28/03/2024 - Edição 540

Camaleoa

A Camaleoa

Publicado em 25/05/2018 12:00 - Victor Barone

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Conheci Cristina Livramento em 2005. Circulávamos por Campo Grande (MS), cheios de poesia na cabeça. Eu, ela e Fabrina Martinez. Foi uma convivência curta, de bares e sonhos, conversas e planos. Ficou uma amizade que cultivamos aos poucos, com idas e vindas, acertos, desacertos, cobranças e entregas. Ela foi embora para São Paulo, depois para Porto Alegre, para onde seu coração morava. Sempre mantivemos contato, ainda que hoje eu perceba o quanto ela foi mais presente que eu nesta relação. Fica aquela sensação de culpa, de fosso, mas também de alegria por ter convivido com ela.

Cristina era jornalista das boas, pois para ela a notícia não era, como pensam alguns, “o que ninguém publicou ainda”, “um retrato da realidade”, “o que o patrão manda” ou coisa que o valha. Notícia, para ela, era aquilo que de alguma forma nos faz olhar para o outro com empatia, que nos faz perceber a cidade a nossa volta, que nos faz despertar para a vida. Não havia lugar para este tipo de jornalismo em Campo Grande, e também não havia em Sampa ou em Poá. Cristina tentou, mas no fundo ela sabia disso.

Cristina era poeta maravilhosa, escritora de talento. Doçura e acidez se misturavam nos seus textos, em medidas que nos faziam o paladar estrilar. Estranhamento e proximidade, aspereza e sensibilidade. Tudo nela era entrega, tesão. Camaleoa.

Cristina amava a fotografia. Era nela que se debruçava para se sentir gente, para decifrar mundos e vidas. Seus autorretratos, repletos de força e beleza, sempre me mesmerizavam, ficava absorto diante daquele olhar, expressividade e calma, profundidade e abismo. Sua visão das ruas despertava o caos e, ao mesmo tempo, emocionava.

Cristina viveu sua feminilidade ao máximo. Amou e foi amada. Não deu tréguas ao obscurantismo, não se entregou a fórmulas prontas. Buscou algo, quis tudo, sonhou o amor.

Não sei o que aconteceu com minha querida amiga nos últimos meses, e isso vai estar comigo pra sempre. Mas sei que ela viveu como queria, e isso basta. É mais, muito mais do que viverão os mortos-vivos que nos cercam.

Antes de sair de Campo Grande para sua última jornada em Porto Alegre, Cristina conversou com a filha, Madu, e com a mãe. “’Se acontecer alguma coisa comigo, saibam que eu fui muito feliz, eu vivi tudo o que precisava viver e lutei até o fim.’ Sou pobre, estou pobre e o único legado que posso deixar para minha filha se resume em resistência e dignidade. Eu sabia que precisava voltar aqui para viver um amor que, como todos os que a gente vive, um dia provavelmente vai chegar ao fim.”

Cristina se formou em Jornalismo em 1999, pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

Como jornalista publicou no Caderno Donna, do jornal Zero Hora, matéria sobre a experiência de dois dias na pele de uma diarista, uma entrevista com o ex-prefeito de Canoas (RS), Jairo Jorge (PDT), para o site inglês Global Government Forum, foi editora dos jornais Jornal da Praça Benedito Calixto, Café Literário, ambos de São Paulo, da revista nacional Psique (Editora Escala), foi redatora do tabloide Midiamax (Campo Grande-MS), repórter de Cidades e Polícia do jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e assessora de imprensa do Sinsap-MS (Sindicato dos Servidores da Administração Penitenciária de Mato Grosso do Sul), Sebrae/MS, Enersul (atual Energisa-MS), Famasul (Sindicato dos servidores da Administração Penitenciária de Mato Grosso do Sul) e Supermercados Comper. Também editou a coluna Conexões Urbanas, na Semana On.

Cristina pediu demissão do jornal O Estado de Mato Grosso do Sul, em julho de 2015, e decidiu que era hora de se refazer como gente e profissional. “Não tomou remédios, nem drogas para criar coragem, apenas deixou de pensar no passado e no futuro e passou a viver o agora.”

Criou, em 2017, a coluna Diário de uma ex-jornalista, publicou, em 2011, o livro São Paulo & notas cinzentas de amor e saudade, com incentivo do ProAC-Literatura (2010) da Secretaria de Cultura do Governo do Estado de São Paulo e é autora do extinto blog Contos da Camaleoa.

Como escritora, escreveu também o Campo Grande 1889, 6 baladas para forasteiros (ainda inédito), e espalhou seu talento com dois projetos pelas ruas de Porto Alegre, em formato A3, com foto e texto, como lambe-lambe: A triste história das mulheres que não sabiam amar e Intervenção 1.

Como fotógrafa, participou de um coletivo, a exposição Ruínas a Céu Aberto (2017) e Mosaicografia (2016), ambos em Porto Alegre (RS), desenvolveu o projeto Memento Drag Queen (2016), em Campo Grande (MS), making off da peça A Guerra Civil de Gumercindo Saraiva (2015), em Porto Alegre (RS), registrou o Festival do Teatro Brasileiro – Cena Mineira no Rio Grande do Sul (2011), em Porto Alegre (RS), ministrou oficinas de fotografia, pela CUFA (2012), em quatro escolas municipais de Porto Alegre (RS).

No dia 18 de maio de 2018 Cristina nos deixou, mas continua aqui, presente.

Diário de uma ex-jornalista: De repórter a vendedora ambulante

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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