19/03/2024 - Edição 540

Saúde

A ponta do iceberg

Publicado em 18/04/2018 12:00 -

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Foi num domingo e chegou por WhatsApp. Em pouquíssimo tempo, a imagem de divulgação de um evento promovido pela Febraplan, a até então desconhecida Federação Brasileira de Planos de Saúde, se espalhou nos grupos de discussão que reúnem defensores do SUS. A propaganda do 1º Fórum Brasil prometia aos seus participantes nada menos do que o envolvimento na “ousadia de propor um novo Sistema Nacional de Saúde”. A Febraplan anunciava ainda a presença de senadores, deputados federais, órgãos do governo e outras entidades de representação do setor privado. Parecia provocação – pois não era um domingo qualquer, mas o seguinte ao Dia Mundial da Saúde, comemorado em 7 de abril, data que coincidiu este ano com a vigília seguida da primeira prisão de um ex-presidente brasileiro. Mas, como geralmente acontece, as coisas se revelaram mais complexas na sequência.

De um lado, o fórum da Febraplan, que aconteceu em Brasília no dia 10, foi um evento menos prestigiado do que seus idealizadores deram a entender. Nenhum representante do governo ou senador esteve presente. A cota de políticos foi preenchida por três deputados federais – Espiridião Amin (PP), Carmen Zanotto (PPS) e Marco Tebaldi (PSDB) –; todos de Santa Catarina, estado que, se descobriria mais tarde, é a base da própria entidade. Já a cota de membros do Executivo se circunscreveu ao passado, com a participação de Alceni Guerra, ex-ministro da Saúde do governo Fernando Collor.

Por outro lado, os relatos da reunião e, principalmente, o peso dado a ela se dividiram. Entidades acadêmicas e instituições científicas divulgaram notas de repúdio ao evento. Sempre por WhatsApp, no dia seguinte a sua realização, correram mensagens que ou reforçavam a indignação de parte da militância do SUS ou tentavam apontar para um contexto mais amplo, em que a Febraplan seria um ator novato tentando embarcar numa agenda que nada teria de nova. Ao contrário, vinha sendo vocalizada há anos por entidades do setor privado mais poderosas e influentes.

Ainda é cedo para dizer mas, até aqui, parece que a primeira dessas interpretações prevaleceu. Ou, ao menos, alcançou mais gente. Texto do coletivo de psicologia Integra que circulou com a chamada ‘Planos de saúde e governo articulam o fim do SUS!’ tinha atingido, hoje (16), mais de 31 mil compartilhamentos diretos no Facebook e sido reproduzido em vários sites. No GGN, do jornalista Luís Nassif, foi compartilhado 38 mil vezes. Já o artigo ‘A saúde do atraso: uma alternativa ao SUS autoritária e seletiva’, assinado pelo economista Rafael Barbosa para o Brasil em Debate, que apontava para o contexto, chegou a ser republicado pela Carta Capital e outros veículos, mas não conseguiu viralizar como o outro.

Fato é que a semana em que todas as atenções estiveram voltadas para o setor privado na saúde terminou de forma insólita. Na sexta, 13, o Instituto Coalizão Saúde (Icos), megaentidade criada em 2014 que aglutina o lobby de diversos segmentos, como hospitais, indústria farmacêutica, seguradoras e planos de saúde, promoveu em São Paulo um almoço muito bem frequentado.

Lá, estava o primeiro escalão do Executivo. O presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, foi o palestrante. Na mesa principal, os dois braços reguladores do setor – a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e a Agência Nacional de Vigilância em Saúde (Anvisa) – foram representados por nada menos do que seus presidentes, Leandro Fonseca e Jarbas Barbosa. O tema do debate – cenários e perspectivas econômicas para o setor da saúde no Brasil – não se restringiu ao mundo empresarial.

As propostas do Icos para o Sistema Único de Saúde foram, mais uma vez, repetidas para um auditório lotado. E, mesmo nos dias em que as antenas da militância estiveram voltadas para os variados sinais de pressão das empresas sobre o SUS, a reunião do Icos não chegou a ser captada por esse radar. Mas o fórum da Febraplan, sim. Talvez esse também seja um sinal: precisamos falar mais sobre o setor privado na saúde.

De volta às raízes

Acompanhar a atuação do setor privado e gerar massa crítica na sociedade a partir das distorções que a lógica mercantil traz para a saúde foi um pilar central da atuação do movimento da reforma sanitária, que surgiu na década de 1970 e, em relativamente pouco tempo, alcançou uma vitória inédita no plano político-institucional: a criação do SUS.

A disputa por um sistema público, universal e integral não foi travada sozinha pelos sanitaristas, mas argumentos fundamentados em números e indicadores que apontavam a ineficiência do modelo da época, em que o Estado basicamente contratava prestadores privados para oferecer procedimentos e internações à parcela da população brasileira que tinha carteira assinada, foram fundamentais para convencer a opinião pública de que uma crise estava instalada. E, portanto, alguma coisa precisava ser feita para reorientar a concepção de saúde e mudar a organização dos serviços.

“O movimento sanitário teve como característica monitorar a participação do setor privado, entender os lugares em que os empresários circulavam, como exerciam influência sobre os governos… A partir desse conhecimento, os sanitaristas conseguiram disputar na sociedade, de fato, suas ideias. Isso se perdeu ao longo dos 30 anos do SUS”, constata Leonardo Mattos, um dos coordenadores do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde (GPDES), baseado no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ, criado em 2014 com o intuito de preencher essa lacuna.

Não é de se espantar que tenha sido assim, pondera Mattos. Com a criação do Sistema Único de Saúde, os esforços dos sanitaristas se voltaram para sua implantação. Questões fundamentais para o funcionamento do SUS, como a estruturação da atenção básica e o debate sobre o financiamento público, foram ganhando destaque. O drama é que as empresas não ficaram paradas no tempo. “São muito diferentes do que eram antes do SUS. Aliás, são muito diferentes do que eram cinco anos atrás”, destaca.

Com exceção da indústria farmacêutica, as empresas de saúde brasileiras surgem nos anos 1960. Foram criadas por médicos que fundaram clínicas e hospitais, ou ofereciam para outras empresas, como fábricas, a assistência à saúde para seus funcionários. Durante a ditadura, o governo incentivou a expansão do setor privado através, por exemplo, de empréstimos da Caixa Econômica Federal com juros abaixo das taxas de mercado. “E o próprio governo, através da Previdência, comprava os serviços privados, em detrimento dos serviços próprios. Então nossa privatização não vem do liberalismo depois, como foi na Argentina. É anterior e vem do governo militar”, observa a sanitarista Sonia Fleury, que assessorou a Constituinte de 1988 nos temas da seguridade social.

“Esses atores já existiam antes do SUS e, depois de sua criação, também não nos preocupamos em regulá-los. E o Sistema Único de Saúde nasce altamente dependente de serviços privados, com 70% dos leitos contratados”, pondera ela, lamentando que nenhum governo tenha chegado a reverter essa proporção.

Mas se as ligações entre público e privado continuaram, de lá para cá, muita coisa também mudou. “O setor empresarial da saúde era muito menor, mais pobre e, principalmente, muito menos complexo do que é hoje”, assegura Fleury, que continua: “Com a permissão do capital internacional na saúde, vemos a entrada de multinacionais no mercado. Há toda uma dinâmica que não existia antes do SUS. Por isso, o setor privado é um oponente muito mais forte do que naquela época”.

Novas criaturas

Em novembro de 2012, depois de uma negociação que durou três anos, a Amil fechou um acordo de venda com a americana UnitedHealth, uma das maiores empresas do setor no mundo. A transação, na casa dos R$ 10 bilhões, fez surgir uma nova criatura no mercado de saúde brasileiro. Com 90% do capital em mãos estrangeiras, a operadora de planos de saúde se situava em uma zona jurídica cinzenta. Isso porque a lei mais importante da saúde depois da Constituição, a 8.080, vedava a participação externa em vários negócios, como hospitais, clínicas, laboratórios e até serviços de planejamento familiar. Mas a lei 9.656, dos planos de saúde, não colocava a interdição de forma explícita.

Mesmo assim, não demorou muito para surgirem criaturas de todos os tipos. Uma dinâmica de aquisições e fusões tinha se instalado no setor – e além dele. Um banco de investimentos, o BTG Pactual, foi às compras. Adquiriu a Rede D´Or, de hospitais, e a BR Pharma, de drogarias. A Rede D´Or, por sua vez, entrou em expansão e arrematou em cinco anos mais de 30 hospitais pelo país. Já a BR Pharma viveu ascensão e queda dignas do ciclo especulativo: depois de se tornar uma das maiores redes do país, pediu recuperação judicial no início do ano.

Há muitos outros exemplos. Na verdade, eles se multiplicam. O ritmo e o caráter das transações que movimentam o setor privado na saúde hoje desafiam os observadores incautos, desorientam os leigos. É o resultado, explica Leonardo Mattos, da combinação entre o período de bonança dos anos 2000 com a financeirização da economia. “O mercado da saúde começou a crescer mais do que outros setores da economia. É um bom momento para a indústria farmacêutica, planos de saúde, farmácias e drogarias. O varejo farmacêutico, por exemplo, cresceu num ritmo de 15% a 20% ao ano entre 2000 e 2015, quando estoura a crise”, observa. Já o fenômeno vigente da financeirização da economia tem impacto em várias dimensões, inclusive no funcionamento das empresas.

“A financeirização afeta a forma como as empresas atuam. Vemos um processo de concentração cada vez maior, as maiores empresas em seus segmentos começam a abrir capital na bolsa de valores. O acesso ao mercado financeiro é essencial para ultrapassar a concorrência. As empresas buscam oportunidades de crédito, captação de investidores para, assim, conseguir sustentar o ritmo de crescimento”, descreve Mattos.

As empresas da saúde começaram a diversificar suas atividades. Os planos de saúde começam a investir em operações financeiras, como aplicações em fundos de investimento. A partir da crise econômica em 2015, há queda brusca na quantidade de clientes. “Mas a lucratividade das empresas não diminui, continua aumentando. Isso tem a ver com sua atuação no mercado financeiro”. Os grandes hospitais filantrópicos, como Albert Einstein e Sírio Libanês, passaram a atuar como Organizações Sociais de Saúde (OSS) e escolas de formação. “O que também tem um viés lucrativo”, sublinha o pesquisador.

Alguns micromercados especializados também passaram a despertar o interesse do setor. Hoje, empresas como ePharma e Orizon atuam como intermediárias entre os planos de saúde e o varejo farmacêutico e oferecem descontos em produtos e medicamentos nas farmácias para os clientes desses planos, mediante a apresentação da carteirinha. Ou cadastro do CPF. A Cassi, plano de saúde dos funcionários do Banco do Brasil, é sócia do Bradesco Seguros e da Cielo na Orizon.

Em março de 2018, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) aprovou a joint venture da Amil com a Dasa, que é a segunda maior empresa de medicina diagnóstica do país. Juntas, estão criando uma rede de clínicas populares. “São pequenos segmentos lucrativos que estão sendo incorporados pelas grandes empresas. Esses negócios às vezes passam por dentro do SUS, outras não, mas estão em uma região que afeta o sistema de saúde como um todo”, constata Mattos.

Mui colaborativos

Segundo a historiadora Ialê Falleiros, da Escola Politécnica de Saúde da Fiocruz, prevaleceu nos anos 1990 a cultura de crise entre movimento sanitário e setor privado, em que um polo era acusado de querer estatizar tudo e o outro demandava mais liberdade para o mercado. As coisas mudam nos anos 2000. É onde a pesquisadora localiza o início do que chama de cultura de colaboração.

“Tanto por parte de entidades empresariais, quanto por parte de agentes do Estado surge o discurso de que público e privado têm que trabalhar conjuntamente para garantir os interesses da população. Os empresários passam a se colocar como parceiros do SUS”, explica Leonardo Mattos.

As empresas se deram conta de que seus negócios não estavam ameaçados pelo Sistema Único, continua ele. Pelo contrário. “Você poderia ter um sistema público que garantisse uma certa estabilidade sanitária no país e, por outro lado, ter um setor privado que recebesse dinheiro público sem limites”, diz.

É nesse contexto que, em alguns círculos, começa a aparecer a expressão Sistema Nacional de Saúde – resgatada pela Febraplan mais de uma década depois. Sonia Fleury a ouviu pela primeira vez em um evento do PSDB paulista. “A proposta deles era fazer uma ‘outra reforma sanitária’, que eles chamavam de quarta reforma sanitária. A primeira seria a que deu origem ao SUS, a segunda teria sido a criação das agências reguladoras da saúde, a terceira seria a prestação de serviços privados em modalidades de contratação tipo OSS, que não se resume à compra do serviço, mas abarca a própria gestão da coisa pública”, lista. A tal quarta reforma, relembra Fleury, partia do argumento de que o sistema público e o setor privado sobrepunham esforços, não tinham uma lógica comum e que, sob a bandeira da racionalização, seria desejável integrá-los. “Eles me instaram a atualizar o discurso em relação a isso”, ri.

A sanitarista sublinha que a proposta não deve ser entendida em termos tecnocráticos, mas políticos. “Na verdade, se trata de um modelo de governança em que o privado quer ter o poder de decidir. O principal alvo deles ao colocar em pauta um sistema nacional – porque já tem PPP [parceria público-privada], já tem compra de serviços; tudo isso já existe – é ter poder decisório sobre a política de saúde”, alerta.

Para ela, é uma nova fase da velha disputa pelo fundo público e o que está em jogo é se esses recursos vão atender às necessidades do conjunto da sociedade ou aos interesses empresariais. “Isso sempre esteve em disputa, desde a Constituição. Mas, agora, ganhou um novo caráter: porque estão mais animados, porque o governo é mais favorável, porque a esquerda está mais debilitada, porque conseguiram aprovar um teto de gastos que desmonta mais ainda as políticas públicas. É uma conjuntura que favorece o protagonismo político dos empresários”.

Novas vozes

Paralelamente às transformações econômicas deste século, novas entidades de representação surgiram para vocalizar os interesses de empresas cada vez mais tentaculares. E lançaram mão de outras estratégias – na linha da cultura da colaboração.

Criado em 2010, o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), uma espécie de think tank das empresas de planos de saúde, na descrição de Leonardo Mattos, produz informações como instrumento de pressão para a disputa política. “Nessa linha, o IESS desenvolveu um índice, batizado de VCMH, que pretende medir a inflação médica – e é usado basicamente para subsidiar a ideia de que os custos dos planos de saúde são muito acima da inflação geral, medida por índices como o IPCA. A partir disso, as empresas vão disputar reajustes e recursos – e acabam nunca ‘pagando o pato’”.

Por sua vez, a Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp), fundada em 2001, também perseguiria, 13 anos depois, a linha de atuação think tank, se tornando pioneira em uma nova frente de atuação do setor privado junto à opinião pública. “Nós não podemos, única e exclusivamente, estar focados em reivindicações corporativistas (sic.)”, me disse, em 2016, Francisco Balestrin, presidente da entidade, em entrevista concedida para matéria da revista Poli. Assim, segundo ele, a partir da publicação do Livro Branco da Saúde, a Anahp deixou de ser uma entidade com “interesses” e passou a “ter causas”.

E a causa da Anahp é o SUS. Ou melhor, um SUS totalmente integrado ao setor privado e coordenado por este. Um SUS que continua SUS mesmo deixando de sê-lo. Nas eleições de 2014, o Livro Branco foi entregue a uma vasta gama de presidenciáveis, dentre outros candidatos a cargos majoritários e proporcionais de todos os níveis. Também foi parar nas mãos do ex-presidente da ANS, André Logo, e nos ouvidos dos paulistanos através de spots na rádio Jovem Pan.

As eleições daquele ano também são o ponto de origem do Coalizão Saúde. Nascido como “movimento” com manifesto e tudo, o Coalizão começou sua interlocução com a opinião pública através de artigos assinados por seu presidente, Claudio Lottenberg, e vice-presidente, Giovanni Cerri, em jornais como Folha de S. Paulo e Estadão. Queria que a saúde fosse mais debatida no pleito de 2014, dominado pela polarização entre esquerda e direita no contexto pós-Junho. A ‘saúde’, contudo, eram obviamente as propostas do setor privado para a saúde: mais PPPs, menos regulação e por aí vai. Eleita Dilma Rousseff e instalada a crise política, foram a público defender que as empresas tivessem um maior protagonismo nas indicações para a pasta depois da ida do deputado federal Marcelo Castro para o Ministério da Saúde.

Já tornado Instituto, o Coalizão Saúde encontrou em outro deputado, Ricardo Barros, um interlocutor bastante atento no Ministério. Na primeira semana à frente da pasta, ainda na época do governo interino, Barros fez uma viagem à São Paulo que apareceu na sua agenda oficial como uma visita ao Hospital Israelita Albert Einstein, mas foi divulgada pelo site do Ministério como uma reunião com o Coalizão Saúde. Proposital ou não, a origem da confusão não era outra senão o fato de Einstein e Coalizão terem um dirigente em comum: Lottenberg, então presidente do hospital; hoje presidente do UnitedHealth Group no Brasil.

A ida de Ricardo Barros a São Paulo foi um bate-volta. De maneira vaga, o Ministério divulgou que a reunião serviu para discutir “oportunidades para melhorar o sistema de saúde brasileiro”. Nas vésperas da aprovação do impeachment de Dilma Rousseff no Senado, a coisa já tinha avançado a ponto de o Coalizão Saúde ser recebido por Michel Temer no Palácio do Planalto. No dia da posse do presidente, Claudio Lottenberg estava lá.

O Icos tem entre seus membros fundadores uma entidade que, ao longo do governo Temer, diria ao que veio. A Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), foi a única indicada a integrar um grupo de trabalho criado por Ricardo Barros para viabilizar os planos populares de saúde. Para quem não lembra, até a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) ficou sabendo pelos jornais da criação desse GT. A FenaSaúde atua no Congresso Nacional pela aprovação de um novo marco legal para os planos de saúde.

Já o Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde (Ibross), fundado em 2015, anunciou este ano que também pretende impulsionar a aprovação de um novo marco legal para as OSS no Congresso. A entidade, esclarece Leonardo Mattos, está longe de representar um segmento não lucrativo. “A projeção que nós temos é que só em 2016 a SPDM faturou R$ 6 bilhões em contratos de gestão e termos aditivos em prefeituras dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Com R$ 6 bilhões, ela já está entre as dez maiores empresas de saúde do Brasil – apesar de ter a natureza jurídica de uma instituição filantrópica e, por isso, não ter que prestar contas”, conta o pesquisador. No site do Ibross, uma das últimas notícias dá conta de um evento realizado no fim do ano passado em parceria com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), a voz dos estados na comissão que define todas as políticas do SUS.

Além de agirem sobre todos os níveis do Executivo e Legislativo, as entidades também atuam no Judiciário. Mattos destaca que, em 2009, a Anvisa proibiu a venda de medicamentos fora do balcão. “O que é algo bem razoável, ainda mais considerando que a regulação do comércio brasileiro é completamente liberal”, nota. A Abrafarma, entidade que representa farmácias e drogarias, entrou na justiça em vários estados alegando que a resolução da Agência era inconstitucional. “Eles ganharam no STJ, ganharam no STF e a Anvisa retirou a obrigatoriedade”, conta.

O coordenador do GPDES destaca que a influência do setor privado da saúde no Estado pode se dar tanto por meio dessas várias entidades representativas, quanto por ações diretas de empresas. “O que é mais sério ainda”, considera Mattos.

A aprovação do capital estrangeiro na saúde, que deu tranquilidade (ou, na linguagem corporativa, segurança jurídica) à nova criatura Amil UnitedHealth é o exemplo mais paradigmático, segundo as fontes ouvidas pela reportagem. “Tudo começou com uma medida provisória enviada pela presidente Dilma ao Congresso que tratava de um assunto completamente diferente, mas, durante a tramitação na Câmara, se implantou uma série de jabutis, dentre eles, a aprovação do capital estrangeiro. E isso passou. E foi sancionado em 2015. Anos depois, em uma delação premiada da Lava Jato, esse assunto reapareceu. A denúncia é que o jabuti foi encomendado pelas empresas e que a lei seria, portanto, produto de corrupção”, resume Grazielle David, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e conselheira do Centro de Estudos Brasileiros em Saúde (Cebes).

“Não podemos tomar isso como fato. Precisa ser investigado. Mas Amil e Rede D´Or são duas empresas que tinham razões para se preocupar com a insegurança jurídica, já que tinham um investimento importante de capital estrangeiro”, pondera Mattos, que completa: “Em 2014, a partir desse episódio, começam a ficar mais evidentes os reflexos das transformações pelas quais passou o setor privado da saúde no Brasil. Temos as transformações econômicas das empresas e as mediações políticas que passam a acontecer com essa mudança de patamar”.

Ilustre desconhecida

No universo da representação da saúde suplementar, duas entidades dividem espaço. Uma delas é a FenaSaúde, a outra a Abramge. A primeira engloba seguradoras como Bradesco Saúde e outras operações ligadas ao setor bancário. Por isso, segundo Leonardo Mattos, é a entidade mais forte. A Abramge, por outro lado, contempla empresas regionais de médio porte – o que não é pouca coisa, pois o mercado da saúde é muito pulverizado no país: de um lado, alguns grandes grupos econômicos; de outro, muitas pequenas empresas regionais, que atendem uma considerável parcela do mercado. É nesse cenário que entra em cena a desconhecida Febraplan.

José Sestelo, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em entrevista ao Portal EPSJVdeu cor à personagem. Segundo o pesquisador, que também é membro do GPDES, o presidente da Febraplan é Pedro de Assis, dono da Agemed, operadora de planos de saúde com sede em Joinville (SC). A empresa de médio porte estaria em processo de expansão e, como consequência, teria partido também para um voo solo de representação.

“A informação que nós temos é que a Agemed está liderando um movimento com empresas menores para buscar um outro espaço de representação de seus interesses que não seja a Abramge ou a FenaSaúde, que são dominadas pelos pesos pesados. É algo bem recente”, retoma Mattos.

Para Sestelo, toda a repercussão gerada pelo evento acabou sendo benéfica para a Febraplan. “Ela não tem uma representatividade muito grande no meio empresarial, mas pretende ter. E esse evento do dia 10 é um exemplo dessa estratégia de marketing, de promoção, de expectativa ou perspectiva de crescimento da Agemed e da Febraplan, e que acabou tendo a meu ver uma repercussão muito maior do que deveria, dado o seu conteúdo e os seus participantes”, disse.

Pelo que deu para ver, de fato, o arco de influência da entidade é muito restrito no Congresso Nacional e talvez inexistente no Executivo federal, visto que o palestrante que vestiu a roupa de ‘autoridade’, Alceni Guerra, ocupou o Ministério da Saúde há nada menos do que 26 anos.

“Metade dos participantes do evento eram associados, mas eu diria que a outra metade era composta por pessoas que estavam ali para ouvir e fazer a crítica posterior. Pelo menos ao meu redor tinha muita gente conhecida”, relata Grazielle David, que esteve na parte mais disputada do evento, pela manhã. O 1º Fórum da Febraplan reuniu cerca de 60 pessoas nas contas dela.

“Os documentos da Anahp e do Coalizão Saúde causam impactos mais sérios, mas, ao que parece, poucas vezes um evento ganhou tanta amplitude social como esse da Febraplan”, pondera David. Para ela, a entidade estreante no universo de atores privados foi mesmo ‘ousada’: “A Febraplan organizou um evento sem qualquer fundamentação técnica.  Conseguiram fazer uma boa propaganda, todo mundo está falando. Agora, é extremamente ousado fazer marketing para uma apresentação péssima e uma proposta risível”, critica.

Segundo David, e de acordo com outros relatos que circularam no WhatsApp, a ANS foi o alvo central da Febraplan. “A grande queixa e reclamação foi com relação à Agência que, segundo a entidade, deveria ser substituída pelo Conselho Nacional de Saúde Suplementar, que teria como membros as empresas. Isso porque a regulação afetaria o tal poder de escolha do consumidor de planos de saúde, que é uma falácia – já que na saúde ninguém escolhe qual tratamento vai precisar como em outros mercados se escolhem os produtos a serem adquiridos. O Estado precisa regular, é assim em todo o mundo”, nota ela. Na apresentação, feita por Norival Silva, diretor de governança e marketing da Febraplan, o tal novo Sistema Nacional de Saúde é um sistema em que os planos de saúde ficam livres de qualquer regulação.

Já o ex-ministro Alceni Guerra apresentou um PowerPoint que correu as redes sociais. Nele, aparece a meta de que daqui a 20 anos, em 2038, metade da população brasileira seja beneficiária de planos de saúde. Hoje esse número está na casa dos 25%. “Essa apresentação foi mais longe ao trazer uma série de afirmações sem consistência, como a de que cada R$ 1 que o governo investir na alta complexidade dos planos de saúde, o SUS ganharia em eficiência. Isso é extremamente contraditório. O mínimo seria apresentar um estudo econométrico para subsidiar a afirmação. Quando questionado, Guerra falou que não tinha os números, mas que a FGV estaria construindo algo naquele sentido. E recomendou que o Ministério da Saúde contratasse a FGV”, relata a assessora do Inesc.

Para ela, a proposta da Febraplan é basicamente retirar dinheiro do SUS para colocar nos planos de saúde. “Isso, quando o país já tem uma série de benefícios tributários voltados para esse segmento. Eles tiveram a ousadia de afirmar que os planos de saúde economizam R$ 65 bilhões para o SUS porque, supostamente, a pessoa que tem plano de saúde não usa o SUS. Já começa um problema grave aí, porque todo mundo usa o SUS, inclusive, muito além da assistência, como na vigilância em saúde, na imunização. E uma série de procedimentos da alta complexidade, como tratamento oncológico e transplantes, acontecem no setor público também”, argumenta David.

Na avaliação de Sonia Fleury, o evento da Febraplan é mais um exemplo concreto de que o setor privado não tem qualquer interesse em acabar com o financiamento público, ao contrário: precisa dele, e o está disputando. “Essas empresas se deram conta de que na América Latina o segmento de planos de saúde não ultrapassa 25% da população em nenhum país, porque a classe média é achatada. Qual é a única possibilidade de expansão? Através do fundo público. Então, o fato de o Estado garantir o direito à saúde para todo mundo é lucro, desde que o dinheiro seja canalizado para o tipo de medicina que eles fazem”, explica.

Cavalo selado

Como o evento da Febraplan deixa entrever, o discurso do setor privado está longe de ser imbatível. A mensagem de propostas como o novo (velho) Sistema Nacional de Saúde é que o setor privado é mais eficiente e eficaz do que os governos, portanto, capaz de “ajudar” a “fortalecer” os serviços públicos, seja por meio de planos de saúde que “desoneram” e “desafogam” o SUS, seja por meio de uma integração que daria maior racionalidade, evitando duplicação de esforços.

Eles tentam dar um verniz tecnocrático a essas propostas como se não partissem de uma intenção política, como se não existissem interesses em disputa, como se tudo se resumisse a uma racionalidade técnica. Ora, se você se espelhar no exemplo dos Estados Unidos, que tem uma relação muito forte entre público e privado; onde mesmo no público o serviço tem que ser oferecido através do setor privado, fica clara a ineficiência. Não tem racionalidade nenhuma nisso. Os interesses empresariais sempre serão interesses não planejáveis pelo setor público porque visam a maximização dos lucros. Esse verniz de planejamento, racionalidade e eficiência é completamente ideológico”, constata Sonia.

Para a sanitarista, a fragilidade de discursos como da Anahp e do Coalizão Saúde pode ser explorada por duas vias. “Eles propõem esse modelo novo de governança e querem governar a política pública do país, mas que eles têm a oferecer quando há interesses que são irreconciliáveis? Há interesses contraditórios entre socialização da medicina e capitalização de lucros – essa é uma questão. Eles querem canalizar para um dos lados, o deles”.

“É bom que mais gente fique indignada com isso”

A outra ponta solta, patente no evento da Febraplan, é que se propõe uma solução estrita de mercado porque as empresas sabem que o mercado não existe. “Então querem uma solução de mercado financiada pelo público. Eles são frágeis nesse sentido: para se ampliar, precisam do dinheiro público. E isso é uma fragilidade. Não é um setor de mercado normal, é um setor de mercado que quer ser coparticipe da política para ter acesso preferencial ao fundo público”.

Já para Leonardo Mattos, assim como para o conjunto dos pesquisadores do GPDES que lançaram na última sexta (13) uma nota que contextualiza os últimos anos de atuação do setor privado na saúde, é preciso ter em mente que mesmo iniciativas em bloco como o Coalizão Saúde não apagam interesses conflitantes entre os vários segmentos da chamada cadeia produtiva da saúde. “O Coalizão Saúde é importante nessa direção. Nós temos que ficar preocupados e ficar de olho. Mas ainda não dá para dizer que vai conseguir cumprir esse papel. O que dá para saber é que eles estão se organizando e que vão ter influência. Mesmo que eles não consigam fazer a reforma no sistema de saúde, minimamente, vão influenciar as políticas públicas nos próximos tempos” alerta.

Mattos dá o exemplo da Interfarma, principal entidade da indústria farmacêutica internacional no Brasil, que publicou, em parceria com a Anahp, um documento questionando o IESS e as operadoras de planos de saúde com relação aos custos da saúde. A ideia é que a culpa dos preços não era nem das indústrias, nem dos hospitais. O problema era das operadoras. “Há polêmica entre eles”, nota.

Outro ponto em que as empresas têm muita divergência, de acordo com o pesquisador, é sobre qual seria o melhor modelo de remuneração para os prestadores privados no SUS. “É uma mistura de disputa de ideias com disputa de mercado. Se a gente não entender essa dinâmica e as fraquezas deles, nós não vamos conseguir discutir um processo estratégico de curto, médio e longo prazo”, alerta Mattos. E emenda: “Eu gostaria que essa polêmica impulsionasse outros grupos a estudarem o setor privado. Há muito material, nós precisamos nos debruçar sobre isso. Acho que o tema tem despertado o interesse das novas gerações de pesquisadores”.

Para ele, o desafio é não deixar que o cavalo selado passe, e aproveitar o barulho gerado pelo episódio da Febraplan para qualificar o nível geral de informação sobre o setor privado. O evento despertou a indignação de alguns setores que não acompanham o tema – é bom que mais gente fique indignada com isso”, diz.


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