19/03/2024 - Edição 540

Entrevista

A ofensiva contra os povos indígenas

Publicado em 06/12/2017 12:00 -

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No dia 5 de outubro deste ano, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) lançou o relatório “Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – Dados 2016” denunciando que o recrudescimento da ofensiva sobre os direitos indígenas traduziu-se em graves ações de violência e violações em todo o país. Segundo o relatório, só em 2016, foram 118 mortes, 106 suicídios e 735 casos de mortalidade infantil. Na apresentação do relatório, Dom Roque Paloschi, presidente do Cimi, disse que, a partir de abril de 2016, “uma onda de ódio e de rancor contra os indígenas se avolumou como resultado do cinismo de um governo golpista, no interior do qual encontraram guarida certas estratégias voltadas para a expropriação das terras indígenas”.

Políticos reacionários, sob o comando de Michel Temer (PMDB-SP), acrescentou o arcebispo de Porto Velho, passaram a agir para impedir que órgãos de Estado responsáveis pela execução de ações e serviços junto às comunidades indígenas atuassem. “Este tipo de intervenção tornou possível a propagação tanto de agressões, como ameaças de morte, ataques contra comunidades indígenas, assassinatos, invasões de madeireiros e devastação das florestas, dentre tantas outras, como das renovadas formas de propagação da intolerância”, assinalou. De lá para cá essa situação de violência só se agravou. Praticamente todos os dias, há relatos de algum caso de violência envolvendo comunidades indígenas.

“Há uma verdadeira prática de genocídio dos povos indígenas pelo Estado brasileiro, com a mão do Judiciário, do poder de polícia, do Executivo e do Legislativo”, diz o advogado Dinamam Tuxá, integrante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.

Nesta entrevista, Tuxá fala sobre a ofensiva liderada por ruralistas e políticos conservadores contra comunidades indígenas em todo o país. “Nós responsabilizamos o Estado brasileiro por esse massacre. Ele está ocorrendo com o aval do Judiciário, denuncia.

 

Qual a situação atual das políticas indígenas no Brasil?

Os povos indígenas vêm sofrendo diversos tipos de ameaças e violações de direitos humanos. Essas formas de violência estão institucionalizadas sob o comando do Congresso Nacional e se agravaram após a ruptura com a nossa democracia. Hoje, temos uma bancada no Congresso que apoia e patrocina o movimento de avanço sobre terras indígenas. Após o golpe de Estado, essa bancada conseguiu avançar com suas pautas reacionárias. Essas pautas vêm difundindo a cultura do ódio, principalmente contra os povos indígenas. Isso se reflete dentro das terras indígenas. Houve um avanço significativo de mortes e criminalização de lideranças. Houve um avanço significativo também da criminalização dos movimentos sociais como um todo.

Os povos indígenas, historicamente, vêm sendo massacrados. Ao longo da história, há alguns momentos em que esses massacres foram amenizados por meio de políticas públicas e do diálogo. Infelizmente, o cenário da conjuntura política atual é desolador. Há uma verdadeira prática de genocídio dos povos indígenas pelo Estado brasileiro, com a mão do Judiciário, do poder de polícia, do Executivo e do Legislativo. Nós responsabilizamos o Estado brasileiro por esse massacre. Ele está ocorrendo com o aval do Judiciário. A política nacional, ao se tornar uma política conservadora que não agrega as pessoas e não respeita a diversidade, acaba agravando ainda mais a violência contra os povos indígenas no Brasil.

Quais são os projetos já aprovados ou que ainda estão tramitando no Congresso Nacional que retiram direitos dos povos indígenas?

Um levantamento feito pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil no último ano identificou 103 medidas, na esfera do Executivo e do Legislativo, que atacam diretamente os povos indígenas. Essas medidas retiram e violam direitos, além de fomentar a cultura do ódio e também a prática do genocídio dentro das terras indígenas. Elas dão aval à entrada em terras indígenas de forma violenta e à mortandade de indígenas. Uma dessas medidas que seguimos combatendo é a PEC 215, que retira do Executivo e passa para o Legislativo a competência para a demarcação de terras indígenas. Merece destaque também a portaria 313, da AGU (Advocacia Geral da União), que obriga o Executivo a aplicar, a todas terras indígenas do país, condicionantes que o STF estabeleceu, em 2009, para a terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

É público e notório que as terras indígenas são as áreas mais bem preservadas do Brasil e a sociedade não tem conhecimento disso.

A mais recente delas é a que estabelece um marco temporal para as demarcações de terra, uma teoria levantada no Supremo Tribunal Federal, segundo a qual só teriam direito à terra os povos que estivessem no local em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. Outra proposta que combatemos é a do arrendamento de terras indígenas, que está em permanente debate no Congresso Nacional, sem a participação dos povos indígenas, que serão os principais afetados por ela. Então, temos um conjunto de medidas administrativas do Executivo e medidas do Legislativo e do Judiciário que vem de encontro aos direitos dos povos indígenas, criminalizando as nossas lutas e promovendo um verdadeiro genocídio.

Qual a capacidade de resistência dos povos indígenas brasileiros diante desta ofensiva conservadora?

Nós conseguimos aliados dentro do Congresso Nacional e conseguimos debater em algumas audiências públicas. Por outro lado, entendemos que, ao debater algumas pautas dentro do Congresso Nacional, estamos legitimando o processo para o avanço delas lá dentro. Então, o nosso embate hoje, fundamentalmente, se dá com as auto-demarcações de terras indígenas e por meio do Acampamento Terra Livre, que é a maior assembleia dos povos indígenas do Brasil. Esse ano reunimos mais de quatro mil indígenas em Brasília para debater e enfrentar essas violações de direitos de forma incisiva e propositiva. No âmbito prático, estamos apresentando nossas reivindicações em mobilizações nas BR’s e promovendo as auto-demarcações, mostrando que a nossa existência é gerada com muita resistência.

Como é que se dá esse processo das auto-demarcações?

A auto-demarcação ocorre quando o Estado brasileiro tem a obrigação de demarcar a terra indígena e não cumpre seu dever legal. Nós sabemos quais são os nossos marcos históricos e onde ocupamos tradicionalmente a terra. Reunimos as nossas lideranças, homens, mulheres, anciãos, crianças, jovens e estudantes, vamos para aquela área e a ocupamos por entender que ela é nossa de direito.

Nos últimos meses, ocorreram vários massacres de comunidades indígenas em diferentes regiões do país. Você poderia falar um pouco mais sobre a extensão e a gravidade do que está acontecendo? O que a Polícia Federal, o Executivo e o Judiciário vêm fazendo para apurar esses massacres e identificar seus autores?

Esses massacres são muito regionalizados. Nós temos massacres ocorrendo diariamente no Mato Grosso do Sul com os guaranis kaiowás e os terenas. No Nordeste, hoje inclusive, há um clima de comoção envolvendo o povo pitaguary que é alvo de uma ação de reintegração de posse. Há uma aliança entre bancadas de parlamentares e segmentos empresariais que violam direitos para tentar acessar terras indígenas e explorá-las. Nós temos também o caso dos tupinambás, na Bahia, que estão lutando há anos pela demarcação de suas terras. O agronegócio não permite e não aceita de forma alguma reconhecer um direito originário. Eles não querem cumprir o que está previsto na Constituição Federal.

Essas violências estão espalhadas pelas mais diversas regiões do país. O Judiciário vem legitimando as ações destes setores que têm interesse nas terras indígenas. E a Polícia Federal, como um braço do Estado, cumpre as decisões do Judiciário de forma truculenta e violenta. Nas ações de reintegração de posse, ela sempre chega de forma muito violenta, sem planejamento, sem diálogo e sem o reconhecimento da especificidade de cada caso. Simplesmente ela vem como um rolo compressor e acaba derrubando e destruindo casas e espaços sagrados dos povos indígenas. Essas violações estão ocorrendo com o aval do Estado e do Judiciário. O Judiciário faz parte do Estado, mas merece uma menção especial. É o poder que está faltando à República. Ele não está cumprindo o seu papel de garantidor de direitos e, por meio de sua omissão, também está praticando genocídio.

Como você avalia a postura geral da sociedade diante deste quadro e em relação aos povos indígenas? Parece haver um misto de indiferença, preconceito e desinformação que não vem mudando ao longo dos anos.

Eu acredito muito na humanidade e na sociedade, principalmente aqui no Brasil. Mas é público e notório que há uma falta de conhecimento da maioria das pessoas, que acaba absorvendo o que a mídia oficial ou a mídia de grande circulação acaba difundindo. Eles dizem que nós somos invasores de terra, difusores de violência, que praticamos a violência em prol do nosso território sagrado. A sociedade acaba sendo convencida por essa mídia de grande circulação, que tem lado e não é o lado dos povos indígenas, do meio ambiente e das comunidades tradicionais. O lado dela é o do capital e do poder econômico.

O nosso modelo incomoda, pois nós conseguimos sobreviver com o mínimo, preservando o meio ambiente. É público e notório que as terras indígenas são as áreas mais bem preservadas do Brasil e a sociedade não tem conhecimento disso. A sociedade acaba absorvendo o que um deputado como o Luís Carlos Heinze fala, que índio faz parte de tudo que não presta. Isso a sociedade absorve, mas não absorve a diversidade dos povos indígenas. Nós somos quase 900 mil indígenas, distribuídos em 305 povos, falando 274 línguas. A sociedade desconhece essas informações e, de modo geral, acaba colocando o índio no pacote do “tudo que não presta”, como disse Heinze. Ela absorve esse discurso de ódio, racista e preconceituoso, mas não que somos a maior diversidade do país e do mundo.


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