada a um total de quase 100 anos de prisão em outros processos. Sérgio Cabral está atualmente preso.

Os 23 condenados no Rio de Janeiro podem recorrer à sentença em liberdade. Um habeas corpus que questiona as provas ilícitas produzidas por um infiltrado, que também atuou como testemunha de acusação, está com análise pendente no Supremo Tribunal Federal (STF).


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