20/04/2024 - Edição 540

True Colors

Transexuais enfrentam barreiras ao realizar cirurgia

Publicado em 30/01/2018 12:00 - Fernanda Conofre - Sul21

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Leonardo diz que teve a primeira “namorada” aos 6 anos. A conheceu em um grupo só de meninas com as quais brincava de casinha. Era difícil achar uma que quisesse ser “o pai”. Ele assumia feliz o papel. Se para a menina não foi nada sério, para ele marcou toda sua vida. Foi quando percebeu que gostava de mulheres. E o primeiro indício de que seu gênero não era aquele com o qual havia nascido biologicamente.

Levaria ainda 23 anos para que ele assumisse publicamente os pronomes masculinos e o nome “Leonardo”. Ele só veio a perceber que o que sentia tinha nome, por causa de uma namorada que lhe deu de presente “Viagem solitária: Memórias de um transexual”, a biografia de João Neri, conhecido como o primeiro homem transexual do Brasil.

“Quando eu li esse livro, toda a minha vida fez sentido. Porque eu vivia no meio de lésbicas, mas não me identificava com ninguém. Eu vivia como se fosse um monstro no meio de gente, todo mundo combinava com alguém, eu não combinava com ninguém”, conta ele.

Assim que deixou o livro de Neri, Leonardo resolveu ir atrás de tratamento que o ajudasse na transição de gênero. Começou procurando por um endocrinologista que receitasse hormônios. Seis médicos se negaram a atendê-lo, explicando que não entendiam nada de redesignação. Como última alternativa, ele acabou comprando a receita de um médico de São Paulo, pela internet. Os primeiros três meses de tratamento, até que encontrasse um médico em Porto Alegre, foram assim.

O médico de Leonardo cobra em torno de R$ 150 pelas consultas que tem de fazer a cada três meses. Ele monta um diagnóstico e um padrão de tratamento com base em exames que devem ser refeitos periodicamente. Leonardo conta que muitas pessoas não conseguem seguir pagando e usam a mesma receita de uma primeira consulta para fazer o tratamento por conta. A testosterona, um dos principais hormônios para o tratamento, por exemplo, pode ser encontrada por R$ 9.

Depois de encontrar o endocrino, ele começou a saga para encontrar um ginecologista que fizesse as cirurgias de mastectomia (retirada de mamas) e remoção de útero e ovários. A maioria exigia laudos psiquiátricos atestando a disforia de gênero – como é clinicamente tratada a transexualidade. Mas, Leonardo não queria ir atrás do documento, por questões de princípios.

“Eu sou contra o laudo. Nenhuma pessoa, nem que ela me veja por dois anos, sabe quem eu sou. Só eu sei quem eu sou. Como ela vai atestar que eu sou um homem trans?”, explica ele, que hoje integra a Homens Trans em Ação (HTA). “Mas, infelizmente, no Brasil, precisa”.

De acordo com o CID (Código Internacional de Doença da OMS), a transexualidade ainda é considerada um transtorno. Há um debate para que a próxima atualização, em agosto, possa alterar isso. O novo termo seria “incongruência de gênero”. A questão, no entanto, é controversa. Ao mesmo tempo que movimentos lutam para virar a narrativa de transexualidade como doença, no momento em que ela for retirada da lista, os tratamentos oferecidos gratuitamente pelo SUS também podem ser suspensos.

“Se a transexualidade sair das doenças mentais, não pode mais exigir laudo e isso seria uma vitória. Só que também existe o medo de que não possa mais existir Protig. Porque ele foi criado através da Psiquiatria, como doença mental. Se tu não tem mais isso, não precisa de tratamento pelo SUS”, analisa Leonardo.

Programa pioneiro

O Protig é o nome pelo qual ficou conhecido o Programa de Identidade de Gênero do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Pioneiro no Brasil, criado em 1998, ele foi um dos primeiros espaços a lutar para que pessoas trans tivessem direito ao tratamento de redesignação de gênero e às cirurgias gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em 20 anos, o programa já viabilizou mais de 200 cirurgias gratuitas pela rede.

Para muitas pessoas é o único meio de poderem viver como o gênero com o qual se identificam. No início, depois da equipe do Clínicas ter perdido duas ações para conseguir o convênio do SUS, o próprio governo gaúcho fechou um acordo para que o hospital realizasse duas cirurgias do tipo por mês. O Piratini, em troca, pagaria R$ 60 mil por ano à instituição. O mesmo acordo que vem sendo renovado a cada troca de governo.

A conquista do direito às cirurgias em âmbito nacional custou um pouco mais. Graças a ações do Ministério Público Federal e resoluções do Conselho Federal de Medicina, a cirurgia de redesignação para mulheres trans virou direito em 2008. Para homens trans (pessoas que nasceram biologicamente mulheres, mas se identificam como homens), levou ainda mais cinco anos. Hoje, o HCPA realiza uma vaginoplastia (para mulheres) e uma mastectomia (para homens) por mês. Apenas mais dois lugares no Brasil oferecem o mesmo serviço gratuitamente.

Por isso, a fila de espera, no Estado, passa de 140 pessoas. Quase o mesmo número de pessoas frequentando o programa atualmente: 150. Muitas vêm de outros estados só para tentar conseguir o tratamento. Segundo a coordenadora do Protig, a psiquiatra Maria Inês Lobato, os atendimentos dependem de espaço no bloco cirúrgico, por isso a cota de duas cirurgias/mês.

Antes de chegar à mesa de cirurgia, no entanto, os pacientes têm um longo caminho a percorrer. Primeiro, precisam colocar seu nome em uma lista nos postos de saúde da rede municipal de Porto Alegre ou junto ao Estado. Quando chamados, uma espera que leva em média 9 anos, tem de passar por uma série de cinco consultas, para se preparar para a fase de grupo e atendimento junto à equipe multidisciplinar, que inclui equipe médica (cirurgia, endócrino, psiquiatria), psicologia, enfermagem, fonoaudiologia, serviço social, fisioterapia, biomédicos e educação física. Essa fase sozinha leva dois anos. Só então, o paciente pode ter sua cirurgia marcada.

O Protig também oferece assistência à crianças e adolescentes com disforia de gênero. Sem cirurgias, no entanto, o tratamento com elas é mais focado nas relações com a família e escola e direitos sociais.

Apesar de muitos deles serem conquistas garantidas, a presidente da ONG Igualdade, Marcelly Malta, conta que um dos principais problemas enfrentados pela população trans ainda é a sensibilização de agentes da saúde no atendimento.

“Falta sensibilização nos postos de saúde, onde a gente possa entrar e ser atendidas dignamente. Temos um decreto de nome social para população trans, que ainda não tem retificação do nome civil, mas a dificuldade é muito grande. Na hora de chamar, o médico ainda usa o nome de documento”, diz ela.

Quando começou no programa, Maria Inês disse que teve de enfrentar críticas de quem dizia: “está faltando vacina para crianças e vocês querem dinheiro para isso”. “Eu disse que não se tratava disso, se trata de reconhecer o direito, num Sistema Único de Saúde que se pretende universal, de as pessoas terem acesso a esse tratamento. É um direito”.

Um levantamento que o grupo ainda pretende fazer é sobre as desistências. O tempo de preparação antes da cirurgia, é um dos motivos de crítica ao programa. “Apesar do tratamento ser longo para alguns, teve uma paciente que chegou para mim e disse: pois é, doutora, quando a gente entra aqui, a gente vem de anos querendo uma coisa e parece que estão nos tirando. Mas, eu reconheço que o tempo é necessário para colocar as coisas em ordem, chamar a família”, conta ela.

Tempo certo

Marjory Novakoski conseguiu a sua cirurgia em 3 de fevereiro de 2017 por uma desistência. Aos 49 anos, ela esperou três anos e três meses até ser chamada para o programa. “Uma cirurgia que eu fiquei esperando muito tempo. Eu estava muito consciente, muito mesmo, das coisas boas e ruins, das complicações. Fui muito tranquila”, diz ela.

Morando em Portugal há 20 anos, ela voltou ao Brasil para cuidar da mãe, em 2013. Foi aí que decidiu que seria a hora de fazer a operação. Poucos meses antes, ela já havia contratado uma advogada para mudar todos os documentos, em nome e gênero. “Eu estava cansada. Me identificava no espelho como uma mulher, sempre, mas aquilo ali no meio me incomodava. Meu marido nunca me viu pela frente. Aquilo não estava certo. Eu tinha consciência de que eu tinha que fazer uma cirurgia para me adequar e me sentir mais completa”.

Marjory conta que chegou a pensar em ir para a Tailândia fazer a cirurgia, como muitas mulheres trans optam para ter um resultado rápido. Assim como é o caso da maioria das pessoas inscritas no Protig, porém, Marjory também queria “acelerar” os dois anos. Inclusive, porque não se sentia à vontade em uma sala com outras mulheres trans. Hoje, mesmo depois da cirurgia, ela continua frequentando as reuniões para ajudar quem ainda irá passar pela mesma experiência dela.

Com resistência dentro da própria família para aceitá-la, mais do que nas ruas, no grupo ela disse que conseguiu encontrar apoio. “Não é uma escolha, eu nasci assim. Quando a mudança é válida pra ti, tudo é válido”.

Alternativa fora

Leonardo, no entanto, não tem a mesma oportunidade que Marjory. No Brasil, a cirurgia de redesignação de sexo de mulher para homem é reconhecida apenas como “experimental”. O país não teria especialistas no tema e a neofaloplastia – que cria um pênis – é considerada tecnicamente complexa pelos próprios médicos, segundo a psiquiatra Maria Inês. “Quem tem dinheiro viaja para fora do país”, diz ela.

O que Leonardo pretende fazer em breve. Ele conta que já está estudando meios de ir para fora do país. O que precisa é de uma série de procedimentos para fechamento da vagina, criação de uma uretra e aumento do clitóris que possibilitaria a criação de um pênis e testículos. “Eu programei isso na minha vida, porque tem um alto custo. A faloplastia que eu quero são dez cirurgias, durante um ano. Elas são realizadas de quatro em quatro meses, três procedimentos por vez. Já achei um médico na Alemanha que faz isso há 20 anos”.

O problema é que o médico só realiza atendimentos presenciais, para analisar o caso de cada paciente. Fernando diz que, por isso mesmo, seu próximo passo será ir à Europa, no final do ano, para poder ter informações e analisar os gastos que teria para tudo isso. “A cirurgia de redesignação sexual mesmo é muito pouco feita, porque ela tem grandes chances de dar errado. Eu tenho disforia com o meu órgão genital, então faço questão. Pra mim, só vou ser um homem completo quando fizer isso. Eu sei que não depende disso para definir um homem, mas é como eu me sinto”.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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