19/03/2024 - Edição 540

Brasil

Reações ao documento da CIA sobre matança na ditadura expõem as sombras do Brasil de 2018

Publicado em 17/05/2018 12:00 -

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A contação da história é uma obra em que os tijolos são assentados um a um. Em 1997, saiu em livro o depoimento do general Ernesto Geisel à cientista política Maria Celina D’Araujo e ao antropólogo Celso Castro. O ditador que presidira o Brasil de 1974 a 1979 contornou meios-termos:

“Acho que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter confissões. […] Não justifico a tortura, mas reconheço que há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior!”.

Em 2002, no livro A ditadura derrotada, o jornalista Elio Gaspari reproduziu a conversa em que Geisel convidara o general Dale Coutinho para encabeçar o Ministério do Exército.

Em 17 de fevereiro de 1974, a 27 dias da posse presidencial do “Alemão”, Coutinho tratou do combate aos oposicionistas: “E eu que fui para São Paulo logo em 69, o que eu vi naquela época para hoje… Ah, o negócio melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, quando nós começamos a matar”.

Geisel emendou: “Porque antigamente você prendia o sujeito, e o sujeito ia lá para fora […] Ó, Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”.

O pesquisador Matias Spektor enfileirou mais um tijolo na parede da memória. O coordenador do Centro de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas garimpou no site do Departamento de Estado um documento da CIA com data de 11 de abril de 1974 –27 dias depois da assunção de Geisel e dez anos cravados após o Congresso manietado impor o marechal Castello Branco na Presidência. É um memorando do diretor da agência, William Colby, endereçado ao secretário de Estado, Henry Kissinger. O “assunto”, enunciado no cabeçalho: “Decisão do presidente brasileiro Ernesto Geisel de continuar a execução sumária de subversivos perigosos, sob certas condições”.

Colby descreveu uma reunião na sexta-feira 30 de março – a posse ocorrera no dia 15. Estavam presentes Geisel; o general que se despedia do comando do Centro de Informações do Exército, o CIE, Milton Tavares de Souza; o general que assumia, Confúcio Avelino; e o chefe do Serviço Nacional de Informações, general João Baptista Figueiredo, arquetípico oficial de cavalaria que viria a ser o sucessor de Geisel.

O general Miltinho predicou, de acordo com a CIA: “Métodos extralegais precisam continuar a ser empregados contra subversivos perigosos”. Ele falou que 104 pessoas tinham sido “executadas sumariamente” pelo CIE no ano anterior, portanto na administração do general Emílio Garrastazu Médici. A agência anotou: “Figueiredo apoiou essa política e insistiu na sua continuação”. Geisel teria pedido o fim de semana para “ponderar sobre o assunto”.

Classificado originalmente como secreto, o relatório liberado pelos Estados Unidos em 2015 prossegue: “Em 1º de abril [segunda-feira], o presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas deveria ser tomado grande cuidado para ter certeza de que somente subversivos perigosos fossem executados. O presidente e o general Figueiredo concordaram que, quando o Centro de Informações do Exército prender uma pessoa que puder ser enquadrada nessa categoria, o chefe do CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação precisará ser dada antes que a pessoa seja executada”.

Fontes da CIA

O memorando conserva 21 linhas tarjadas, vetadas ao público. Talvez elas ocultem a fonte da Central Intelligence Agency: escuta ambiente, um dos quatro generais ou um interlocutor que ouviu o testemunho de um (ou mais) deles e passou adiante. É possível que o mistério se renove por gerações.

Até hoje a inteligência britânica preserva inacessível a papelada sobre a atuação dos seus arapongas no levante comunista de 1935 no Brasil. Um dos espiões, infiltrado entre os emissários da Internacional Comunista, desempenhou papel expressivo no cerco aos revolucionários malogrados. O agente duplo era o alemão Johann Heinrich Amadeus de Graaf, uma espécie de 007 pré-Guerra Fria.

A ditadura inaugurada em 1964 infiltrou-se em organizações de esquerda. Recrutou na década de 1970 um quadro do Partido Comunista Brasileiro veterano de escaramuças da revolta de 1935. Chamavam-no pelo codinome Vinícius. Esse “cachorro”, como os militares denominavam os militantes vira-casacas que passavam a trabalhar na moita para a repressão, ajudou a dizimar o Comitê Central do PCB.

O mesmo oficial do DOI (Destacamento de Operações de Informações) do I Exército que conduziu Vinícius à fronteira no Sul, em arapuca para capturar camaradas que ingressavam clandestinamente no país, coordenou a operação que transformou em “cachorro” o ex-deputado Manoel Jover Telles. O militante histórico do PC do B delatou em 1976, ao DOI do II Exército, um encontro da cúpula do partido no bairro paulistano da Lapa. Dois dirigentes comunistas foram fuzilados no local.    

Política de Estado

Dois dias após a ordem de Geisel a Figueiredo, a ditadura sequestrou João Massena Melo, Luiz Ignácio Maranhão Filho e Walter de Souza Ribeiro. Os três integravam a direção do PCB. Não podiam ser denominados “terroristas”, como o governo gostaria de apregoar, pois a agremiação a que pertenciam se opunha à luta armada como instrumento para enfrentar a ditadura. Nunca reapareceram. No governo Fernando Henrique Cardoso, a União reconheceu que foram assassinados por agentes públicos.

Em 7 de maio de 1974, sumiu o guerrilheiro Thomaz Antônio Meirelles, da Ação Libertadora Nacional. Provavelmente, agentes da Marinha o prenderam e o entregaram a cupinchas do Exército, que o mataram. Também não foram condenados os militares que em 1975 assassinaram na tortura o jornalista Vladimir Herzog e simularam seu suicídio. Nem os matadores de Zuzu Angel, em 1976. A estilista buscava o paradeiro do filho Stuart, desaparecido (ele havia sido trucidado por carrascos da FAB). Seria Zuzu uma “subversiva perigosa”? Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade inventariou 421 mortes e desaparecimentos no período da ditadura.

O documento da CIA confirma que o extermínio era política de Estado, não “excesso” autônomo de beleguins e sargentos. A impunidade dos autores de violações de direitos humanos de 1964 a 1985 é herdeira de outros verdugos sem castigo, como os da ditadura do Estado Novo, de 1937 a 1945. É parteira da tortura contemporânea em delegacias policiais, sobretudo contra jovens negros, e da matança dissimulada sob o carimbo fraudulento do “auto de resistência”.

Os crimes de tortura, execução sumária e desaparecimento forçado constam de protocolos internacionais de que o Brasil é signatário. Alguns são imprescritíveis. Nem a legislação da ditadura os autorizava. A Lei da Anistia, de 1979, não perdoa torturador e matador, ao contrário do que alardeia quem teima em ler o que não está escrito. Numerosos violadores estão vivos e impunes (os opositores pagaram com tortura, morte, prisão, exílio, perseguições e sacrifícios). Nunca é tarde para fazer justiça, ensinam alemães e argentinos.

‘Tapa no bumbum do filho’

O país que pariu a CIA apadrinhou o golpe de 1964 contra o presidente João Goulart. O Exército Brasileiro alegou não ter como se pronunciar sobre a informação norte-americana. Declarou que “os documentos sigilosos relativos ao período em questão e que eventualmente pudessem comprovar a veracidade dos fatos narrados foram destruídos, de acordo com as normas existentes à época –Regulamento para a Salvaguarda de Assuntos Sigilosos (RSAS) – em suas diferentes edições”.

Antes, o Exército matava. Agora, cala-se. Não mostra o termo de destruição ou atestado semelhante que comprove incineração ou trituração dos papéis que esclarecem a história. Refere-se a determinada “época”. Que época? Que data?

O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, afirmou que o prestígio das Forças Armadas “permanece nos mesmos níveis em que elas se encontram até aqui, por uma razão muito simples. As Forças Armadas brasileiras são um ativo democrático que o país tem hoje. Isso evidentemente que não é tocado por uma reportagem”. O Exército, a Marinha e a Aeronáutica jamais se desculparam pelos crimes que cometeram contra os direitos humanos. Jungmann militou no PCB.

O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, secretário nacional de Segurança Pública, sugeriu haver segundas intenções na novidade histórica: “[…] Esse é um ano eleitoral, uma eleição que vem com pesquisas… foram publicadas várias notícias de que um número maior de militares está participando nessa próxima eleição. […] Tem que ver também interesses políticos nesse tipo de divulgação”.

O mais notório candidato militar é o deputado Jair Bolsonaro. O capitão da reserva do Exército interpretou à sua maneira o documento revelado: “Quem nunca deu um tapa no bumbum do filho e depois se arrependeu?”. Em 1999, ele se jactara: “Eu sou favorável à tortura”.

O Sensacionalista gracejou: “‘Quem nunca jogou estalinho para assustar o colega?’, diz Bolsonaro sobre Hiroshima e Nagasaki”. O humorista Gregorio Duvivier tabelou: “‘Quem nunca queimou um amigo com o cigarro?’, diz Igreja sobre as bruxas da Inquisição”. Como compôs o Candeia e cantarolou o Cartola, rir pra não chorar.

Ídolo torturador

Na sessão da Câmara que em 17 de abril de 2016 abriu caminho para o impeachment, Jair Bolsonaro anunciou ao microfone que votava “pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”.

De setembro de 1970 a janeiro de 1974, Ustra comandara o DOI do II Exército, em São Paulo. Foi o maior campo de concentração da ditadura. Seus agentes mataram mais de 50 oposicionistas, a esmagadora maioria sob custódia do Estado, e não em tiroteio. No século 21, a Justiça declarou que o ídolo de Bolsonaro era torturador, mas Ustra morreu em 2015 sem ser punido.

A futura presidente foi presa no DOI paulista no princípio dos anos 1970. Torturaram-na com socos e choques elétricos. Penduraram-na no pau-de-arara. Dilma respondeu ao deputado: “Eu conheci o Ustra dentro da Operação Bandeirante [nome do embrião do DOI]. Eu fui presa em janeiro de 1970, quando a Oban era chefiada por outro militar. Ustra chegou depois. Um dia, eu já ia sair da cadeia, eu o encontrei. O Ustra já era o Ustra. Já tinha matado gente. Ele me disse: ‘Se você voltar, você vai morrer com a boca cheia de formiga’. Pois eu tenho orgulho de ter pavor deles. Dele eu tenho pavor”.

Pesquisa divulgada anteontem constata que o venerador do coronel Ustra só perde, em intenção de voto para o Planalto, para Luiz Inácio Lula da Silva. O ex-presidente está encarcerado e virtualmente proibido de disputar a eleição. Bolsonaro lidera sozinho em dois cenários de primeiro turno sem Lula, conforme o levantamento da MDA Pesquisa encomendado pela Confederação Nacional do Transporte. No terceiro, há empate técnico com a ex-ministra Marina Silva.

O zumbi Michel Temer alcançou espantoso 0,9% – será que existem mesmo tantos viventes dispostos a sufragá-lo? Nos duelos de segundo turno, Bolsonaro iguala-se a Marina e ao ex-ministro Ciro Gomes. Supera os demais candidatos, com exceção de Lula, que vence em todos. A menos de cinco meses das urnas, não desidrata. O ex-ministro Joaquim Barbosa resolveu não se apresentar à eleição. A corrida afunila. Os três últimos presidentes eleitos pelo voto popular –FHC, Lula e Dilma – militaram contra a ditadura.

O memorando de 1974 documenta a selvageria institucional de senhores donos de vida e morte. Em 2018, o endosso à covardia e a indiferença pelo horror de outrora evidenciam que as sombras permanecem. Os fantasmas do passado sobrevivem nos fantasmas do presente.


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