28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Culpar os moradores por um equívoco coletivo é um erro primário, diz arquiteto

Publicado em 04/05/2018 12:00 -

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O desmoronamento de um prédio de 26 andares e ocupado por cerca de 146 famílias, no centro de São Paulo, revelou para a sociedade a insustentável questão da habitação popular.

Para o professor de arquitetura da Universidade Presbiteriana Mackenzie Valter Caldana, as leis de que dispomos viabilizam ações rápidas para solucionar o problema, mas a falta de diálogo atrapallha. "Fundamentalmente, nós, que fazemos parte da socieadde civil, temos que exigir agilidade dos agentes públicos tanto no executivo, quanto do legislativo."

Na entrevista abaixo, Caldana cita possíveis soluções e comenta o ocorrido:

O que uma tragédia como essa revela sobre a questão da habitação popular?

Eu tenho dito que essa tragédia é um monumento à lentidão com que a implantação das políticas públicas de habitação tem sido implementadas no Brasil. Sobretudo, as políticas púbicas que dizem respeito à habitação de interesse social nas áreas centrais, em especial em São Paulo.

Essa tragédia é um episódio agudo de um problema crônico, não é um problema de hoje. Que sirva para alertar a sociedade que é possível fazer muito mais, dependendo só de vontade política, de diálogo, de espírito público. Não depende de dinheiro.

O senhor acredita que essa lentidão é falta de vontade política?

É uma falta de vontade política que se reflete na falta de diálogo entre os entes federativos: você tem a União, o Estado e a Prefeitura conversando pouco, ou quando conversam não se entendem. Isso faz com que todos esses processos acabem se retardando. Além disso, há muito pouco diálogo propositivo entre o poder público, o executivo, principalmente, os movimentos, e a própria iniciativa privada e a sociedade como um todo.

Habitação é um bom negócio no mundo todo, por que só aqui não seria? Falta preparar as condições para que seja um negócio de ganha-ganha. Equanto não se consegue isso, nós ficamos eternizando uma situação de perde-perde e que de quando em quando gera esse tipo de tragédia.

Muita gente, inclusive o noticiário, culpou os moradores pela tragédia, acusando-os de invasores e totalmente responsáveis pelo que aconteceu. Afinal, de quem é a culpa?

Além de não ser justo culpar essas pessoas, demonstra uma visão equivocada, demonstra uma incapacidade de compreender a complexidade do problema. Veja, os movimentos sociais, de qualquer área — seja para defender qualidade na habitação, na educação, na segurança — são legítimos. E eles são necessários. Isso é uma questão primeira.

No mundo contemporâneo, os movimentos sociais, a sociedade civil, é parte da solução, não do problema. Se, porventura, há desvios nos movimentos sociais, os próprios movimentos sociais, a sociedade e o poder público precisam isolar e combater esses desvios.

Agora, culpabilizar os moradores por um equívoco que é coletivo, que é do governo, que é da sociedade como um todo é um erro primário. Aliás, um erro comum e que vem gerando a eternização de um problema que já deveria ter sido equacionado.

O senhor acha que a tragédia poderia impulsionar o mesmo tipo de "limpeza" que aconteceu na Cracolândia, em que a população foi expulsa do lugar sem uma alternativa adequada?

Eu espero sinceramente que não. Não dá para cometer o mesmo erro duas vezes, num intervalo de tempo tão curto. Tenho certeza de que as autoridades, a Secretaria Municipal de Habitação são pessoas sensatas, que conhecem o problema, eles não partiriam para uma ação tresloucada dessa natureza.

Isso seria realmente um erro estratégico enorme, sobretudo num momento como esse. Esse é o momento do diálogo, da grandeza, de apontar soluções estruturais para o futuro.

É preciso ver os programas de regularização fundiária, de locação social, a aplicação da lei de IPTU progressivo, ou seja, temos que apontar para frente, passar por cima desse entulho burocrático que impede ações efetivas de acontecerem mais rápido. Essa é a grande questão.

Como o senhor analisa a questão do déficit habitacional e as tentativas de atenuar essa questão?

Um dos grandes problemas da política pública de habitação de interesse social no Brasil — e isso não é só em São Paulo — é que durante muitas décadas, pelo menos uns 50 anos, o país vem apostando em uma única solução para um problema que é complexo e demanda várias soluções. A solução encontrada foi fazer casa barata em terreno barato, longe dos centros urbanos, longe da infraestrutura urbana consolidada.

Esse modelo não é um modelo que serve para resolver todos os problemas. Ele não pode ser descartado, mas não é o único. Precisamos ter outros modelos de projetos, de unidades, e outros modelos de posse, de ocupação, por exemplo, as locações sociais. O aluguel social pode ser muito mais efetivo, abrangente e eficaz em determinados casos, do que a construção de conjuntos em terrenos baratos e distantes. Então, o equívoco foi ter apostado sempre em uma única solução.

Por que a questão da habitação popular é uma questão que afeta a todos?

Isso é um aspecto muito importante porque há ainda uma compreensão equivocada da sociedade — dos mesmos que culpabilizam os movimentos dos moradores pela tragédia — de que o beneficiário da política pública de habitação social é quem recebe a unidade. Não é verdade. Esse é o beneficiário primeiro, o visível.

O beneficiário, na verdade, somos todos nós, mesmo quem não precisa de uma unidade. Isso porque em uma cidade, onde a esmagadora maioria mora adequadamente, a qualidade de vida é maior para todos. As cidades funcionam melhor, a economia funciona melhor, os serviços funcionam melhor e assim as pessoas vivem melhor.

Na realidade, quando a gente fala isso, é a mesma coisa que dizer que a política pública de segurança pública não é só para quem foi assaltado. Não é só para o sujeito que, em uma emergência, precisa do guarda, da polícia. A política pública de segurança pública é para que todos nós tenhamos segurança e qualidade de vida, não é isso? A política pública de habitação social é a mesma coisa.


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