26/04/2024 - Edição 540

Judiciário

Justiça se tornou refém do liberalismo e da religião

Publicado em 15/03/2018 12:00 -

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Existe na sociedade hodierna um intenso debate acerca do que a Justiça exige e permite. Há Justiça na permissão do aborto, da tortura? Há Justiça na desigualdade de renda e propriedade? Infindáveis são as possibilidades de indagações acerca do que a Justiça vindica ou autoriza, abarcando também importantes divergências de opiniões nas respostas a tais questionamentos.

Não há consenso na concepção sobre o justo, muito pelo contrário, existe uma imensidão de diferentes concepções dentro de uma sociedade e dentro de um mesmo indivíduo, de modo que justiça pode ora significar equidade, ora meritocracia.

Como se não fosse suficiente, o processo educacional leva a um caminho em que inexiste inclusive coesão na nossa forma de pensar individual, eis que agregamos diversas tradições e diferentes estágios de racionalidade moderna, que chocam entre si o tempo todo.

Não raro é encontramos em nosso meio social aqueles que defendem veemente a proibição do aborto, argumentando o valor inexorável da vida humana, mas ao mesmo tempo, defende a pena de morte.

Nem mesmo a tentativa de solucionar tantos desses conflitos mediante o uso (ou construção) da racionalidade é exitosa. Visto que também há um grande emaranhado de racionalidades, sendo praticamente impossível escolher dentre tantas possibilidades conflitantes e que disputam nossa adesão moral, política e social, um único padrão de racionalidade que conceitue adequadamente o que é justo.

Ademais, mesmo com tantas e profundas discordâncias, não existem foros de debate específicos para solucionar tais questões, não existem para sequer discuti-las.

Segundo grande teórico do conceito de Justiça, Alasdair MacIntyre, vivemos em uma sociedade que prega a grande farsa do “consenso”, que acaba mascarando por diversas vezes a complexidade – e a própria existência – de tais conflitos. E aí, acabam desistindo de discutir temas polêmicos e pontuais, como é o caso da união homoafetiva, políticas de cotas, aborto etc.

Os poucos que não desistem do debate, buscam respostas ou mais esclarecimentos na filosofia acadêmica ou em grupos cujas crenças sejam comuns às suas, conforme explica o teórico.

A filosofia acadêmica parece até ser um recurso interessante, em um primeiro olhar, mas aprofundando podemos perceber que ela só possui a capacidade de meramente elucidar os pontos conflituosos, mas nunca de resolvê-los.

Muitos teóricos defendem que a resposta somente será obtida após uma espécie de “desencarnação” axiológica, deixando de lado, a priori, todas e quaisquer concepções que sugiram parcialidade valorativa. No entanto, paira aqui uma grave contradição performativa, eis que essa determinação já consiste em uma valoração: a de que não se deve valorar.

Não há racionalidade sem interesses, o discurso de uma racionalidade totalmente desprovida de interesses e valores, homizia os interesses do individualismo liberal.

Toda a retórica de imparcialidade e neutralidade não passam de uma farsa dialética, representando na verdade grandes parcialidades e inclinações.

O que é ou não racional pode ser construído com base em diversos preceitos, concepções e valores, mas nunca pode sustentar a si mesmo. É quimérica a ideia de que a racionalidade possa fundamentar seus próprios pressupostos do que é ou não racional.

É impossível eliminar certo grau de incerteza acerca do que é racional, acerca do que é justo, diferentemente do que prega, dissimuladamente, o discurso liberal.

“A discordância surge no que concerne à natureza fundamental da racionalidade e prolonga-se na discordância sobre como é racionalmente adequado proceder perante essas discordâncias” (MacIntyre).

Por isso afirmei que a filosofia acadêmica só é capaz de esclarecer os pontos de conflito, as vezes até é capaz de aprofundá-los, mas nunca capaz de solucioná-los, não em relação à natureza da racionalidade e nem em relação à concepção do que é justo.

De igual modo, não encontrarão soluções práticas, sequer teóricas, para os conflitos, àqueles que os buscam nas crenças firmadas em grupos sociais, posto que esses não cedem seus votos de confiança à argumentos sólidos e racionais, mas sim à outras pessoas.

A defesa de certos axiomas ou dogmas se justificam não num padrão de racionalidade, mas sim em argumentos de autoridade, isto é, são padrões impostos muitas vezes por autoridades religiosas, como o Papa, ou pastores.

Pela falta de argumentação e de embasamento teórico, tais crenças não podem ser tidas como verdades absolutas, principalmente porque nem toda a sociedade está inserida naquele grupo do qual advém determinada crença. É mais ou menos aquele ditado popular: “Sua religião não dita minhas regras”. 

Toda afirmativa deve ser racionalmente embasada e sustentada, do contrário torna-se mera arbitrariedade ou tolda interesses secundários daqueles que possuem alguma capacidade, ainda que mínima, de argumentação racional, refletindo ambas as situações em um cego e obcecado fideísmo.

Dessarte, parece que diuturna e paulatinamente nos tornamos mais reféns de uma dita concepção radicalmente liberal ou religiosa de Justiça e racionalidade.

E, paralelamente, perde-se cada vez mais força o poder do discurso e da dialética, com o aprofundamento de argumentos, o debate tem se tornado progressivamente mais pobre e nós, subalternos da pusilanimidade.

Nos afastamos dos ideais de justificativa racional. “Justificar é narrar como o argumento chegou ao ponto em que está” (MacIntyre).

A escolha entre visões incompatíveis de justiça deveria se dar por meio de um tipo de pesquisa racional que leve em conta a tradição social, intelectual e histórica em que determinada ideia está inserida. Isto é, teses e argumentos devem sempre ser adequadamente justificados e compreendidos em seus próprios contextos históricos, nos quais foram formulados.

A diversidade de ideias e de argumentos nunca será resolvida, mas o que por hora é um problema, pode ser convertido em possível solução, afinal, há Justiças, não Justiça, há racionalidades e não racionalidade.

O reconhecimento da infinidade de argumentos existentes é que possibilita a compreensão de suas características, condições e naturezas.

A princípio, o problema da diversidade e pluralidade de argumentos não se aterma, mas transforma-se para que se possibilite sua solução. Isto é, o retorno à pesquisa racional dentro de cada tradição específica não resolve, à partida, os conflitos, mas permitem uma melhor compreensão das diversidades e divergências, abrindo caminho para uma solução posterior, que não seja rasa e superficial como a argumentação de poder baseada em crenças e autoridades, nem vã e hipócrita como a argumentação proposta pelos liberais.

Thiago DiasMestrando em Direito nas Relações Econômicas e Sociais, Advogado, Diretor de Jovens Juristas da União da Juventude Socialista de Minas Gerais e Pesquisador nas áreas de Democracia e Direitos Humanos


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