19/03/2024 - Edição 540

Especial

Olhando para nós mesmos

Publicado em 07/12/2017 12:00 -

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Enquanto o mundo comemora neste sábado (9) o O Dia Internacional de combate à Corrupção, no Brasil a prática se alastra e se confunde com o modus operandis a que os brasileiros devem se curvar para enfrentar um Estado ausente em suas responsabilidades. Afinal, “é assim mesmo”. “A corrupção está nos outros, não em mim”. É este o senso comum sobre a reação dos brasileiros diante do descalabro que infecta o tecido social nacional, da base ao cume da pirâmide.

Corrupção. Segundo o Aurélio, “Ação ou efeito de corromper, de fazer degenerar; depravação. / Ação de seduzir por dinheiro, presentes etc., levando alguém a afastar-se da retidão; suborno”. Santo Agostinho explica a etimologia: corrupção é ter um coração (cor) rompido (ruptus) e pervertido. O pessoal da ONG Transparência Internacional – tem uma definição mais contemporânea: “Corrupção é o abuso do poder para benefício privado”.

Ocorre que estas definições encontram variantes dependendo de a quem o ato de corromper ou ser corrompido se refere. No Brasil, o eterno “jeitinho” muitas vezes transita pela corrupção sem que as pessoas se deem conta de que é exatamente ali, nas coisas comuns do dia a dia, que é plantado o fruto da permissividade que transforma o Brasil na 72ª nação mais corrupta do planeta.

Segundo recente estudo da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) anualmente a corrupção suga R$ 84.5 bilhões dos cofres públicos. Se aplicado na saúde, este montante permitiria um aumento de 89% no número de leitos nos hospitais. Na educação, abriria 16 milhões de novas vagas nas escolas, Na construção civil, viabilizaria a construção de 1,5 milhões de casas.

Para o jornalista e analista político Eron Brum, o jeitinho brasileiro, que era uma qualidade nossa – enfrentar as dificuldades com otimismo, rir das próprias desgraças, dar nó em pingo d’água para dar a volta por cima e não medir esforços para ajudar o próximo – se transformou em atividade ilícita, criminosa.

“Hoje o tal jeitinho é sinônimo de levar vantagem, custe o custar, doa a quem doer. As ‘pequenas corrupções’, como furar a fila do banco ou do supermercado ou tentar subornar o guarda, ganharam corpo e se transformaram em milhões, bilhões de reais assaltados dos cofres públicos por alguns governantes”, afirma Brum.

Espelho

Em 1946 quando o médico húngaro Peter Kellemen veio morar no Brasil, procurou o consulado geral. O cônsul José de Magalhães e Albuquerque, deliberadamente resolveu colocar em seus documentos que Kellemen era agrônomo e não médico, pois sabia que “as besteiras sem importâncias” (as leis) impediriam o visto caso ele não modificasse a profissão do viajante. Foi este o primeiro registro da prática do jeitinho brasileiro, eternizado na obra do próprio Kellemen, “Brasil para principiantes”.

De lá para cá o “jeitinho brasileiro” transformou-se em uma instituição, a ponto de as pessoas não saberem diferenciá-lo da corrupção. É o que revelou a pesquisa que deu origem ao livro “A cabeça do brasileiro”, lançado em 2007 pelo sociólogo e cientista político Alberto Carlos Almeida, onde se observa que uma grande parcela dos brasileiros não tem esta concepção diferencial. Por exemplo. “Passar uma conversa em um guarda para ele não aplicar uma multa” foi considerado corrupção para 53% dos entrevistados, embora outros 6% tenham visto neste ato um “favor” e 41% traduzido esta atitude como “jeitinho”.

Para o filósofo Mario Sergio Cortella é possível olhar o jeitinho de dois modos: o jeitinho como flexibilidade e o jeitinho como infração ética. No caso da flexibilidade, é a condição de adaptação em situações que seriam impossíveis ou de improvável solução. Quando trata-se de infração ética é que a coisa pega. “É a fragilidade de princípios e, mais do que isso, a intenção de desviar de pegar atalhos, ao invés de seguir caminho que é correto, certo, socialmente admitido. Quando nós olhamos a ideia do jeitinho como infração ética, ele é extremamente negativo, porque ele enfraquece as nossas instituições, a nossa vida coletiva e mais do que isso, ele quebra as nossas pontes para um futuro mais sólido”, afirma.

Para Cortella, quando se pensa na relação entre Estado e população há uma tendência de apontar o Estado, o poder público, como o guardião da ética. “Mas é exatamente o inverso”, diz o filósofo. “A guarda da ética tem que ser feita pela população que escolhe o poder público. Isso significa que há um dado que passa pelo cinismo. Um cidadão ou cidadã que aponta o dedo em direção ao poder público, ao Governo de maneira em geral, ele mesmo produz infrações no campo da ética sem nenhum tipo de prejuízo pra convicção que ele carrega”.

É o caso de quem só respeitam o limite de velocidade se houver um radar, ou daquele que compra produto pirata argumentando que é mais prático, especialmente porque esse produto é mais barato. São pessoas que em seu cotidiano, procuram atalhos, desvios. “Por isso, a ética não é uma questão de governo, a ética é uma questão de sociedade, na qual o Governo também é parte. Aí por isso, evidentemente, a gente não pode ter um Governo marcado pelo jeitinho negativo e nem uma população com essa mesma característica”.

De acordo com o jornalista e cientista político Clóvis de Barros Filho, a sociedade brasileira está longe de alcançar um patamar de convivência saudável e respeitosa, que possibilitaria relações sociais mais éticas. “A ética é a inteligência compartilhada a serviço do aperfeiçoamento da convivência. Uma busca coletiva de uma convivência melhor”, explica.

Segundo ele, as barreiras partem das atitudes individuais, e passam pela formação familiar e escolar. “Há dez anos dentro de um lugar fechado, teria gente fumando sem problema. Hoje não tem mais. Você tem que aceitar que a convivência mudou, e que não mudou porque um deus desceu de alguma montanha e disse para mudar. Mudou porque a gente mesmo decidiu que era melhor desta forma”, afirma, acrescentando que o respeito a essa decisão também faz parte da ética. 

“O que é o famoso ‘jeitinho brasileiro’ se não quebrar o galho de alguém em detrimento do direito de todos? A sociedade brasileira é paupérrima do ponto de vista ético. Não tenha a menor dúvida”, afirma Barros. 

Corrupção no outro

Uma pesquisa realizada pela Semana On no Facebook e nas ruas de Campo Grande (MS) mostrou que a maioria das pessoas considera que a corrupção que se comete nos altos escalões da política é mais grave do que àquela cometida pelo simples cidadão. Entre os entrevistados 54,26% concordaram com esta afirmativa. Apesar disso, 89,09% dos entrevistados disseram que o ato de oferecer dinheiro a um policial para escapar de uma multa – exemplo típico das “pequenas corrupções” citadas por Brum – pode ser considerado um ato de corrupção.

Outros números que chamam a atenção são os que se referem à aceitabilidade da corrupção como prática individual. Arguidos se em algum momento de suas vidas já haviam apelado para a corrupção para resolver algum problema, 45,45% dos entrevistados disseram que sim. No entanto, quando incitados a reconhecerem a prática ilícita nos outros, este percentual aumentou significativamente: 76,36% dos entrevistados disseram conhecer pelo menos uma pessoa que já apelou para a corrupção para resolver algum problema.

Finalmente, a pesquisa pediu que se atribuísse uma nota de 1 a 5 para a corrupção como algo que prejudica a vida das pessoas. Os entrevistados deram uma nota média de 2,95 a este aspecto. No entanto, quando lhes foi pedido que atribuíssem uma nota de 1 a 5 à corrupção como algo que prejudica o país, a nota média subiu para 4,67%.

“É uma relação de conveniência e o exemplo que considero mais comum é o das eleições. O nosso interesse eleitoral acontece apenas algum tempo antes de apertar a tecla para votar. Não temos o costume de analisar a vida do candidato, até nos esquecemos em quem votamos e, para nós, todos os políticos são corruptos. Ora, se consideramos todos os políticos corruptos será que não temos a nossa parcela de culpa? E se fizermos uma espécie de operação pente fino no nosso cotidiano será que também não cometemos as nossas falhas, até para depois contar aos amigos que levamos vantagens nisto ou naquilo? Há alguns anos, no auge do famoso Mensalão, um instituto de pesquisa realizou consulta nacional sobre corrupção e o resultado foi desolador: a maioria dos brasileiros confessou que, se tivesse oportunidade, cometeria o mesmo crime”, analisa Eron Brum.

Público e privado

Para Paulo Silvino Ribeiro, professor de sociologia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, a corrupção e a falta de "sensibilidade moral" acontece quando se confunde as esferas públicas e privadas, coisa historicamente comum no Brasil. "As duas coisas, que deveriam ser distintas, onde aquilo que é de meu interesse é privado e o que é público é de interesse coletivo, se tornaram indistintas na nossa cultura. Hoje, entendemos melhor o privado e o publico, mas há um ranço histórico muito grande", explica. 

Marcos Otávio Bezerra, professor de sociologia e antropologia da Universidade Federal Fluminense, diz que a formulação de falta de delimitação entre o público e privado pode ser fraca quando se pensa praticamente. “As pessoas que se apropriam dos recursos públicos sabem que estão fazendo isso. Inclusive, por serem públicos, elas acham que podem dar um outro destino, voltado para seu interesse”.

Segundo ele, a corrupção dentro das instituições públicas é agravada pelo exemplo que as autoridades deveriam dar e pela total consciência do que se está sendo feito. “Essas pessoas estão ocupando funções publicas, os políticos e pessoas que ocupam posições no executivo têm a obrigação de dar o exemplo. Elas estão numa posição que trabalham em prol do publico, pelo menos deveriam. E tem essa visibilidade. As pessoas pensam ‘se eles fazem eu vou fazer também’, então é um mau exemplo. Elas estão nas posições mais altas na hierarquia brasileira e funcionam como um contraponto para o cidadão”, critica.

“Além disso, as pessoas que ocupam essas posições tiveram as melhoras oportunidades de vida, moraram bem, estudaram, tem salários adequados para a vida delas, elas, em tese, não precisariam fazer o que elas fazem. Não é por falta de informação, recursos econômicos”, completa.

Definindo o Brasil

A corrupção é o comportamento que melhor define o Brasil de hoje, mas é a honestidade que melhor caracteriza o brasileiro. Esta contradição está entre os resultados da inédita Pesquisa Nacional de Valores de 2017, encomendada ao Datafolha pela consultoria Crescimentum, em parceria com o instituto britânico Barret Values Centre.

O levantamento investiga quais os valores pessoais dos brasileiros em 2017, aqueles que constituem a cultura atual do país e os da cultura desejada para o Brasil.

Para isso, em agosto deste ano, 2.422 pessoas em todas as regiões do país foram apresentadas a listas com cerca de 90 valores entre os quais precisavam apontar os dez que melhor definiam quem elas são, que delimitavam o Brasil de hoje e que representavam como o país deveria ser.

Enquanto no campo individual os brasileiros elegeram a amizade, a honestidade, o respeito, a confiança e a paciência como valores que os definem, no campo da cultura nacional emergiram a corrupção, a violência, a agressividade e a discriminação racial.

"Não tem nenhuma correspondência entre o que cada um percebe como seu valor individual e o que ele percebe como a cultura ao seu redor", avalia o escritor e cientista social Eduardo Giannetti.

Para ele, o brasileiro não se reconhece naquilo que vê ao seu redor, mas que é o "resultado da interação de todos nós juntos". "Este é um traço definidor da nossa cultura: o brasileiro é o outro", explica.

"Brasileiro fala do brasileiro na terceira pessoa, e se dissocia", avalia o economista Guilherme Marback, diretor da Crescimentum, que aponta para o aumento na percepção dos problemas do país.

Essa percepção subiu de 51% em 2010, quando a pesquisa foi feita pela primeira vez, para 61% em 2017.

Entre os problemas, reina a corrupção, que em 2010 era destacada por 54% dos entrevistados e, em 2017, foi apontada por 72% deles.

Nas pesquisas de opinião do Datafolha, a corrupção chegou a ser citada por 37% dos entrevistados como o maior problema do país em março de 2016. Em setembro deste ano, este escore era de 18%.

Entre 2010 e 2017, há um aumento na percepção de que a agressividade é um traço cultural nacional, bem como há o advento da discriminação racial, antes ignorada. "O Brasil vivia uma negação com este tema, que finalmente entrou na agenda da preocupação pública", diz Giannetti.

Protagonismo

Tanto no contexto pessoal ("aprender sempre") como no da cultura desejada ("oportunidades de educação"), a educação, antes ausente, surge como valor importante.

"Diante do cenário de crise, cresce a perspectiva individualista, e as pessoas querem investir nelas mesmas", diz o cientista social Fernando Abrucio, da FGV.

Segundo ele, a percepção de que é possível avançar pelo mérito individual é resultado também da melhoria nas condições de vida dos últimos 20 anos. "Sem isso, ninguém apostaria em educação porque o problema era mais embaixo."

Confiança e coragem são outros valores pessoais novos em relação a 2010. Para Marback, apesar de sutil, essa mudança indica "a tomada de consciência de que temos de tomar as rédeas de nosso destino e do país".

Para Maria do Socorro Braga, professora de ciência política da Universidade Federal de São Carlos, a ênfase no comportamento individual pode também ser fruto de desamparo por parte do Estado e das instituições. "As pessoas acham que têm de resolver a situação por elas mesmas."

De acordo com o sociólogo Demétrio Magnoli, há uma cisão entre os valores desejados para o país em 2010 e 2017, quando justiça social, moradia confortável e redução da pobreza deram lugar a oportunidade de educação, compromisso, honestidade e cidadania.

Outros dados

O Barômetro Global da Corrupção, da Transparência Internacional, divulgado em outubro passado, referente à América Latina e Caribe indica que quanto à percepção de corrupção, 78% dos brasileiros afirmaram acreditar que tenha aumentado nos doze meses anteriores à pesquisa. Os dados foram coletados em maio e junho de 2016, quando a Operação Lava Jato estava no seu auge.

O levantamento mostra, ainda, que 83% dos brasileiros consultados ‘acreditam que pessoas comuns podem fazer a diferença na luta contra a corrupção’. É a maior taxa da região (Costa Rica e Paraguai vêm em seguida, com 82%);

O Barômetro Global é apontado como a pesquisa de opinião mais importante no mundo sobre comportamentos relacionados à corrupção.

“A pesquisa reforça o entendimento de que o combate vigoroso que o Brasil está dando à corrupção não pode ser compreendido apenas pelo avanço institucional e a ação de setores do Ministério Público, Polícia e Judiciário, mas também pelo amplo respaldo da sociedade brasileira a esta causa”, afirma Bruno Brandão, representante no Brasil da Transparência Internacional. “E os resultados da pesquisa revelam que o Brasil se destaca de todos os demais países da região neste aspecto.”

A pesquisa aponta que o brasileiro é um dos que mais acredita ser socialmente aceitável denunciar casos de corrupção (Costa Rica 75%, Brasil 74%, Guatemala e Uruguai 71%) e 81% dos entrevistados no país responderam que, se testemunhassem um ato de corrupção, se sentiriam pessoalmente obrigados a denunciá-la – esta taxa só é maior no Uruguai (83%) e na Costa Rica (82%).

O Barômetro informa que ‘uma quantidade expressiva dos entrevistados no Brasil respondeu que denunciaria um ato de corrupção mesmo se tivesse que passar um dia inteiro em um Tribunal (Brasil 71%; Uruguai 70% e Costa Rica 66%)’.

Sobre experiências com pagamentos de propina para ter acesso a serviços públicos, os brasileiros tiveram a menor taxa na região, com exceção dos residentes de Trinidad e Tobago: apenas 11% dos entrevistados no Brasil disseram ter repassado propina para acessar serviços de saúde, educação, saneamento, polícia, justiça ou emissão de documentos (contra 6% dos residentes em Trinidad e Tobago). Na outra ponta, estão México (51%) e Peru (39%).

Resultados Do Barômetro Global Da Corrupção

· 83% dos brasileiros entrevistados acreditam que pessoas comuns podem fazer a diferença na luta contra a corrupção. É a maior taxa da região (Costa Rica e Paraguai vêm em seguida, com 82%);

· O brasileiro é um dos que mais acredita ser socialmente aceitável denunciar casos de corrupção (Costa Rica 75%, Brasil 74%, Guatemala e Uruguai 71%) e 81% dos entrevistados no país responderam que, se testemunhassem um ato de corrupção, se sentiriam pessoalmente obrigados a denunciá-la – esta taxa só é maior no Uruguai (83%) e na Costa Rica (82%);

· Na mesma linha, uma quantidade expressiva dos entrevistados no Brasil respondeu que denunciaria um ato de corrupção mesmo se tivesse que passar um dia inteiro em um Tribunal (Brasil 71%; Uruguai 70% e Costa Rica 66%);

· No que diz respeito às experiências com pagamentos de propina para ter acesso a serviços públicos, os brasileiros tiveram a menor taxa na região, com exceção dos residentes de Trinidad e Tobago: apenas 11% dos entrevistados no Brasil disseram ter pagado propina para acessar serviços de saúde, educação, saneamento, polícia, justiça ou emissão de documentos (contra 6% dos residentes em Trinidad e Tobago). Na outra ponta, estão México (51%) e Peru (39%).

· Quanto à percepção de corrupção, 78% dos brasileiros afirmaram acreditar que tenha aumentado nos doze meses anteriores à pesquisa – os dados foram coletados em maio e junho de 2016.


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