25/04/2024 - Edição 540

Especial

Mais comum do que você pensa

Publicado em 03/07/2018 12:00 -

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Você tem medo de avião? Muita gente tem, ao menos um pouquinho. Mas não deveria: as estatísticas mostram que, ao embarcar num avião, a sua chance de morrer é de apenas uma em 10 milhões.

E de hospital, você tem medo? A maioria das pessoas não tem, pois acha que nada de errado acontecerá. Só que acontece: segundo a Organização Mundial da Saúde, um em cada 300 pacientes morre por consequência de erros médicos.

Ou seja, pegar um avião é 33 mil vezes mais seguro do que ser internado. Um estudo da Universidade Johns Hopkins constatou que o erro médico mata 251 mil pessoas por ano nos EUA (onde ele é a terceira maior causa de morte, só perdendo para infarto e câncer). É como se, todo santo dia, caíssem dois Boeings 747, sem deixar nenhum sobrevivente. No Brasil, o cenário pode ser ainda pior. Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (Iess) estimou que, em 2015, 434 mil brasileiros tenham morrido devido a erros no atendimento médico – que são a maior causa de óbito no País. Outra pesquisa, também feita em 2015, chegou a um número menor: 104 mil mortes anuais. Mas ela é focada em hospitais particulares. O número maior, infelizmente, é o mais preciso.

Esses dados são estimativas, ou seja, os pesquisadores analisam uma amostra de casos, calculam o percentual de erros e extrapolam para o total de pacientes atendidos em cada país.

Mas as estatísticas são consistentes: vários estudos, em vários lugares do mundo, costumam chegar a índices parecidos. Erro médico é um problema gigantesco, e que não recebe a devida atenção (se dois Boeings 747 despencassem a cada dia, a aviação já teria sido profundamente reformulada). Mas como ele pode ser tão comum, se os médicos recebem uma formação tão rigorosa e têm acesso a ferramentas tão avançadas? O primeiro passo para encontrar a resposta é mais simples do que parece: está na própria definição de erro médico.

Principais causas de morte por ano

Explosão de médicos

Quando uma pessoa morre, o motivo é registrado no atestado de óbito. Mas “erro médico” não está na lista oficial de possíveis causas de morte, o que dificulta bastante sua identificação. O estudo da Universidade Johns Hopkins cita o caso de uma mulher jovem que passou por um transplante (a pesquisa não diz de qual órgão).

Ela teve alta, mas algum tempo depois voltou se queixando de dores. Foi submetida a uma bateria de exames e procedimentos, incluindo alguns desnecessários – como a pericardiocentese, em que o médico extrai líquido do pericárdio, a membrana que envolve o coração, usando uma agulha. Não era indicado para o caso dela, e acabou mal: por um deslize do cirurgião, a agulha perfurou o fígado e a moça morreu. Erro médico. Mas a causa mortis foi registrada como problema cardiovascular.

Esse exemplo ilustra um problema central: como o erro médico não costuma ser declarado, ele é muito mais difícil de identificar, estudar – e combater. Uma enfermeira que trabalha em São Paulo, e que conversou com a reportagem na condição de anonimato, conta ter presenciado diversas situações do tipo. “Já vi médico falhar em exame e não admitir para a família [do paciente], com medo de punição”, conta. Certa vez, trabalhando na UTI de um hospital paulistano, ela assistiu a uma mulher de 35 anos dar entrada com dores abdominais, ser submetida a um exame exploratório agressivo, perder um bebê no processo (estava grávida de dois meses) e ser enviada para a UTI. A paciente faleceu horas depois, e por um motivo absurdo. “Os médicos tinham deixado uma pinça grande dentro dela”, diz a enfermeira. “Ela já tinha sofrido duas paradas cardiorrespiratórias durante o exame, não resistiria a ser aberta novamente para a retirada da pinça. Depois que ela morreu, o pessoal do centro cirúrgico foi até a UTI, abriu o corpo dela e retirou a pinça, antes que a necrópsia identificasse o erro.”

“A formação deficiente e a falta de estrutura, sobretudo no serviço público, são as principais causas de erro. Infelizmente, hoje o médico sai da faculdade sem conhecimento suficiente para exercer a profissão”, afirma Fernando Maia Vinagre, corregedor do Conselho Federal de Medicina. Segundo ele, isso acontece porque, nos últimos anos, ocorreu um aumento descontrolado no número de cursos de Medicina no Brasil. Em 2017, havia 189 deles no País, mais do que nos Estados Unidos (que têm 125) e na China (150). Mais de 30% deles foram criados a partir de 2013, quando o Ministério da Educação flexibilizou as regras para a abertura de faculdades de Medicina. A intenção era aumentar o número de médicos no Brasil, o que de fato aconteceu: de lá para cá, a quantidade de profissionais formados por ano subiu de 17 mil para 30 mil. Mas não houve um controle rígido sobre a qualidade desses novos cursos – e, portanto, dos médicos que eles produzem. Em abril deste ano, o governo federal finalmente reagiu, suspendendo a abertura de cursos de Medicina até 2023. Isso evita que a situação piore, mas não resolve o problema das faculdades que já foram abertas.

Uma possível solução é criar um exame profissional, como o que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) impõe aos formandos em Direito. Em São Paulo, Goiás e Rondônia, os médicos recém-formados já têm de passar por um teste. A prova paulista, que é aplicada pelo Conselho Regional de Medicina, é composta por 120 questões de múltipla escolha, que abordam nove temas: Clínica Médica, Clínica Cirúrgica, Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia, Saúde Pública, Epidemiologia, Saúde Mental, Bioética e Ciências Básicas. Ela existe há bastante tempo – e é considerada rigorosa. “Aplicamos o exame desde 2005. Historicamente, o número de aprovados fica abaixo de 50%”, diz Renato Françoso, vice-presidente do CRM-SP.

O problema é que, mesmo se for reprovado, o profissional pode atuar como médico (o que não acontece, por exemplo, com os formados em Direito que não passam na OAB). “A criação de um mecanismo semelhante a nível nacional, com caráter obrigatório, vai requerer uma mudança legislativa”, explica Fernando Vinagre, do Conselho Federal de Medicina. Desde 2015 tramita no Senado, sem previsão de votação, um projeto do tipo.

Outro elemento é a carga de trabalho excessiva. “A média de atendimento em um ambulatório é de 16 a 20 pessoas, por médico, a cada duas horas, porque o profissional precisa fazer muitas consultas para receber um ganho condizente”, afirma Fernando Polastro, membro da Associação Brasileira de Apoio às Vítimas de Erro Médico (Abravem). Isso é especialmente grave nos hospitais conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS), que atende à maior parte da população – e paga apenas R$ 12 por consulta.

Mas isso não explica tudo. Afinal, nos Estados Unidos os médicos são bem formados e remunerados, e mesmo assim as estatísticas de erro são altíssimas. Há outro fator em jogo. E ele não tem a ver com a falta de formação ou dinheiro. É o contrário.

A era da hipermedicina

Erro médico nem sempre é mortal. Se você for vítima de um, provavelmente não vai morrer. Essa é a boa notícia. A má notícia é que os equívocos não letais são incrivelmente comuns – segundo a OMS, um em cada dez pacientes acaba sendo vítima de algum erro. Os erros são classificados em cinco categorias: diagnóstico errado ou tardio; excesso de exames, ou má interpretação deles; medicamentos errados ou em dosagens/combinações impróprias; cirurgias desnecessárias ou realizadas com imperícia; desatenção a informações básicas, como conferir o tipo sanguíneo ou possíveis alergias do paciente.

Todas essas coisas têm uma raiz em comum: estão ligadas ao mau uso das ferramentas da medicina. “O problema envolve hospitais e laboratórios sobrecarregados, custos cada vez mais altos e o aumento do número de procedimentos, muitos deles desnecessários, e de especializações”, afirma o médico Milos Jenicek, autor do livro Medical Error and Harm (“Erro Médico e Danos”, ainda não lançado em português).

Recentemente, o médico Drauzio Varella escreveu sobre isso no jornal Folha de S.Paulo: “Para solicitar ultrassom ou tomografia para alguém que se queixa de dores abdominais, basta preencher o pedido. Dá menos trabalho do que avaliar as características e a intensidade da dor, os fatores de melhora e piora, e palpar o abdômen com atenção”. O problema, observou Drauzio, é que, na maioria dos casos, aquele exame só será feito semanas (ou meses) depois, quando o quadro do paciente poderá ter mudado. E, quando finalmente for realizado, tomará o lugar de outra pessoa, que talvez precisasse do exame com mais urgência.

O uso exagerado de remédios é outra tendência clara. Metade das cirurgias realizadas nos Estados Unidos tem algum “evento adverso” relacionado ao mau uso de medicação. Essa é a conclusão de médicos do Massachusetts General Hospital, que analisaram 277 operações, nas quais houve 3.671 aplicações de medicamentos, incluindo o pré e o pós-operatório. Quase metade das reações adversas era perigosa, com risco de danos à saúde do paciente. E 80% delas poderiam ter sido evitadas.

Nem todo mundo corre o mesmo risco. A idade de cada pessoa e a especialidade médica envolvida também influenciam. O estudo da UFMG identificou que boa parte das vítimas de erro médico tem menos de 28 dias ou mais de 65 anos de vida. “As especialidades mais acionadas na Justiça são a obstetrícia, por problemas durante os partos, e, em segundo lugar, a pediatria”, afirma Fernando Polastro, da Abravem, que também destaca as queixas envolvendo anestesiologia, ortopedia e cirurgia plástica. A associação surgiu em 2011, e acompanhou mais de cem casos desde então. “Começamos com uma conversa informal entre amigos, médicos e advogados, e percebemos que todos ali tinham um caso de erro na família”, diz Polastro. Hoje a entidade tem um corpo médico, com 15 profissionais de saúde que atuam verificando os casos, e um corpo jurídico, também com 15 advogados, que auxilia as vítimas a entrar na Justiça. Todos são voluntários.

Em São Paulo, o Conselho Regional de Medicina recebe cerca de 500 denúncias por mês. Desse total, 15%, em média, viram processo. “Nos outros casos, o conselho [geralmente] define que a denúncia não procede”, afirma o vice-presidente do CRM-SP, Renato Françoso. Metade dos casos investigados termina em condenação, com penas que variam de uma advertência ao banimento da profissão. “Se o médico for considerado culpado, ele pode sofrer advertência, ser suspenso ou cassado”, diz Fernando Vinagre, do Conselho Federal de Medicina. Mas isso é raro. Em 2017, apenas 11 licenças médicas foram cassadas no Brasil, e a média anual é essa mesmo (entre janeiro de 2008 e maio de 2018, 106 profissionais perderam o direito de atuar).

Quando o incidente envolve enfermeiros, outro órgão responde pela apuração e pela punição. “As denúncias são recebidas e averiguadas pelo Conselho Regional de Enfermagem, que realiza o julgamento em primeira instância”, afirma Manoel Neri, presidente de outro conselho de enfermagem, o Federal (Cofen). “Já o Cofen funciona como órgão recursal dos julgamentos realizados pelos conselhos regionais.” Entre as punições previstas estão advertência verbal, multa, “censura [reprimenda] divulgada em jornais de grande circulação”, suspensão por até 90 dias e cassação da profissão. Em 2017, o órgão nacional julgou 83 denúncias e processos éticos contra enfermeiros, sendo que 24 profissionais foram condenados – cinco deles tiveram o registro cassado.

Por que tão poucas denúncias e tão raras cassações? O problema, em parte, é que os próprios pacientes têm dificuldade em questionar a atuação dos médicos – num estádio de futebol, a pessoa pode xingar os jogadores do time ou as escolhas do técnico, mas no consultório a norma é adotar uma postura submissa. “As pessoas, em geral, são acostumadas a colocar os profissionais de medicina sobre um pedestal, e têm muita vergonha de tirar dúvidas e denunciar condutas e procedimentos”, diz Fernando Polastro. Mesmo nos casos de erro médico grave, a maioria das vítimas não processa ninguém. E, quando o faz, encontra grandes dificuldades – a começar pela comprovação do erro, o que tem de ser feito com uma perícia médica independente. “Eu não consigo encontrar um médico que concorde em fazer um laudo que possa prejudicar um colega”, diz o eletricista Rudenisson Moura, 37 anos, que deu entrada no hospital com uma luxação e acabou tendo a perna esquerda amputada. “Alguns chegam a olhar para minha documentação, concordam que houve erro, mas não assinam nenhum tipo de documento atestando a falha.”

Dá para se proteger contra erro médico? “Sempre que forem fazer qualquer procedimento, confiram antes o histórico do profissional na plataforma do Conselho Federal de Medicina”, diz a artista plástica Emilia Alencar, vítima de erro numa abdominoplastia. Basta entrar em portal.cfm.org.br, clicar em Cidadão/Busca por médico, e aí conferir se o profissional de fato possui as especializações que afirma ter, e se já foi alvo de algum tipo de denúncia. Isso ajuda a reduzir o risco de ter algum problema – e, de quebra, deixa o paciente tranquilo, o que é fundamental para o sucesso de qualquer procedimento.

Erro médico não é terrível só para a vítima; também tem forte impacto sobre os profissionais envolvidos. “De maneira geral, os médicos têm dificuldade em lidar com a situação”, diz o psicólogo Vitor Mendonça, pós-doutor pela Escola de Medicina da Universidade de Washington e pesquisador na Faculdade de Medicina da USP, onde estuda o tema. “A formação médica no Brasil ainda é pautada, na grande maioria dos casos, pela ideia de que os futuros médicos devem estar certos sempre. Eventuais falhas são praticamente ignoradas”, afirma.

A responsabilidade absoluta pela vida alheia, a falta de preparo para lidar com os possíveis (e, em certo grau, inevitáveis) erros e a carga de trabalho desmedida formam uma combinação tóxica que coloca enorme pressão sobre os médicos. Alguns reagem a isso escondendo informações. Uma pesquisa de 2012 feita pela Harvard Medical School, em que 1.891 médicos responderam a um questionário de forma anônima, revelou que 19,9% deles já haviam omitido informações dos pacientes, e 11% tinham mentido. A grande maioria não faz isso, mas pode acabar se voltando contra si mesma: entre os médicos dos EUA, o índice de abuso de álcool é o dobro da população em geral – e a taxa de suicídios é 70% acima da média.

“O erro médico geralmente é um marco na vida do paciente. Traz raiva, desconfiança e dúvidas que prejudicam a saúde emocional de qualquer ser humano”, afirma Mendonça, da USP. Mas ele conta que, em muitos dos casos que estudou, tudo o que as famílias das vítimas queriam ouvir era um pedido de desculpas. E isso às vezes acontece. “Eu já vi médico errar numa endoscopia, ser transparente com a família, e as pessoas entenderem”, conta a enfermeira do começo desta reportagem, que pediu para ter a identidade preservada.

Em quase todas as outras profissões, é possível corrigir um erro antes que alguém se machuque. Na medicina, é diferente.

Por isso, os próprios pacientes acabam se esquecendo de uma verdade essencial: os médicos são pessoas comuns, não deuses infalíveis. Como disse Hipócrates, o pai da ciência médica, na Grécia Antiga: “Onde houver amor pela arte da medicina, também haverá amor pela humanidade”. Ele está dizendo que os médicos não devem apenas se basear na técnica; também precisam dar atenção às pessoas que estão tratando. E que a medicina faz parte da sociedade, ou seja, é exercida por seres humanos – que, como todos os outros, podem (e, cedo ou tarde, vão) acabar errando.

Falta qualidade mundo afora

A baixa qualidade dos serviços prestados está retendo avanços e melhorias na saúde em países de todos os tipos de renda, segundo relatório divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pelo Banco Mundial e pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OECD, na sigla em inglês) no último dia 5.

Diagnósticos imprecisos, erros médicos, tratamentos inapropriados ou desnecessários, uso inadequado e pouco seguro de instalações clínicas e profissionais sem treinamento adequado e com pouco conhecimento prevalecem em todos países, alertou a OMS, por meio de comunicado.

A situação, segundo a entidade, é pior em países de baixa e média renda, onde 10% dos pacientes hospitalizados correm risco de adquirir algum tipo de infecção durante o período de internação, comparado a 7% em países de alta renda. A OMS lembra que infecções hospitalares podem ser facilmente prevenidas por meio de melhorias na higiene, do controle de práticas hospitalares e do uso correto de antibióticos.

O relatório destaca também que um em cada dez pacientes apresenta algum tipo de ferimento durante atendimento médico prestado em países de alta renda. “Doenças associadas a cuidados de saúde de baixa qualidade impõem despesas adicionais às famílias e aos sistemas de saúde”, reforçou a OMS.

Ainda de acordo com o documento, profissionais de saúde de sete países africanos de baixa e média renda só conseguiram fazer diagnóstico adequado entre 33% e 75% dos casos, enquanto diretrizes clínicas para situações comuns e de pouca complexidade foram seguidas em menos de 45% do tempo, em média.  

Além disso, cerca de 15% dos gastos hospitalares em países de alta renda se devem a erros no atendimento ou a pacientes infectados enquanto recebem cuidados em unidades de saúde.

A OMS lembrou, entretanto, que foram registrados alguns avanços – por exemplo, nas taxas de sobrevivência ao câncer e a doenças cardiovasculares. Mesmo assim, segundo a entidade, os custos econômicos e sociais provocados pelo atendimento de baixa qualidade, incluindo incapacidades de longo prazo, prejuízo e perda de produtividade, são estimados em trilhões de dólares todos os anos.

“Estamos comprometidos em garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam ter acesso a serviços de saúde quando e onde precisam”, disse o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus. “Estamos igualmente comprometidos em garantir que esses serviços sejam de boa qualidade. Honestamente, não há como ter cobertura universal em saúde sem cuidados de qualidade”, concluiu.

A seguir, leia cinco casos impressionantes de erros em hospitais, contados pelas próprias vítimas (depoimentos ao jornalista Tiago Cordeiro)

Torci o joelho. E minha perna foi amputada.

Rudenisson Moura, 37 anos, eletricista, Rio Largo (AL)

“Eu tinha 34 anos, era estudante de Educação Física e tinha uma academia. Durante um treino de jiu-jitsu, sofri uma luxação de joelho e rompi os ligamentos. Fui de ambulância até Maceió, onde dei entrada em um hospital de urgência. Acabei passando por 14 cirurgias – até que, mais de um mês depois, sofri a amputação da perna esquerda, pois os músculos estavam mortos.

Quando cheguei ao hospital, na noite de 21 de agosto de 2015, o ortopedista diagnosticou não só a luxação como também ausência de pulso e frieza na perna, com suspeita de lesão na artéria poplítea [que atravessa a coxa].

Ele encaminhou o meu caso a um médico vascular, especialista, que fez outro diagnóstico. Para ele, o problema era apenas o inchaço dos músculos. Dez horas depois, fizeram um ultrassom da minha perna, que apontou um problema circulatório grave.

Mas o médico ignorou. Três dias depois, como eu continuava com dor, fizeram novo ultrassom, que deu o mesmo resultado – e, só então, foi levado em conta.

Meia hora depois, eu estava sendo operado para tentar desobstruir a artéria poplítea, sem êxito. No dia seguinte, o médico viajou e fui transferido para outro hospital, onde uma semana depois fizeram um desvio [ponte] da parte traumatizada com uma veia da outra perna. Depois veio a amputação. Chorei, e acho difícil alguém não chorar ao passar por isso.”

Perfuraram o pulmão do meu pai. E tentaram esconder.

Esther (nome fictício a pedido da fonte), São Paulo (SP)

“Acordei e meu pai, de 78 anos, estava arrumando a cama. Fui levar o café, dez minutos depois, e ele estava desmaiado. Assim que chegamos ao hospital, pedi para acompanhar meu pai o tempo todo, eu sabia que era meu direito. Ele teve um AVC e foi levado para a sala de trauma, dentro do pronto-socorro. Aí houve uma troca de turno e o novo médico pediu que colocassem uma sonda nasogástrica [que alimenta a pessoa pelo nariz]. Estranhei, porque meu pai ainda não estava muito tempo em jejum. Uma enfermeira chegou, parecia com raiva por me ver ali. Colocou a sonda, fez os testes necessários para verificar se ela estava no lugar certo.

Hoje sei que ela simulou os testes, ou não sabia executá-los. Porque o teste deveria, obrigatoriamente, ter revelado o que aconteceu: a sonda perfurou o pulmão do meu pai. Ele desenvolveu uma pneumonia, passou 34 dias na UTI e nunca mais recuperou a consciência até falecer. Eu não saí do lado dele.

A diretora do hospital marcou uma reunião comigo. Disse que a enfermeira negou sequer ter colocado a sonda. Existe um registro da recolocação, para corrigir a posição, mas não existe no prontuário dele a colocação. Acontece que não registrar um procedimento no prontuário é crime. Mesmo assim, o que eu ouvi da diretora foi que, se eu quiser buscar meus direitos, será minha palavra contra a da enfermeira. Não entendo como uma profissional de saúde pode se comportar assim, sem nenhum senso de ética.”

Ele retirou o nervo. E a dor nunca mais passou.

Marcos Wassilevski, 59 anos, bioquímico, São Luís (MA)

“Minha esposa tinha uma dor fraca no pé direito. Ela procurou um médico e, em fevereiro de 2011, foi diagnosticada com neuroma de Morton, doença rara em que um nervo do pé fica mais espesso, provocando dormência e dor nos dedos. Submeteu-se a uma cirurgia para retirar o neuroma, que foi um fracasso. Nos meses seguintes, a dor só aumentava, e o médico receitou medicamentos que não adiantaram. Em janeiro de 2012, ele realizou uma segunda operação, retirando o neuroma juntamente com parte do nervo. Artigos científicos relatam que essa cirurgia é indicada para casos em que o nervo está seriamente lesionado.

Mas, no caso da minha esposa, não estava [e a retirada do nervo não era necessária]. O médico nunca realizou exame para constatar o nível de lesão do nervo. E a extração parcial dele deixou minha esposa com sequelas irreversíveis. Hoje, com 56 anos, ela sente fortes dores no pé direito. Utiliza metadona e gabapentina [dois analgésicos potentes], e sofre efeitos colaterais como aumento de pressão, náuseas, tonturas e falta de apetite. Não consegue andar por muito tempo, mesmo usando bota ortopédica e muleta. Raramente sai de casa.

O médico está sendo processado. Uma consulta ao site do Conselho Federal de Medicina revelou que ele é clínico geral, mas não é cirurgião [logo, não poderia ter feito a operação].”

Foram três cirurgias de uma vez. E o meu coração parou.

Emília Alencar, 47 anos, artista plástica, Manaus (AM)

“Fiz a cirurgia em novembro de 2011, aos 41 anos. Eu tinha três hérnias no abdômen, causadas porque meu intestino havia se deslocado para a frente. Isso poderia provocar uma obstrução intestinal, e me matar. Então fiquei nove horas e meia na mesa de cirurgia para fazer uma abdominoplastia total, seguida de mastopexia [remodelamento dos seios] e lipoaspiração. [Nota da redação: essa combinação de procedimentos é considerada arriscada. Um estudo feito pela Sociedade Americana de Cirurgia Plástica, que avaliou 94 mil cirurgias, constatou que fazer lipo e abdominoplastia no mesmo dia eleva em 14 vezes o risco de óbito do paciente].

Sofri uma parada cardiorrespiratória, mas o médico continuou a executar os procedimentos. Quando acordei da anestesia, não conseguia respirar. Ele havia injetado adrenalina e atropina no meu coração, sinal de que a massagem cardíaca não havia funcionado.

Desde então, minha vida nunca mais foi a mesma. Tenho dores no abdômen, não consigo nem levantar da cama sozinha. Peguei tuberculose, tive de abrir meu abdômen seis vezes, precisei retirar o ovário e o útero. Caminho com dificuldade. Me foi tirada a minha vida, meus sonhos.”

Nosso filho sofreu negligência.

Jonas Lourenço Silva, 61 anos, aposentado, Maringá (PR)

“Eu tinha 56 anos e minha esposa, 39. Era nosso primeiro filho. Fizemos o acompanhamento do pré-parto com todo cuidado, o bebê era saudável. Quando chegou o momento de a criança nascer, em 29 de março de 2013, seguimos para o hospital, que é referência na região.

Nem o médico, nem as enfermeiras, fizeram nenhum tipo de monitoramento, nem ultrassom, nem cardiotoco para monitorar os batimentos cardíacos. Até que a bolsa rompeu, e o líquido amniótico tinha bastante sangue. Pedi socorro, o médico apareceu e declarou que o caso era de sofrimento fetal [quando o feto é privado de oxigênio]. Mas ele saiu da sala e só reapareceu 1h35min depois, para fazer a cirurgia [de parto].

Nosso filho, Jonathan, estava morto e foi reanimado. Passou 76 dias na UTI. Ficou cego, surdo, mudo e paraplégico. Ele respira sozinho, mas os danos foram irreversíveis. Hoje eu e minha esposa vivemos em função da criança, que agora já tem cinco anos. Meu filho é mantido vivo por máquinas e 28 profissionais de saúde. Comprei uma ambulância para transportá-lo.

Soubemos depois que o médico estava sozinho no plantão, e aceitou atender outra paciente, de um colega. Era uma grávida de risco, que estava numa cidade vizinha. O médico atendeu primeiro a outra paciente, e só depois a minha esposa e o meu filho.

Processei o médico, as enfermeiras e o hospital, que já foi condenado.”


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