19/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Entrevista: Paulo Cabral, sociólogo

Publicado em 23/05/2014 12:00 -

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Recentemente o juiz da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Eugênio Rosa de Araujo, recusou um pedido do Ministério Público Federal para retirar do YouTube vídeos postados pela Igreja Universal que fazem ataques a umbanda e ao candomblé – por entender que os cultos afro-brasileiros não podem ser considerados religiões. Apesar de ter se retratado posteriormente, o juiz, com sua postura, chamou a atenção da sociedade para o preconceito contra as religiões de matriz africanas. Para analisar o tema entrevistamos o sociólogo Paulo Eduardo Cabral.

 

Por Victor Barone

Recentemente o juiz da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Eugênio Rosa de Araujo, recusou um pedido do Ministério Público Federal para retirar do YouTube vídeos postados pela Igreja Universal que fazem ataques às crenças de origem africana – como a umbanda e o candomblé – por entender que os cultos afro-brasileiros não podem ser considerados religiões. Tem fundamento este tipo de posicionamento?

Parece que não. O que ele alega é que para ser religião seria preciso uma codificação por escrito. As religiões de matriz africana são fundadas na oralidade, até porque os negros africanos compulsoriamente trazidos para cá como escravos, em sua imensa maioria, como toda a população pobre, era analfabeta. Até início do século XX, a taxa de analfabetismo no Brasil era algo em torno de 90%.

Outra afirmativa dele é de que haveria a necessidade da crença em um único Deus.

De certa maneira ele revela um nível de ignorância. No catolicismo os santos, os anjos e os arcanjos seriam deidades. Ele desconhece que no candomblé, por exemplo, Olorum poderia ter uma equivalência ao Deus cristão. Trata-se de uma argumentação bastante discutível e que revela uma profunda ignorância em termos antropológicos que, me parece, é resultado não só racismo, mas, sobretudo, de algum fanatismo religioso.

Trata-se de uma argumentação bastante discutível e que revela uma profunda ignorância em termos antropológicos que, me parece, é resultado não só racismo, mas, sobretudo, de algum fanatismo religioso.

Foi um caso de racismo?

De um modo geral nós tendemos a parecer abertos, tolerantes e etc. Ainda há quem imagine que o Brasil não seja uma sociedade racista. Quando temos atitudes como a deste juiz, que para não manifestar seu racismo tenta desqualificar a religião de matriz africana fica claro que o racismo permeia toda a estrutura da nossa sociedade. Assim como o fanatismo religioso, o racismo é perigoso. Me parece que este episódio revela como o racismo circula entre nós, no Judiciário inclusive, mesmo que de forma velada. O racismo entre nós é uma coisa hipócrita, que circula sem a clareza e a evidência da sentença deste juiz. Portanto torna mais difícil o seu combate. Então, neste particular, este juiz traz até uma contribuição importante por pautar o tema e permitir que a discussão seja posta.

Ele também usou com o argumento a necessidade de uma hierarquia religiosa.

Quando ele faz esta alegação, ele esta desconhecendo que no candomblé e na umbanda há uma hierarquia dos pais e mães de santos, dos babalorixás e ialorixás, dos filhos de santos, etc. Talvez o que ele quisesse se referir fosse à ausência de uma hierarquia institucionalizada, que de fato as religiões de matriz africana não têm.  Se o sujeito é um filho de santo, tem uma capacidade mediúnica para incorporar a entidade e tem meios para fundar uma casa, ele não precisa de autorizações. Mas, guardadas as devidas proporções, se a gente pensar a proliferação de denominações evangélicas, por exemplo, elas também são descentralizadas, diferente da igreja católica, que tem uma centralidade de comando muito forte do Vaticano. Nas evangélicas, se você tem um bom conhecimento das escrituras, uma boa capacidade de comunicação que te permitem evangelizar, você pode perfeitamente fundar uma denominação. Portanto, sobre todos os aspectos, me parece de uma impropriedade e de uma infelicidade absoluta a sentença deste juiz.

Ele também elencou a necessidade de uma liturgia como fundamento para a sua decisão. Há algum ponto forte neste argumento?

No caso do candomblé existe uma liturgia extraordinária, que engloba todos os sentidos. Você tem o som do batuque que é muito poderoso. Você tem as cores. O congar, o terreiro, a casa, a tenda, seja qual for a designação que se de ao templo afro, ele é muito rico em cores. Você tem os cheiros dos incensos, dos tabacos, enfim. Você tem o canto, que é algo extraordinário também. A liturgia e a ritualística são muito ricos. O canto não é uma forma de ritual?

Na tradição protestante a liturgia se dá fundamentalmente em cima do hinário…

Exato. No candomblé e na umbanda os pontos se equivaleriam ao hinário protestante. Portanto, há uma liturgia riquíssima e uma ordem muito clara para os adeptos. Evidentemente, se o sujeito se posta em uma posição etnocêntrica, como ele fez, não dá conta de chegar ao que a religião é, de compreender seu significado, e aí acaba fazendo uma leitura a partir de sua perspectiva, dos seus valores e crenças e tenta desqualificar o outro, aquilo que não é seu.

Quando você pega o viés religioso tentando intervir no Estado ele nega a essência republicana que o Estado tem, ou seja: o de atuar a serviço de todos e para todos.

Para que a religião exista qual é o objeto essencial?

É a fé. Se eu creio em algo, esta coisa na qual eu creio passa a ter existência. O que dota um objeto religioso de existência é justamente a fé que a pessoa tem em relação a ele. O que este juiz diz, portanto, é de uma absoluta impropriedade do ponto de vista antropológico. Do ponto de vista antropológico e do relativismo cultural você não tem uma religião ou uma cultura melhor ou pior, certa ou errada, superior ou inferior. A cultura é um objeto não valorável. Se ela esta respondendo as necessidades do grupo, ótimo. A religião, por sua vez, tem a possibilidade de religar o homem com este elo que a ciência não dá conta de responder. Se ela está religando com este universo anterior e posterior a esta existência terrena está cumprindo sua função.

Ao propor a retirada dos vídeos do Youtube, o Ministério Público não estaria restringindo a liberdade de expressão ao proibir que críticas sejam feitas a religiões?

Se eu tenho uma ordem que pressupõe a tolerância religiosa, eu não posso, sob qualquer hipótese, admitir que ofensas ao entendimento do outro sejam propaladas desta maneira. Os evangélicos e a Igreja Universal têm o direito de se organizarem da forma que quiserem, é óbvio, este é exatamente o fundamento da liberdade religiosa. Agora, dentro daquele preceito clássico da ordem burguesa que nós temos, fundada na revolução francesa, a tua liberdade termina onde começa a minha. Então, não podemos invocar a liberdade de expressão como argumento para acolher manifestações que desrespeitem o outro.

Vem de John Locke a ideia de que ninguém tem o direito de invadir a consciência do outro, obrigando-o a acreditar (ou a não acreditar) num credo particular e de que o Estado deveria tolerar diferentes concepções do bem, desde que tais concepções não tentassem tiranizar o espaço público. Ao se imiscuir da política, representantes de religiões não estão tentando fazer exatamente isso?

Esta promiscuidade entre religião e Estado está na matriz de nossa formação. O império português estava diretamente associado à igreja católica. Até 1872 os assentamentos na igreja serviam como assentamentos de serviço civil. Nascimento era no batistério, casamento era o casamento religioso, o enterramento era feito na própria igreja. Hoje, as igrejas se organizam de uma forma muito forte para assegurarem bancadas nos legislativos, o que é legítimo. No entanto, quando elas passam a tentar limitar o direito de quem não professa a religião aí a coisa complica. É preciso ter a clareza da diferença de domínios. O Estado é laico, não tem que sofrer a ingerência do sagrado. O sagrado está no domínio da fé. O Estado tem que ter a objetividade, o público como fundamento. O público entendido na sua essência etimológica: de todos. Não pode ser para uns e nem pode ser de alguns. Tem que ser de todos e para todos. Mesmo que diante de todas as distorções que as situações de classe impõem ao gerenciamento deste Estado eu não posso deixar de lutar para que estes ideais republicanos se realizem. Quando você pega o viés religioso tentando intervir no Estado ele nega a essência republicana que o Estado tem, ou seja: o de atuar a serviço de todos e para todos. Quando você tenta aparelhar este Estado a serviço de uma facção religiosa, seja ela qual for, você está negando estes princípios republicanos.

Na perspectiva antropológica para que serve a religião?

Uma cultura seria o conjunto de respostas que um grupo cria para satisfazer determinadas necessidades. Estas necessidades podem ser de ordem material ou imaterial. A religião responde a uma necessidade imaterial, que é satisfazer a dúvida humana, ontológica, fundamental, que é de onde viemos e para onde vamos. As religiões, sejam elas quais forem, servem a este propósito, dar uma explicação para a nossa origem e destino.

Ouça a entrevista na íntegra.


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