19/03/2024 - Edição 540

Especial

Defensores da floresta

Publicado em 09/05/2018 12:00 -

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De grupos de vigilantes que expulsam madeireiros a tentativas frustradas de vender crédito carbono, indígenas criam diferentes táticas para proteger a floresta. Ao assumir a função do Estado, colocam a vida em risco em batalhas de forças desiguais. Conheça as estratégias dos povos que assumiram a frente contra o desmatamento.

Ao enfrentar desmatamento, indígenas assumem papel (e riscos) do Estado

“Falar do território é falar de nós mesmos. Muitos dizem que somos os guardiões da floresta, mas a gente vem dizer que nós somos a floresta”. Com essas palavras Francinara Baré, coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia, explica porque tantas comunidades arriscam a vida para enfrentar madeireiros, garimpeiros e outros invasores que destroem a floresta dentro de terras indígenas.

Não precisa ser especialista, basta olhar o mapa para enxergar as ilhas verdes em meio à devastação. “Só existe floresta dentro do território indígena”, afirma Kátia Silene Costa, de 79 anos, cacique dos Gavião da Montanha, os Akratikatêjê, sobre a situação da região onde seu povo vive, no Pará. Dez estados brasileiros são responsáveis por 85% da destruição de florestas no país entre 2001 e 2016, um total de 46,4 milhões de hectares, mostrou levantamento da Global Forest Watch a partir da combinação de imagens de satélites brasileiros e internacionais. Pouco mais de um quarto desse total está na conta do Pará, onde vive Kátia.

Há uma rica variedade de estratégias sendo testadas por povos de diversas etnias. Essa série de reportagens conta algumas delas, como o monitoramento do território com GPS e drone, parcerias com instituições privadas e universidades, os processos de autodemarcação e até a tentativa de monetizar o serviço de proteção por meio da venda do crédito carbono.

Nem todas elas dão certo, algumas até pioram o conflito ao provocar a reação dos grupos interessados em explorar o território. Muito além dos madeireiros e garimpeiros, velhos conhecidos dos povos indígenas, essas comunidades enfrentam empreendimentos imobiliários, turismo internacional, projetos estaduais ou federais e até mesmo o judiciário na batalha contra o desmatamento.

Embora algumas histórias sejam romantizadas, com índios sendo alçados a heróis do meio ambiente, os conflitos são de carne e osso. Para Danicley Aguiar, especialista em Amazônia do Greenpeace, a tendência natural é que a maioria dessas histórias acabe em tragédia, com perdas maiores para os indígenas. “É uma roleta russa, com risco de genocídio para alguns e etnocídio para outros”, afirma.

Os Tremembé, no Ceará, são perseguidos e ameaçados por coibir a entrada de não-índios no seu território. Ao fazer a autodemarcação da terra Maró, um cacique Borari foi espancado por madeireiros. Mas será que para “ser floresta”, como diz Francinara, é preciso colocar o próprio corpo em risco? “E tem outra escolha?”, ela provoca.

Ninguém poderá alegar falta de aviso. Todas as comunidades entrevistadas afirmaram ter recorrido às instituições de defesa. Mas o problema segue.

Pesquisadores entrevistados pela Repórter Brasil foram contundentes: os indígenas estão sozinhos na linha de frente da proteção da terra. O enfraquecimento da Funai e o avanço da bancada ruralista sobre os direitos indígenas torna sua situação ainda mais vulnerável. “As comunidades estão expostas, correndo riscos em um momento em que a gente vê a violência avançar”, afirmou o antropólogo e professor na Universidade Federal do Sul da Bahia, Spensy Pimentel.

"Se você tem uma vereadora [Marielle Franco] sendo morta no centro da segunda maior cidade do Brasil, você pode imaginar o que essas comunidades estão correndo nas áreas longínquas”, disse Pimentel.

O risco aumenta quando eles assumem a proteção física da terra, retirando os invasores com as próprias mãos. É o caso dos Ka´apor. Eles promovem a expulsão dos madeireiros que roubam árvores dentro da sua terra e perderam uma liderança assassinada em 2015. "Enfiados nesse contexto desesperador, os indígenas têm que oferecer a própria vida para defender a terra ”, diz Danicley. “A sociedade e o estado continuarão assistindo?”

Indígenas fazem curso de ambientalismo e se instalam nas fronteiras da terra

“Um povo que usou flechas envenenadas para defender o território e conseguiu a primeira demarcação de terra indígena do Amazonas não se curva a invasores”, alerta Obadias Batista Sateré, de 57 anos. Embora evoque a violência do passado do seu povo, o vice-presidente do Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé defende apenas ações pacíficas para defender a Terra Indígena Andirá Marau. O caminho que Obadias prefere é o do conhecimento. Ele conseguiu financiamento de cursos para formar 40 “ambientalistas voluntários” dentro da terra indígena.

Com início neste mês, o curso consiste em sete dias de aulas teóricas e dois anos e meio de prática com uso de GPS e monitoramento por satélite. Gerenciado pelo Centro de Trabalho Indigenista, o curso dura dois anos e meio. Os escolhidos, segundo Obadias, são os apaixonados pelo território, “seja um pescador, um caçador ou um produtor”. A expectativa é que esse grupo consiga assumir o monitoramento de todo o território e, assim, mantê-lo livre de invasores

O desafio é grande. A terra Andirá Marau tem mais de 100 aldeias distribuídas por 780 mil hectares – o território se espalha por cinco municípios nos estados do Pará e Amazonas. Desde 2015, a área perdeu 130 mil hectares de cobertura de floresta, segundo o monitoramento por satélite feito pelo alerta Glad e compilado pela Global Forest Watch. Itaituba, um dos municípios em que a terra está localizada, é um dos dez mais desmatados e o quinto com maior cobertura de árvores no Pará.

Mas, para proteger uma área tão vasta, nem todos estão fora de risco. Outras lideranças usam estratégias mais ousadas, com famílias inteiras mudando-se para áreas visadas por madeireiros por tempo indeterminado. Elas vão em grupos de cerca de 15 pessoas, muitas vezes, com crianças.

Hoje, há uma família acampada para proteger o igarapé conhecido como Família Ipiranga e outra no Maria Coã, ambos no município de Aveiro, onde há 27 aldeias. Como o acesso à terra indígena é difícil, essas famílias acabaram se instalando fora do território demarcado – ficando ainda mais expostos aos riscos.

Leonardo Martins Cardoso, da etnia Sateré e um dos defensores da estratégia, explica que a presença das famílias, na maioria dos casos, é suficiente para afugentar invasores. Poucos foram os confrontos. Mas, quando acontecem, ele diz, uma rede de apoio é acionada. “Já aconteceram situações de violência. Aí, contamos com apoio de outros grupos e de instituições, como a igreja.”

Intimidação e ameaças contra indígenas reduziram proteção

Os indígenas de Tremembé da Barra do Mundaú não baixaram guarda mesmo depois de receber uma boa notícia: a decisão judicial que lhes dava posse permanente das terras que ocupam no município de Itapipoca, no Ceará. Além de famílias de não-indígenas que vivem no território, há quase duas décadas o Grupo Nova Atlântida tenta construir, ali, parte do “maior projeto turístico do mundo” – como a empresa espanhola denomina o complexo hoteleiro que pretende levantar sobre o território indígena que está em meio ao processo de homologação.

Se já havia hostilidade aos indígenas antes da decisão judicial que favorece os Tremembé, depois dela o conflito só piorou. Com medo da retaliação, os indígenas suspenderam parte das atividades de monitoramento e proteção ao território, que é feito por 12 brigadistas e 30 ambientalistas indígenas com apoio de toda a comunidade. “Você já pensou sentir medo de andar pelo o que é seu de direito? De não poder ir e vir? Para não acontecer coisa pior, os meninos deixaram de ir”, afirmou a cacique Adriana Carneiro de Castro, de 46 anos.

Para a Funai demarcar e homologar os 3.580 hectares, as 130 famílias de não indígenas que moram ali precisam ser ressarcidas pelas suas casas e construções, um processo lento e burocrático que leva o nome de desintrusão. Mas, o mais difícil até agora é que essas pessoas não querem sair. Pior, elas estariam promovendo ações para constranger e até ameaçar os indígenas.

Os invasores, dizem os Tremembé, arrancaram e destruíram algumas placas da Funai que delimitavam as fronteiras da terra. Depois, teriam passado a vigiar os indígenas mata adentro. Uma professora Tremembé afirmou, em depoimento ao Ministério Público Federal, que ela e os alunos foram ameaçados por capangas. Por fim, há relatos de intimidações com armas brancas. O processo da desintrusão está parado há dois meses no Fórum de Itapipoca. A reportagem procurou o Juiz Federal Felipe Graziano da Silva Turini, responsável pelo processo. Por e-mail, a assessoria da Justiça Federal informou que o juiz estava de férias e “só retornará às suas atividades na segunda quinzena de maio.”

Uma das causas de desmatamento dentro da terra indígena são as queimadas provocadas pelos posseiros. As plantações, antes de pequeno porte, aumentaram, segundo os indígenas. “Eles estão acabando com o que restou da floresta”, diz Adriana. Os focos de destruição aparecem no levantamento da Global Forest Watch. Nos últimos seis anos, é possível observar a expansão do fogo. No Ceará, 31 cidades foram responsáveis por 51% do desmatamento entre 2001 e 2016. Itapipoca é a nona no ranking.

Segundo denúncia dos Tremembé, representantes do Grupo Nova Atlântida fazem reuniões com os não-índios para que eles não deixem o local. “Sempre os não-índios tiveram junto com a empresa Nova Atlântida em toda atividade e conflito dentro da terra indígena”, afirmou Ezequiel Tremembé, sobrinho de Adriana.

Parte da construção do megaempreendimento com orçamento de US$ 15 bi, segundo a imprensa cearense, está prevista para acontecer dentro da Tremembé da Barra do Mundaú. Na prática, ocuparia 86% da área total da terra indígena. O projeto teve o licenciamento ambiental suspenso, segundo informações da Funai e do Ministério Público Federal. A reportagem tentou contato com a empresa no Brasil e no exterior, assim como com outras empresas do mesmo grupo, mas não teve resposta.

Crédito carbono: o projeto pioneiro que fracassou

O Projeto Carbono Florestal Suruí foi anunciado, em 2009, como um modelo inovador: o primeiro programa de crédito carbono a ser desenvolvido em uma Terra Indígena, pelos indígenas. A ideia dos Paiter-Suruí era ganhar dinheiro para, justamente, ajudar a manter a floresta em pé. Os programas de crédito carbono remuneram comunidades que conservam seu território com dinheiro de empresas poluidoras. A Terra Indígena Sete de Setembro, composta por 25 aldeias na divisa de Rondônia e Mato Grosso, precisava de financiamento para fortalecer a comunidade contra as investidas de madeireiros.

Divididos. Esse é o adjetivo que se ouve, hoje, ao investigar o impacto do programa sobre a comunidade indígena. É o diagnóstico do maior entusiasta do programa, o ex-cacique geral Almir Suruí, defensor da venda dos créditos de carbono como solução para a proteção da floresta, manutenção da aldeia e cultura Suruí. Ele vê o desmatamento como um "crime ambiental e cultural". Antes do programa do crédito carbono, Almir já era uma liderança conhecida pela sua visão inovadora. Dois anos antes, fizera um mapeamento etnográfico da terra em parceria com o Google Earth. Ele ganhou prêmios e reconhecimentos internacionais, entre eles o prêmio da Sociedade Internacional de Direitos Humanos, na Suíça, e entrou na lista das 100 pessoas mais criativas do mundo da revista “Fast Company”.

Hoje as duas iniciativas estão abandonadas. Pior que isso, o programa de crédito carbono gerou um racha na comunidade, deixando a comunidade mais suscetível aos invasores (além dos madeireiros, agora há também garimpeiros).

O problema se deu no coração do território. Logo que foi lançado, o programa passou a ser questionado pelo primo de Almir, Henrique Suruí, que hoje é o cacique geral. Segundo Henrique, o programa impunha restrições para a rotina da comunidade e acabaria com os costumes e tradições indígenas. "O projeto nos proibia de caçar e de fazer roça", afirma.

Embora não haja menção direta a essas restrições no documento do programa, a crítica foi respaldada pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entidade ligada à igreja católica que dá assessoria a povos indígenas em todo o Brasil. Segundo Laura Vicuña, coordenadora do Cimi em Rondônia, os Suruí seriam obrigados a seguir as normas de um programa que não respeita a cultura do povo. "É entregar a terra ao capital financeiro", afirma. A entidade é contra o programa por princípio, apontando que os grupos que compram os créditos de carbono estariam usando o trabalho de povos indígenas para continuar a poluir.

Mesmo gerando polêmica dentro e fora da terra indígena, porém, o projeto nasceu. O equivalente a 251 mil toneladas de carbono foram vendidas. Metade, praticamente, em 2013 para a Natura e a outra metade em 2014 para a Fifa, que almejava compensar uma parcela das emissões da Copa do Mundo no Brasil.

O que aconteceu depois da segunda venda, de acordo com Almir, não foi coincidência. Uma frente de garimpo, algo então inédito nas terras Suruí, devastou 635 hectares de floresta, justamente a área que deveria ser protegida de acordo com o compromisso assumido no projeto.

Almir, que já foi ameaçado de morte diversas vezes pelas denúncias que faz contra os invasores, passou a denunciar o próprio primo. Segundo Almir, o primo e os outros Suruí estão em conluio com os madeireiros e garimpeiros. Outras duas entidades confirmam a relação de interesse entre o grupo crítico ao programa e os criminosos, entre eles a ONG Kanindé e o Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam). Depois das denúncias sobre o envolvimento de Henrique com os criminosos, até o Cimi se afastou do atual cacique.

Procurado, Henrique nega envolvimento atual nas atividades criminosas. Ao ser perguntado sobre o que está fazendo para proteger o território, o cacique cita a venda de castanhas. Ano passado, os indígenas venderam 200 quilos do fruto.

A desunião, porém, enfraqueceu a comunidade, o que refletiu diretamente no aumento da destruição da floresta dentro do território. O avanço da destruição se alastra pelo Corredor Tupí-Mondé", um agrupamento de sete territórios indígenas em área contínua de 3,5 milhões de hectares que fica entre o Mato Grosso e Rondônia. Entre janeiro e julho de 2017, 1.221 hectares foram devastados – quase metade dentro da Sete de Setembro, de acordo com dados da Agência Espacial Europeia levantados pela Global Forest Watch em parceria com o Idesam.

A perspectiva não é encorajadora. Segundo o delegado da polícia federal Everton Manso, que sobrevoou a terra indígena em janeiro deste ano, há pelo menos 50 garimpeiros, equipados com maquinário pesado, explorando o solo à procura de diamantes dentro da terra Suruí.

Povos se unem para barrar invasores e lutar contra o fogo

A ideia de que o Xingu é um paraíso, um local para ser preservado, é ótima. Mas o que a sociedade e os governantes fazem para manter esse paraíso?”, questiona Wareaiup Kawaiwete, 41 anos da etnia Kawaiwete, também conhecidos por Kaiabi. Para ele não é possível falar sobre vida no Xingu sem falar de política. O seu povo é um dos 16 que habitam o que chamam de "ilha de floresta", também conhecido por Território Indígena do Xingu, que fica no Mato Grosso, o segundo estado no ranking do desmatamento do país e o campeão na produção de grãos.

Para se defender da pressão que os rodeia, os povos do Xingu se uniram e decidiram usar regra e termo criados pela política dos não-índios: o protocolo de consulta. Criado em 2016 como resultado da união dos povos que vivem nas quatro terras indígenas deste território, o documento estabeleceu diversas regras. A principal delas é que nenhuma obra ou medida que tenha consequências sobre o território possa ser tomada “sem nos ouvir e negociar honestamente com a gente”.

O documento, referendado por 7 mil indígenas, já ajudou a barrar projetos de impacto, assim como a entrada de madeireiros, pescadores e outros invasores. Hoje, para entrar ali ou propor mudanças que afetem o território, é preciso passar pela Associação Terra Indígena do Xingu. “Aqui você não vê mais invasão, não vê mais caçador, madeireiro. Conseguimos porque essa briga não é de uma aldeia. Aqui não temos etnia. Essa briga é do Xingu inteiro.”

Dos nove municípios que fazem fronteira com o território, quatro estão na lista dos dez maiores desmatadores do estado – Nova Ubiratã, Gaúcha do Norte, Querência e Feliz Natal -, segundo dados compilados pela Global Forest Watch a partir de informações da NASA e do Google, dentre outros. Lideranças do Xingu já foram às prefeituras e câmaras municipais tentar alertar e cobrar os políticos. “Não sou cientista nem pesquisador, mas valorizo o que vejo. No Xingu, as nascentes estão todas peladas [sem proteção das árvores]. A chuva que cai não vai para a terra, mas direto para o rio, deixando a terra seca.”

Uma das consequências da falta de proteção das árvores do entorno, com o intenso desmatamento ao redor, é o aumento das queimadas. Levantamento do Instituto Socioambiental mostra que 66% das florestas ao redor do Território Indígena do Xingu foram desmatadas nas últimas três décadas. Com isso, os focos de calor tiveram aumento de 780%.

Picos de incêndio passaram a ser registrados em todo o Xingu. Em 2010, o fogo consumiu 250 mil hectares da reserva. Nos últimos dois anos, os picos bateram os 200 mil. Em resposta, os indígenas se dividiram em várias frentes de combate, alguns fizeram treinamento de brigadista. Hoje, quando as chamas se alastram na região, eles são acionados e se deslocam para apagar.

Dentro da aldeia, o fogo sempre foi elemento usado sob controle, presente em rituais e em atividades tradicionais importantes, como o roçado. Com a nova realidade, mesmo nesse contexto ele passou a oferecer perigo. Assim, os indígenas do Xingu foram obrigados a mudar as suas práticas para se proteger. Segundo Paulo Junqueira, coordenador adjunto do Programa Xingu do Instituto Socioambiental, uma das práticas que tiveram que mudar foi a tradicional queima do solo que depois será usado como roça. Os xinguanos reorganizaram o ritual milenar para evitar perder o controle das chamas.

Autodemarcação: estratégia de defesa contra projetos do governo

Cansados de esperar pelo reconhecimento oficial da Terra Indígena Sawré Muybu, no oeste do Pará, e de ter o destino decidido por um governo com o qual não tem interlocução, o povo Munduruku fez a autodemarcação do seu próprio território. Pressionados por um projeto de mega-hidrelétrica que alagaria parte da sua terra, sob a justificativa do governo de que a área não seria indígena, eles se organizaram para provar a existência do seu território tradicional.

Entre 2014 e 2015, os indígenas abriram trincheiras no meio da floresta para marcar as fronteiras da terra enquanto seguiam as coordenadas registradas pelo Relatório de Identificação – estudo feito pela Funai. Esse estudo é uma etapa importante dentro do processo oficial de demarcação, mas estava engavetado pela Funai desde 2013. O relatório só foi publicado em 2016, depois de a autodemarcação ser concluída e ganhar a atenção da imprensa.

“Nós não estamos sendo consultados sobre o que acontece dentro do nosso próprio território. Tem muito grupo querendo acabar com o nosso rio”, afirma a presidente da Associação Indígena Pariri, Alessandra Korap, de 33 anos. “A estratégia dos Munduruku é de uma sagacidade impressionante”, afirma a antropóloga Luísa Molina. “Os índios estão falando assim: ‘vocês só reconhecem quando é nos seus termos? Então vamos fazer nos seus termos’”, afirma Molina.

O grupo elaborou, ainda, um protocolo estabelecendo como querem ser consultados em relação a obras e medidas que afetem o seu território. A autodemarcação e o protocolo renderam um prêmio à comunidade, em 2015, dado pela Organização das Nações Unidas. As iniciativas foram consideradas como um fator relevante no conjunto de motivos que levou o governo federal a desistir, ou ao menos adiar, o projeto para a construção da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós.

O projeto do governo federal previa a construção de uma mega obra em uma área de floresta Amazônica nativa que já está sob pressão de madeireiros e garimpeiros locais. Entre 2001 e 2016, a região teve perda arbórea de mais de um milhão hectares, segundo dados analisados pela Global Forest Watch a partir do alerta Glad, um monitoramento por satélite que mostra perda da cobertura vegetal em tempo real. O estrago florestal poderia ser muito maior, caso a hidrelétrica tivesse saído do papel. Uma pesquisa do IPAM/Amazônia mostrou que com a futura construção de hidrelétricas, depois de 15 anos, o desmatamento na região equivaleria ao total já registado em toda a Amazônia.

Além da ameaça do governo federal, os Munduruku também correm risco por conta da ação do governo estadual. “Tem muito grupo querendo acabar com nosso rio e com as nossas terras, e o governo do estado não está respeitando a gente como prevê a lei.” Alessandra se refere ao decreto 1969, publicado pelo governador Simão Jatene (PSDB-PA) em janeiro deste ano. O decreto define novas regras estaduais para a consulta prévia sem prever as garantias para que as comunidades de fato participem do processo. Em defesa dos indígenas, uma recomendação pedindo a anulação do decreto foi assinada pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual, em conjunto com outros órgãos governamentais.

Embora os munduruku saibam se associar com entidades consideradas aliadas, como é o caso do MPF do Pará, as lideranças argumentam sempre sobre a importância de se reconhecer o olhar indígena por trás da preservação. Para a munduruku Alessandra, a proteção da floresta significa muito mais do que hectares preservados, muito mais até do que o direito de caçar, pescar e colher. Ela perde o sono com o risco da destruição porque a sua luta é, sobretudo, pela manutenção do “ser” Munduruku. “Para todo lado tem ameaça, de grande e de pequeno. Não tem como dormir direito, que futuro as crianças Munduruku vão ter?”

Vigilantes querem oficializar seu trabalho de fiscalização

Dadá – ou Odair José Alves de Souza, cacique da Aldeia Novo Lugar – sofreu emboscadas, foi espancado e ameaçado até entrar no programa federal de Proteção de Defensores de Direitos Humanos. “Não gosto nem de falar disso, me sinto muito fraco, minha pressão baixa.” Os irmãos arriscam a vida para defender os mais de 42 mil hectares que compõe a terra, às margens do rio Arapiuns, no Pará, e garantir a sobrevivência de 360 pessoas

O conflito se acirrou em 2000, quando os Borari e os Arapiuns, etnias que vivem nesse território, oficializaram na Justiça o pedido de demarcação. Sete anos depois, fizeram a autodemarcação, a primeira no Tapajós, mas até hoje, o processo estava parado na Funai.

Sem resposta do estado, em 2013 foi criado o grupo dos vigilantes. A cada dois meses, 13 homens saem a campo armados em busca dos invasores. Quando encontram madeireiros, confiscam o caminhão, liberam os trabalhadores e só devolvem depois de falar com o dono da empresa. Não apenas os vigilantes, mas todos os moradores da terra indígena são responsáveis pela vigília do território. “Se a pessoa vai caçar, ela monitora a nossa terra. Se for pescar, a mesma coisa. Todos precisam estar atentos o tempo todo a vestígios de invasão e barulho de motosserra”, disse Poró

Desde a criação do grupo, eles conseguiram derrubar todos os planos de manejo, locais onde madeireiras tinham permissão para explorar a floresta dentro da terra indígena. Municiados pelos Borari, uma das grandes operações de fiscalização ocorreu em novembro de 2014, quando fiscais interditaram as serrarias e embargaram os planos de manejo na área.

Duas semanas depois, no que foi interpretado como uma resposta à operação, um juiz federal publicou sentença determinando a “inexistência” da identidade Borari e Arapiuns e pedindo a suspensão do processo de demarcação, liberando assim a exploração do território por madeireiras.

A sentença foi amplamente criticada por violar o direito pela auto-identificação indígena e foi derrubada posteriormente, mas sua ousadia revelou a força de interesses na disputa pela floresta que fica dentro da Terra Indígena Maró.

Nessa luta de forças desiguais, o Conselho Intercomunitário Arapiun e Borari agora faz uma aposta ainda mais ousada. Eles querem institucionalizar a ação contra os madeireiros. “Queremos oficializar a nossa vigilância”, disse Poró. No final de abril, ele vai à Brasília durante o Acampamento Terra Livre para pressionar o Ministério da Justiça pela demarcação da reserva e para falar dos vigilantes, que fazem o papel do Estado sem nem receber por isso. “Nós estamos dentro do que é nosso, eles (os madeireiros) é que têm que ter medo.”

Desde a formação do grupo de vigilantes, o desmatamento dentro da terra estagnou. No entorno, porém, a devastação só cresce. A região do município de Santarém, onde fica a TI Maró, está entre as 14 áreas responsáveis por 50% de todo o desmatamento no estado do Pará, segundo dados compilados pela Global Forest Watch entre 2001 e 2016.

Para continuar protegendo a área, a ação dos Borari e Arapiuns revela-se como fundamental. “A Funai não tem condições de fazer a proteção, a proteção institucional é inexistente”, afirmou Rodrigo Oliveira, assessor jurídico do Ministério Público de Santarém. Em 18 de abril de 2018, a Funai encaminhou o processo da terra indígena Maró chegou ao Ministério da Justiça.

Povo Gavião pede ajuda à universidade para fazer um plano de vida

Para manter os 62 mil hectares de floresta Amazônica a salvo do desmatamento que varreu o entorno da sua terra e garantir a sobrevivência de 14 comunidades indígenas, seis caciques procuraram a Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) com um pedido grandioso: construir um plano de vida para os Gavião.

Não temos o horizonte que nos é de direito", explica a cacique Kátia Silene Costa, 49 anos, Akratikatêjê – os Gavião da Montanha – com uma marcante agonia na voz firme. Mesma agonia e firmeza com que seu pai já falecido, Payaré, lutou por seis décadas pelos direitos do povo, que habita a da Terra Indígena Mãe Maria, no Pará. Os Gavião já sobreviveram a grandes feridas abertas na floresta. Em especial com a chegada dos empreendimentos governamentais construídos durante a ditadura militar, como a usina hidrelétrica Tucuruí, a rodovia BR-222, as linhas de transmissão da Eletronorte e a Ferrovia dos Carajás, construída pela Vale, na época Vale do Rio Doce.

O tempo não apagou as ameaças. Duplicações da ferrovia e das linhas seguem na pauta. "Esses são os nossos maiores inimigos. Para a gente se proteger deles, fomos pedir ajuda para continuar existindo".

Ajudar um povo a reencontrar o seu horizonte foi a difícil tarefa apresentada à equipe da Unifesspa por Pepkrakte Jakukreikapiti Ronore Konxarti, conhecido como Zeca Gavião, da aldeia Kyikatêjê. Aos 51 anos, o também cacique quer construir um plano que abarque a proteção do território, assim como questões ligadas à saúde, educação e plantio. "Queremos diagnosticar a situação do povo Gavião para que a nossa raiz e a língua materna permaneçam vivos daqui a trezentos anos", explica Zeca.

A primeira reunião foi no segundo semestre de 2017 com especialistas em meio ambiente e direito. Vieram outras, e professores de outras áreas, como educação e saúde, uniram-se ao time. “Estamos organizando idas ao território para pensar nos próximos passos. Tudo, claro, a partir das demandas que eles trouxerem”, afirmou Rita de Cássia Pereira da Costa, professora da Unifesspa.

A pressão é grande e visível, o território Gavião está cercado por desmatamento. “Só existe floresta dentro do território indígena”, afirma Kátia. Entre 2001 e 2016, o estado do Pará perdeu 11 milhões de hectares de cobertura florestal – em 2016, foram 1.57 milhões de hectares. Os dados são do alerta Glad (monitoramento por satélite que mostra a perda de cobertura vegetal em tempo real), compilados pela Global Forest Watch.

Os Gavião, contou Zeca, já tentaram monitorar a terra para protegê-la do desmatamento. Não funcionou. “Não tínhamos nem equipamento certo nem meios de locomoção rápidos. Enquanto monitorávamos uma área, outra era invadida por pessoas atrás de caça e frutos, como castanha, para revender, o que é ilegal”. As invasões trouxeram outro tipo de impacto: roubos e ao menos um sequestro nas comunidades, que pioram com as pressões que chegam de grande empreendimentos.

A construção do plano de vida com a universidade conta ainda com a entrada de jovens da comunidade na licenciatura, em cursos como engenharia florestal, direito e pedagogia. É uma estratégia de proteção ao território e de manutenção aos modos de vida. O incentivo veio dos mais velhos, cientes de que, com profissionais formados, aumentam as chances de os indígenas serem ouvidos e respeitados dentro e fora do território. "Antes, a formação com anciões dentro da aldeia bastava aos indígenas. Agora não. Se não fizermos esse esforço, ninguém vai fazer", disse Kátia

Indígenas retomam práticas tradicionais em mata dentro de área do governo

“Carregamos as sementes Guaraní por muito tempo, mas nunca tivemos onde plantar”, diz o cacique André Benites. Ele faz parte do grupo de 27 famílias Guarani Mbya que retomaram um terreno do governo do Rio Grande do Sul. “Com a retomada, fizemos as sementes aumentarem”, completa, referindo-se à chance de viver em contato com a mata nativa que se espalha por 70% do terreno de 367 hectares. Para o cacique, esse convívio permite que o povo viva “de novo a própria cultura”.

Ali ficava a extinta Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária, em Maquiné, a cerca de 100 quilômetros de Porto Alegre. A ação, em janeiro do ano passado, foi de iniciativa exclusiva dos Guarani. “Ninguém nos falou para ir lá”, diz o cacique. Com os materiais da mata, já ergueram a aldeia, nos métodos tradicionais Guarani.

Antes da retomada, os Guarani viviam de favor em propriedades de colonos. Sem apoio do Estado, muitas vezes pousavam às margens das estradas gaúchas. Em moradias improvisadas, era comum não ter o que comer.

A cidade vizinha à área tem parte importante de sua economia voltada ao ecoturismo e enxerga a ocupação indígena com bons olhos, diz Roberto Liebgott, missionário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Para os moradores locais, a chegada dos Guarani significa a preservação do pouco de natureza que ainda resiste na região, aponta levantamento feito pelo Cimi ado com a população de Maquiné em 2017. A maior parte dos entrevistados apoiaram a retomada, alguns disseram que a ocupação daria alguma “serventia àquela terra”.

Na região, os Guarani reclamam o direito à terra desde a década de 50. Estudos arqueológicos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul constataram a presença histórica do povo na área. Mesmo assim, eles nunca foram atendidos ou tiveram suas terras demarcadas. Para Liebgott, do Cimi, o governo gaúcho é um dos mais “reacionários no tocante da questão indígena. Na maioria das vezes, lidam com as reivindicações oferecendo "terras ruins", degradadas pela monocultura de eucaliptos

A comunidade ainda vive a incerteza sobre sua situação. A Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul entrou com uma ordem de despejo contra os indígenas. Mas o processo foi suspenso depois que a Secretaria de Agricultura gaúcha – administradora da área – sinalizou a intenção de criar uma mesa de negociação.

Um caminho, já em discussão, seria a renegociação dos títulos da dívida pública do Estado com a União. Em troca do perdão de parte das dívidas, o governo passaria o controle da área à Funai que, então, tocaria em frente a demarcação da terra. A proposta de conciliação foi enviada para as secretarias de meio ambiente, agricultura e desenvolvimento rural. Mas a reunião que selaria o acordo foi desmarcada pelo governo, segundo Bruno Morais, advogado e assessor jurídico da Comissão Guarani Yvyrupa, entidade que articula as aldeias Guarani no sul e sudeste do país em mais de 300 aldeias. O governo pediu prolongamento da suspensão do processo, esticando a insegurança dos Guarani até o segundo semestre.


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