19/03/2024 - Edição 540

Entrevista

A indústria de armas tenta obscurecer o debate sobre violência no Brasil

Publicado em 09/05/2018 12:00 -

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“O Brasil atravessa um dos piores momentos relacionados com a segurança pública interna de suas grandes cidades. Não bastassem o alto nível de desemprego e a ineficiência do Estado para combater o crime organizado, vê- se que os bandidos estão extremamente organizados, adquirindo inclusive treinamento específico, outrora privilégio das forças policiais e militares, para aumentar seu poder de fogo frente à população desprotegida e apavorada”. 

Você pode estar pensando que a frase acima é o trecho de alguma recente declaração na tentativa de justificar o decreto de intervenção federal no Rio de Janeiro, que entrou agora no terceiro mês. Mas ela foi escrita há 12 anos. De autoria do deputado federal Moroni Torgan (ex-PPS, atualmente no DEM-CE), ela serviu de justificativa para a abertura da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) destinada a investigar as organizações criminosas do tráfico de armas.  Publicada em novembro de 2006, um dos seus sub-relatores na época era o hoje Ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann. Responsável pela análise, o então deputado pelo PPS destacou, por exemplo, a origem das armas e munições que chegam na mão do crime. “Embora o contrabando de armas e munições [internacionais] exista e deva ser combatido, 78 % das armas apreendidas são de fabricação  nacional, são desvios que se devem à falta de controle dentro do território nacional, e 22% são fabricadas no exterior”. Duas outras comissões com o mesmo tema aconteceriam nos anos de 2011 e 2016 na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj).

De acordo com o gerente de sistemas de justiça e segurança pública do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, passados mais de dez anos, o cenário pouco se alterou. No ano passado, a ONG realizou o levantamento “Arsenal Fluminense: análise das apreensões de munições no estado do Rio de Janeiro”, que mostra como novos projetos de lei sobre o tema voltados a facilitar a compra e o porte de armas no país são criados semanalmente e que boa parte das munições desviadas – 42% – têm origem nacional. Além disso, o contrabando internacional de fuzis, submetralhadoras e armas automáticas corresponde a apenas 10% do montante apreendido. “O objetivo deles [CBC e Forjas Taurus que detém o monopólio nacional de fabricação de armas e munições] é obscurecer a importância da indústria no atual estado do problema e assim não precisa alterar o quadro”, explica. Outro grande problema apontado por Langeani se refere ao desrespeito das empresas com relação à portaria do Exército que determina a quantidade máxima de 10 mil itens em um lote de munição a fim de tornar o controle mais eficiente.

O tema ganhou força depois da execução da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, no último dia 14 de março. Parte da munição foi identificada como sendo do lote UZZ-18, adquirido pela Polícia Federal em 2006 e desviada no mesmo ano. Os projéteis apareceram em outras cenas de crimes nos últimos anos, com destaque para a chacina de Osasco, em agosto de 2015, a maior da história de São Paulo. Segundo a LAI (Lei de Acesso à Informação), o lote adquirido pelo Ministério da Justiça por quase R$ 5 milhões tinha pouco menos 2,5 milhões de munições. “Um lote desse tamanho nem adianta marcar porque ele vai ser distribuído para tanto lugar que não vai ser possível achar quem desviou e onde”, critica Langeani.

Confira a entrevista

Há doze anos, o relatório da CPI do tráfico de armas do Congresso Nacional chegou a conclusões muito semelhantes aos que o relatório do Sou da Paz chegou, guardadas as devidas proporções. O que se alterou desde 2006?

Desde essa época o que mais houve foram flexibilizações da lei, tais como a do porte de arma para algumas categorias e para atiradores esportivos. Além disso, semanalmente novos projetos são criados, justamente para facilitar a compra e o porte. Mas o que teve de possíveis mudanças positivas eu destacaria duas coisas. A primeira foi que se obrigou o judiciário a fazer destruições periódicas de armas apreendidas com a finalidade de não acontecer o desvio devido a negligência da guarda. A outra é que o Ministério da Justiça tem facilitado a consulta de armas do SINARM, que é o banco de armas da Polícia Federal a partir do INFOSEG, que é acessível a todos os policiais do Brasil. Antigamente, quem tinha acesso eram alguns poucos policiais e os federais, o que basicamente dificultava muito o rastreio das armas. Essa integração, porém, não existe do SINARM com o Banco SIGMA, que é o banco de armas do Exército Brasileiro. Na época da CPI das armas você inclusive consegue achar declarações do Raul Jungmann dizendo que era um absurdo não haver essa integração. É importante marcar que nosso problema não é legislação, porque ela é boa. Nosso problema na prática é a implementação, mas há alguns bons exemplos práticos. A criação da DESARME (Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos), da Polícia Civil do Rio de Janeiro, é uma ótima iniciativa. Mas fora isso, realmente pecamos na execução.

Muito se fala sobre o controle das fronteiras para nos proteger do contrabando de armas e munições. Mas, no último relatório de vocês é possível observar que boa parte das munições tem, na verdade, origem nacional e de uma mesma empresa, a CBC, com 42%. Por que?

Essa percepção vem sendo construída publicamente pela indústria de armas, que trabalha para promover essa conclusão. A ANIAM (Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições), a Forjas Taurus, e CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos) mandam release o tempo todo para dizer que o problema não é deles, que o problema é o contrabando que vem do Paraguai… Só que as pesquisas feitas pelo Sou da Paz sobre perfil das armas no crime e também análises feitas na CPI do tráfico de armas em Brasília e no Rio demonstram que a origem é majoritariamente nacional. Por conta disso o objetivo deles é obscurecer a importância da indústria no atual estado do problema e assim não precisar alterar o quadro. A gente tem esse problema de contrabando para fuzis, submetralhadoras e armas automáticas, mas essas não representam nem 10% de tudo que é apreendido. Então se o foco se atém a essas armas estrangeiras, você deixa de lidar com uma série de outros perfis majoritários.

Então muitas dessas armas têm origem legal. Qual é o vácuo que permite que munições legais parem na mão do crime?

Quando falamos de munição nacional esses 42% que falamos são da Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC). Todas essas são legalizadas. A partir disso você tem três focos de desvio: um no campo civil, em locais de treinamento para defesa pessoal, clubes de tiro etc; Outro no campo da segurança privada, que também é um grande fornecedor de armas e munição para o crime. E finalmente o setor público, que inclui as forças de segurança. Neste existe até uma obrigatoriedade advinda do Estatuto do Desarmamento para que essas munições venham com numeração e lote marcado. Mesmo assim acredito que esses números devem inclusive ser subestimados. Se você não tem uma pressão política para instituir controle de munição fica difícil descobrir os desvios, que acabam sendo descobertos quando aparecem em local de crime. Idealmente as polícias deveriam ter controle do tipo: “Eu forneci para esse batalhão 50 mil munições. X quantidade de munições foi usado em operação tal. Fulano usou 20 no treino Y e assim por diante“. Esse que deveria ser o controle, mas em muitos lugares isso não acontece.

E cerca de 28% das munições não têm origem definida. Qual a dificuldade para identificá-las?

Esse é um problema de registro na delegacia. Essa é uma informação que deveríamos receber no BO, mas muitas vezes este acaba sendo feito de qualquer jeito. Às vezes você até tem a marca ali, mas quem faz o registro não se preocupa em colocar essa informação. Assim fica difícil saber a nacionalidade da munição e se foi usado munição de recarga por exemplo. O exército flexibilizou bastante as entidades que podem fazer recarga de munição, o que é bem ruim para o controle. Esse estojo, onde fica contido a pólvora, pode então ser reaproveitada para um novo disparo. O que defendemos é que tenhamos uma restrição grande para munição de recarga e que essa marcação de lote seja universalizada. Hoje só as policias e o exército são obrigadas a comprar munição marcada no estojo, e isso é péssimo para segurança pública e esclarecimento de crime. Se todas as munições tivessem o número de lote ia ser muito mais fácil para esclarecer crimes. O crime contra a juíza Patrícia Acioli foi desvendado através disso.

Os fuzis representam 5% das apreensões de armas mas 22% das apreensões de munição. Os fuzis são fabricados nacionalmente? De onde eles vêm e qual o preço deles de mercado?

No Brasil você tem apenas duas fábricas que produzem fuzis. A fábrica da IMBEL, que produz um fuzil tipo fal e parafal, e a Forja Taurus fazendo modelos de fuzil também. O fato dos fuzis serem caros é um resultado da nossa política de armas. No caso do revólver e da pistola, são armas mais acessíveis, disponíveis no mercado legal, o que permite uma oferta grande, inclusive no crime. Já fuzil e submetralhadora, no qual são poucas as categorias que têm acesso a esse tipo de armamento, é mais difícil. Quando você tem pouca arma significa que a oferta diminui e o preço aumenta. Um ponto interessante que mostra que isso tá ligado é que há 20 anos muitos policiais usavam apenas revólver, mas poucas pistolas. E aí a arma do crime tinha pouca pistola também. Alguns até conseguiam comprar, mas eles geralmente trabalham com o disponível. Quando a polícia troca revólver por pistola começa a aparecer mais pistola no crime. E quando a polícia começa a adotar o fuzil como arma do dia a dia, aumenta a do crime também. O uso geralmente parte do mercado legal para o ilegal. Agora, o fato de você não ter possibilidade de comprar uma AK-47 legalmente no Brasil faz com que essas armas tenham que vir de fora. Isso encarece muito o armamento, o que é no mínimo positivo, porque se ela fosse muito mais barata seria bem pior a situação. E também há armas desviadas do exército, como vemos as vezes sendo pegas armas como a .50, que a polícia não tem.

O caso Marielle chamou a atenção porque o lote da munição já tinha sido usado em duas chacinas: uma em São Paulo, que teve participação de policiais, e a outra no Rio, por traficantes. Isso significa que a munição literalmente pode ir para qualquer lugar?

Esse é um ponto importante porque existe uma portaria do Exército Brasileiro dizendo que o lote padrão deveria ser de até 10 mil munições (segundo a portaria No 16-D LOG, de 28 de dezembro de 2004). Esse lote do qual veio a munição que matou a Marielle não obedeceu a essa normativa. Tinha dois milhões de projéteis. Um lote que tem dois milhões de projéteis nem adianta marcar porque ele vai ser distribuído para tanto lugar que não vai ser possível achar quem desviou e onde. O lote padrão já é melhor, é 10 mil, e para além disso estamos atualmente advogando para que aconteçam duas mudanças: Que toda munição seja marcada e que esses lotes sejam de até mil unidades. Assim será possível rastrear muito mais facilmente. Mas o lobby das armas obviamente vai contra, e as justificativas são sempre parecidas. Em 2003 essa necessidade de marcar munição veio do estatuto do desarmamento. Mas nesse mesmo ano a indústria dizia que não era possível, que encareceria muito. E o que se descobriu era que, na verdade, a indústria já vinha marcando munição para exportação, para clientes que pediam no estrangeiro. E agora, pra ampliar isso, eles sempre falam que vai encarecer, mas na prática nossa avaliação é que se universalizar e começar a marcar lote pequeno vai ficar muito exposto o quanto a indústria acaba participando na criminalidade violenta, e isso não é interessante para eles.

Um ponto que vocês citam no relatório é que o SICOVEM (Sistema de Controle de Venda e Estoque de Munições) teria sido desenvolvido pela CBC e doado ao Exército. Não há um conflito de interesse?

O SICOVEM nasceu da necessidade do Estatuto do Desarmamento, então ele cria uma necessidade de um controle melhor das indústrias pras lojas e destas pro consumidor final. Este sistema regula principalmente essa venda ao mercado civil. E, a partir das informações que temos até o momento, é que o Exército aceitou esse sistema como doação da indústria, e que todo o desenvolvimento do software foi feito pela CBC. Isso é um conflito de interesse muito grande, até porque o Exército é um órgão fiscalizador da CBC, que é uma empresa que visa lucro. Ele é a instituição que deve ter o desenvolvimento desse sistema para garantir que não exista fraude, para garantir que a informação colocada seja fidedigna. Se o Exército aceitou essa doação isso me parece bastante grave porque na medida que você não desenvolveu esse sistema não é possível garantir sua qualidade. É como se você tivesse o Itaú doando o software para que a Receita Federal fiscalizasse o Imposto. Só que estamos falando de artefatos letais, que fazem parte na tragédia de mais de 60 mil assassinatos por ano.


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