29/03/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Sem limites para quem?

Publicado em 25/04/2018 12:00 -

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O Brasil figura entre as nações com maior grau de desigualdade socioeconômica do planeta. Entre 188 países avaliados pela Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil aparece, na última divulgação do ranking, em 79o lugar em termos de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Entretanto, o país alcançou o oitavo posto entre as maiores economias do mundo em 2017.

Não é sem razão, portanto, que constam entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo terceiro da Constituição: a) construir uma sociedade livre, justa e solidária; b) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e c) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Para o alcance dos fins aludidos são necessárias vigorosas políticas públicas e o manejo de importantes instrumentos econômico-financeiros. É sempre bom lembrar que o indefectível mercado, cada vez mais idolatrado na sociedade brasileira (estranhamente), não possui a mínima “vocação” para o combate à desigualdade socioeconômica.

Importa destacar que as profundas diferenças verificadas na sociedade brasileira não são obras do acaso, defeitos de funcionamento das engrenagens sociais ou puramente consequências da corrupção endêmica que assola as instituições públicas e privadas. Existem poderosos mecanismos, cuidadosamente construídos e ancorados na institucionalidade jurídica, voltados para viabilizar a transferência de bilhões e bilhões de reais da grande maioria da população para um punhado de setores minoritários extremamente privilegiados.

Uma das formas de identificar os mecanismos referidos, verdadeiras usinas de produção acelerada de desigualdade socioeconômica, é justamente buscar onde a ordem jurídica determina, ou não determina, limites claros de atuação para os mais importantes agentes públicos e privados.

Existem limites para as despesas com pessoal ativo e inativo no âmbito do Poder Público (art. 169 da Constituição). Esses tetos estão detalhados por nível da Federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e por Poder (Executivo, Legislativo e Judiciário), além de menções específicas ao Ministério Público e à Defensoria Pública (arts. 18 a 23 da Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar n. 101, de 2000).

As remunerações dos agentes públicos (ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos) estão limitadas por expressa determinação constitucional (art. 37, inciso XI). O referido teto abrange os proventos, pensões ou qualquer outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza.

Por força da Emenda Constitucional n. 95, de 2016, foi instituído, por 20 (vinte) anos, o Novo Regime Fiscal. Trata-se de um poderoso limite para os gastos de natureza social (as chamadas “despesas primárias”). Assim, no conjunto, as despesas com educação, saúde, cultura, lazer, segurança pública, entre outras dessa natureza, terão como teto o desembolso do exercício anterior corrigido pela inflação. Por esse draconiano mecanismo, as políticas públicas mais sensíveis para erradicação da pobreza e das profundas desigualdades sociais e regionais brasileiras sofrem um duríssimo golpe.

A Constituição de 1988 chegou a fixar um limite para a cobrança de juros no Brasil. Nesse sentido, o art. 192, parágrafo terceiro, do Texto Maior estabelecia: “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”. Esse dispositivo foi revogado pela Emenda Constitucional n. 40, de 2003.

Segundo o informe do Banco Central de fevereiro de 2017, o saldo das operações de crédito do sistema financeiro, incluindo recursos livres e direcionados, atingiu 3.074 bilhões reais, 48,7% do PIB. Sobre este estoque incidem juros, cujo valor médio no mesmo período era de 32,8% ao ano (o equivalente na Europa é da ordem de 3% a 5%). Isto significa que a carga de juros pagos pelas pessoas físicas e jurídicas representa 999 bilhões, praticamente um trilhão de reais, cerca de 16% do PIB. Trata-se dos juros extraídos, não do volume de empréstimos” (A era do capital improdutivo: Por que oito famílias tem mais riqueza do que a metade da população do mundo? Ladislau Dowbor. São Paulo: Autonomia Literária, 2017).

Dowbor, na obra citada, destaca a impressionante evolução recente do endividamento das famílias com base em dados do Banco Central. Em março de 2005, a dívida das famílias representava a 19,3% da renda familiar. Em março de 2015, a dívida acumulada equivalia a 46,5% dessa mesma renda. Essa perversa realidade, decorrente de juros altíssimos (nas economias mais desenvolvidas ficam entre 2 e 5% ao ano), revela: a) uma monumental transferência de riqueza da maioria da sociedade para um fração mínima de intermediários financeiros; b) uma profunda limitação à expansão do consumo e c) um poderoso obstáculo ao crescimento da atividade econômica. E não há limites para o travamento da economia brasileira por obra da financeirização selvagem.

Compete ao Senado Federal fixar uma série de limites relacionados com a dívida pública. São eles, segundo o art. 52 da Constituição: a) para o montante da dívida consolidada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; b) para as operações de crédito externo e interno da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de suas autarquias e demais entidades controladas pelo Poder Público federal; c) para a concessão de garantia da União em operações de crédito externo e interno e d) para o montante da dívida mobiliária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Élida Graziane Pinto, José Roberto Afonso e Lais Khaled Porto, no artigo “É inconstitucional a omissão em limitar a dívida pública federal”, afirmam com propriedade: “A dívida pública federal é o mais sensível termômetro das relações cada vez mais intrincadas e complexas entre instrumentos de política econômica: fiscal, monetária, cambial e, depois da crise global de 2008, creditícia (…) Com quase 30 anos de vigência, o desiderato constitucional de balizar a dívida pública federal — ainda que a LRF, há 17 anos, tenha dado um ultimato de 90 dias para que o tema ingressasse na pauta de debates do Congresso — sofre um impasse político travestido de omissão supostamente discricionária“.

É isso mesmo. São quase 30 anos sem a realização da determinação constitucional de estabelecer limites para a dívida pública da União (mobiliária e consolidada). Temos, nessa área, situação similar e igualmente surreal. São quase 40 anos sem a efetivação do comando constitucional que estabelece a auditoria da dívida pública brasileira.

Uma das principais questões econômico-financeiras do Brasil permanece distante do noticiário da grande imprensa e do paupérrimo debate em torno dos nossos problemas mais relevantes. Tratam-se das “operações compromissadas” realizadas pelo Banco Central do Brasil. O volume dessas operações cresceu tanto nos últimos anos que foi responsável por parte significativa do aumento do endividamento público.

Os condutores da política econômica brasileira transformaram um instrumento secundário de política monetária num monumental mecanismo de transferência de riqueza da maioria da sociedade para segmentos altamente privilegiados do intocável mercado financeiro.

Essas operações funcionam como “compras” de dinheiro dos bancos, realizadas pelo Banco Central, em troca de títulos da dívida pública com cláusula de revenda e pagamento de juros em patamares altíssimos. Esta é a evolução dos montantes das “operações compromissadas”, em bilhões de reais e em dezembro de cada ano: 2011 – 311,86; 2012 – 497,50; 2013 – 508,54; 2014 – 791,57; 2015 – 894,54; 2016  – 1.026,39 e 2017 – 1.113,15 (http://www.bcb.gov.br > Economia e Finanças >  Notas econômico-financeiras para a imprensa > Histórico > Política Fiscal > Dez/2017 > Quadro XXXVII – Operações compromissadas – Mercado aberto). Simplesmente não existem limites ou restrições para a realização dessas operações, como bem demonstram os números de sua evolução.

Registre-se a tramitação, na Câmara dos Deputados, do inusitado Projeto de Lei n. 9.248, de 2017. A proposição busca “legalizar” a trilionária prática das “operações compromissadas” sob a nomenclatura do “acolhimento, pelo Banco Central do Brasil, de depósitos voluntários à vista ou a prazo das instituições financeiras”.

O projeto simplesmente autoriza o expediente e remete para o BC a regulamentação da remuneração, das condições, dos prazos e formas de negociações. Limites? Não foram cogitados, claro. Além de inusitado, o projeto é inconstitucional. Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não é juridicamente válida a delegação de regulamentação na forma de um “cheque em branco”, sem a definição de parâmetros ou padrões a serem seguidos.

As reservas internacionais brasileiras chegam perto da impressionante cifra de 1,3 trilhão de reais. A maior parte desse estoque corresponde a títulos americanos que rendem juros baixíssimos. Não são poucos os economistas que condenam o nível exageradamente alto dessas reservas. O elevado custo de formação (ou de carregamento) também é objeto de fortes críticas.

Com efeito, o Brasil lança títulos remunerados por juros SELIC para captar os recursos a serem utilizados na formação das reservas em títulos americanos e dólares. Nos últimos anos, essas operações foram responsáveis por parte significativa do aumento da dívida pública. Nessa área, sintomaticamente, não existem limites (para o tamanho do estoque das reservas e para as operações com títulos públicos para formá-las).

Importa destacar um ponto especialmente curioso. Advoga-se uma tal “independência do Banco Central”. Independência de quem? É a pergunta. Só pode ser independência da soberania popular e das instâncias políticas eleitas.

Afinal, o atual BC, totalmente dependente do mercado, notadamente financeiro, sem a necessidade de nenhum arcabouço jurídico para tanto, opera com as “operações compromissadas”, formação de reservas internacionais, swaps cambiais e vários outros instrumentos bilionários e trilionários sem qualquer limite jurídico. Se for independente

Segundo dados do Ministério da Fazenda, divulgados pelo jornal Folha de São Paulo do dia 6 de agosto de 2017, de 2003 a 2016 os subsídios embutidos em operações de crédito e financeiras alcançaram quase R$ 1 trilhão. Desse total, cerca de 420 bilhões foram destinados para o setor produtivo. Deve ser destacado que a maior parte desses benefícios não aparecem expressamente no orçamento debatido e aprovado pelo Congresso Nacional. Como é de se imaginar, o tamanho desses subsídios não possui qualquer restrição. Literalmente, o céu é o limite …

Dados da Receita Federal e do Tribunal de Contas da União (TCU), divulgados pelo portal G1, indicam que as renúncias tributárias em 2017 chegaram a 406 bilhões de reais. Em 2016, o montante apurado foi de 378 bilhões de reais. Esses números não contemplam o benefício de cerca de 1 trilhão de reais para o setor de petróleo e gás.  Essa é outra área, onde são “perdidos” centenas de bilhões de reais por ano, sem qualquer tipo de limitação ou restrição.

É possível afirmar, a partir do panorama traçado, que sequer esgota a análise, que as abissais desigualdades socioeconômicas brasileiras são resultados de instrumentos cuidadosamente construídos para favorecer alguns poucos em detrimentos da grande maioria. Nesse triste cenário, a grande mídia e o rasteiro debate político e econômico visível esconde boa parte desses mecanismos e expõe, com insistência e intensidade, os gastos públicos relacionados com servidores públicos, seguridade social e políticas públicas de interesse popular.

Na minha modesta opinião, a superação aceitável e legítima deste quadro socioeconômico dantesco envolve uma profunda intervenção. A complexa e demorada intervenção popular a partir da conscientização e mobilização crescentes. Intervenção divina, militar, ditadura, enfraquecimento substancial do papel do Estado, salvadores da Pátria e outras soluções rápidas e mágicas são ilusões pueris e infantis ou manifestações transversas dos poderosos e condenáveis interesses dominantes já.

Aldemario Araujo Castro – Mestre em Direito, advogado, servidor público federal e professor universitário.


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