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Após 12 anos, a Argentina volta a pedir socorro ao FMI

Publicado em 16/05/2018 12:00 -

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Em meio à forte turbulência financeira e a uma nova desvalorização do peso argentino, o presidente Mauricio Macri anunciou que pedirá ao Fundo Monetário Internacional uma linha de crédito que permita "superar um contexto internacional cada dia mais complexo". Macri disse ter iniciado as negociações.

"Conversei com Christine Lagarde, diretora do FMI, quem nos confirmou que vamos começar hoje mesmo a trabalhar num acordo", anunciou Macri para surpresa geral. "Durante os primeiros anos (do seu governo iniciado em dezembro de 2015), contamos com um contexto mundial muito favorável, mas isso hoje está mudando", avaliou o presidente, citando a alta da taxa de juros nos Estados Unidos, o preço do petróleo e a desvalorização do peso argentino.

"Somos um dos países do mundo que mais depende do financiamento externo, resultado do enorme gasto público que herdamos", justificou Macri, em referência aos 12 anos dos governos de Nestor Kirchner e Cristina Kirchner. "Tomei esta decisão pensando no interesse de todos os argentinos, não estou mentindo, como tantas vezes nos fizeram", criticou.

O retorno ao FMI depois de 12 anos implica um elevado custo político para o presidente Macri tanto no que resta do seu mandato quanto para a sua eventual reeleição no ano que vem.

No imaginário coletivo argentino, o Fundo Monetário Internacional é a cara visível de drásticos ajustes impostos ao país e de políticas neoliberais que derivaram em fortes crises econômicas. Se a oposição associava Macri com o neoliberalismo, a decisão do governo reforça agora esse discurso.

A decisão de recorrer ao FMI revela a insuficiência das medidas anunciadas na última sexta-feira para conter uma corrida cambial que desvalorizou o peso argentino em cerca de 15% neste ano. Como medidas para conter a sangria, o governo anunciou o aumento da taxa de juros de referência do Banco Central de 32,25% a 40% ao ano, uma taxa considerada insustentável pelos analistas.

Macri também anunciou a redução de 3,2% a 2,7% no déficit fiscal primário, o grande vilão por trás de uma inflação que não baixa de 20% ao ano. A redução do déficit virá da diminuição da obra pública, considerada um dos motores da economia e uma das maiores armas eleitorais do presidente ao gerar empregos.

Outra medida insuficiente foi a redução de 30% a 10% na posição global dos bancos em moeda estrangeira. A medida visava jorrar dólares no mercado, reduzindo a pressão a favor do dólar e contra o peso.

Antes do anúncio de Macri nesta terça-feira, o peso argentino se desvalorizava em 5,3%, enquanto as moedas de países vizinhos emergentes como Colômbia ou Brasil se desvalorizavam em 1,4% e 0,8%, respectivamente.

Em março, Lagarde esteve em Buenos Aires e defendeu a política gradualista de Macri. "O FMI de agora é muito diferente do de 20 anos atrás. Aprendeu as lições do passado e apóia o programa gradual da Argentina", defendeu o ministro da Fazenda, Nicolás Dujovne, destacando que o FMI cobra taxas de juros inferiores às praticadas pelo mercado.

O governo não anunciou o montante do empréstimo, mas, segundo fontes do próprio Ministério da Fazenda, a linha de crédito que a Argentina pretende pedir seria 30 bilhões de dólares. A cifra tem o propósito de uma tranquilidade financeira, mas também aponta à corrida eleitoral de 2019.

O mercado não duvida necessariamente da capacidade do governo Macri de obter os cerca de 7 bilhões de dólares que requer para cobrir o déficit deste ano, mas em como obteria os cerca de 26 bilhões de dólares para financiar o déficit de 2019, um ano eleitoral.

Sensação de perda

“A sensação é a de que o dinheiro diminuiu”. A professora de Letras e Literatura Denise Cultrera, 29, garante a literalidade da frase. Moradora de um dos bairros mais pobres de Buenos Aires, a Villa Soldati, no extremo sul da cidade, ela é espectadora e também partícipe dos impactos da política econômica do governo de Mauricio Macri na população, que cortou subsídios, superdesvalorizou o peso e levou a inflação às alturas. 

“Dois anos atrás, trabalhando 18 horas semanais em uma escola, eu até conseguia economizar. Sempre fui de classe baixa, mas vivia bem. Hoje trabalho mais de 30 horas e não fecho o mês. Essa é a diferença”, resume.

Cultrera, que vive com a mãe, as irmãs e os sobrinhos, lembra também da importância dos subsídios tarifários para a economia doméstica, outra medida abolida na política gradualista impulsada por Macri. “A conta de luz está em 6000 pesos mensais (equivalente a 940 reais), uma loucura. Antes não chegava a 500 (equivalente a 80 reais) e era bimestral”.

Água, luz e gás não foram os únicos serviços que perderam subsídios e sofreram reajustes de preços desde quando a Cambiemos, coligação política oficialista, assumiu o país em dezembro de 2015. O transporte público passou recentemente pelo terceiro aumento em menos de três anos: de 2,90 a 9,50 pesos nos ônibus urbanos e e de 3,50 a 12,50 pesos para trens e metrô, reajustes que passam dos 300%.

Para Nicolas Abraham Silva, 27, de Lanús, a 22km da capital, a relação com o salário mudou. “Agora, no dia do pagamento, voltamos pra casa, colocamos o dinheiro sob a mesa e vemos o que fazemos. Mês passado não pagamos o gás nem telefone. A água, sim. E assim vamos escolhendo. O gás, acho, vamos negociar em duas vezes porque se pagarmos essa conta não sobra dinheiro para comer”.

Silva, que agradece a sorte do avô ter comprado a casa em que vivem, teme que se não fosse assim talvez já estivesse vivendo em situação de rua com a mãe e a irmã, também assalariadas. “Neste momento, a linha entre ter uma casa e viver na rua é muito fina”, afirma Silva, que trabalha numa cooperativa que presta assistência e cuidados a pessoas com dependência química. Ele afirma se sentir mais protegido também por não ter mais um patrão. “No meu último trabalho, numa fábrica de pães e doces, as pessoas eram demitidas por qualquer razão”, lembra.

Militante do movimento popular La Dignidad, Vanesa Escobar está atenta aos índices e às caras novas nas ruas da capital federal. De acordo com o último censo do governo, 1066 pessoas viviam em situação de rua na cidade de Buenos Aires em 2017.

No entanto, o Primeiro Censo Popular de Pessoas em Situação de Rua, coordenado por mais de 40 organizações – e com respaldo do Ministério Público Fiscal, a Defensoria do Povo e a Auditoria Geral Portenha – apresentam um quadro mais alarmante: são mais de 5000 pessoas em situação de rua, das quais 23% não estavam na rua no ano anterior; 1600 em dispositivos de alojamento noturno (centros de integração popular e pensões); e mais de 20 mil em estado de risco.

Todas são cifras que abarcam apenas a capital. “O salário continua o mesmo, mas aumenta tudo, supermercado, ônibus, aluguel. Depois de uns meses e algum tempo sem pagar, muitas dessas pessoas vão para as ruas, pois não tem para onde ir”. Diante do cenário de inflação real de mais de 24%, Escobar levanta a questão: “e estamos na cidade mais rica do país. E nos outros estados, como é? As pessoas estão passando muito mal”.

Inflação e economia dolarizada

De acordo com Julia Strada, doutoranda em Desenvolvimento Econômico e integrante do Centro de Economia Política Argentina (Cepa), o fenômeno inflacionário na Argentina se dá de maneira reiterada. “1975, 1981, 1989, 2001 são datas gravadas no DNA dos argentinos e quem teve dólares nestes momentos pode ganhar. Há casos de pessoas que guardaram dólares no colchão em 1989 e 2001 e depois puderam comprar uma casa”, afirma.

E a dolarização da economia causa a desvalorização permanente do peso argentino, que começou com os primeiros planos de estabilização do Fundo Monetário Internacional (FMI), que determinava uma melhora do déficit da balança comercial às custas de uma moeda nacional artificialmente desvalorizada.

“Há também uma corrente de pensamento que entende que há uma concentração econômica tão grande que um punhado de empresas formam os preços, controlando os insumos mais importantes da cadeia: os alimentos”.

Trigo, soja, milho e carne são alguns dos produtos da mesa argentina que compõem a cesta alimentícia exportadora do país. Quando há uma desvalorização “(os exportadores) querem vender no mercado local ao mesmo preço que vendem ao exterior”, reforça Strada.

Strada aponta, ainda, um terceiro elemento fundamental para entender o contexto hermano: uma economia estrangeirizada: quase 70% das exportadoras que operam na Argentina são empresas estrangeiras, obrigadas a dolarizarem os lucros que serão remetidos às matrizes.

Enquanto a figura amorfa do mercado segue atenta às oscilações diárias do dólar, que se mantém acima dos 25 pesos, e às respostas esperadas e especuladas pelos investidores, Strada reforça que a desvalorização é perda de poder aquisitivo. “Somente entre 17 de março e 10 de maio, o dólar subiu 12%. Isto será mais inflação e com salários negociados majoritariamente em 15%, com uma inflação que, este ano, será entre 23 e 24%”.

“O FMI não mudou” pontua Strada, se contrapondo à afirmação do ministro de Economia Nicolas Dujovne. “É o mesmo de sempre, que pede reformas estruturais”.

O FMI voltou a auditar a economia do país em 2016 e na última revisão, de 1º de dezembro de 2017, antes da aprovação das reformas fiscais e previdenciárias, “reforçaram que haveria que seguir reduzindo gastos onde fosse possível, que a meta do déficit fiscal teria que ser de 2% e fazer reformas estruturais, que nunca foram esclarecidas”.

“Quando falamos em gastos em saúde, educação e em subsídios a tarifas, falamos de salário indireto. É um conceito econômico. Salário indireto é uma contraparte que coloca o Estado para sustentar a vida cotidiana. Na Argentina, por exemplo, a educação pública é um salário indireto para muitos. De outra forma, teriam que colocar do salário um aporte para educação. Cortar esses subsídios é encarecer o custo de vida”.

O fantasma de 2001

Todos os caminhos levam à recordação da pior crise econômica da história recente da Argentina, que terminou com 38 mortos e cinco presidentes em duas semanas. Era dezembro de 2001. Os mais de 15 anos transcorridos não são suficientes para desbotar imagens icônicas, gravadas na sociedade argentina: de saques coletivos organizados a supermercados, uma multidão “carneando” vacas caídas de um caminhão na rodovia, à renúncia e fuga em helicóptero do presidente da época, Fernando De La Rúa, para evitar a massiva manifestação contra o confisco bancário, popularmente conhecido como “corralito”.

“Pedir um empréstimo ao FMI é pesado, não é brincadeira” sentencia Silva. “A gente já viveu isso. Eu moro num bairro pobre e me lembro. Os comedores públicos se multiplicavam, a gente não tinha o que comer”.

A crise de 2001 deixou sequelas: “minha mãe revirava lixo na rua, buscando papelão para vender. Passamos fome. Tenho isso vivo na memória”, relembra Cultrera. “Agora eu tenho um título e, bem ou mal, posso me defender. Mas me deixa muito triste pensar que outros podem passar por aquilo que eu vivi”.

Para muitos argentinos, economistas ou não, voltar ao FMI é reafirmar interferências que vão além da política econômica. “Chega um ponto em que se o FMI propõe um ajuste, intervém em todas as áreas do governo, inclusive nas decisões dos ministérios e em seus orçamentos", conclui Julia Strada.


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