18/04/2024 - Edição 540

Judiciário

Tempos de se construir um saber processual penal de batalha

Publicado em 21/11/2017 12:00 -

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A força do pensamento crítico está vinculada à construção de um determinado projeto de transformação social e cultural.[i] Em matéria processual penal, isto significa intervir para a construção de um saber de resistência, enquanto afirmação da necessidade de enfrentar não apenas as disposições legais nitidamente inquisitoriais, mas, igualmente, as grandes e pequenas práticas, hábitos e ideias de inspiração autoritária, cristalizadas no ensino jurídico do processo criminal. São tempos difíceis. É preciso um processo penal que sirva como a última trincheira dos direitos de liberdade.

Em primeiro lugar, para que seja empregado como ferramenta de intervenção prática e não somente analítica, o saber processual penal não pode ser visto sob uma perspectiva meramente sequencial, ou seja, um conjunto de normas que regulam os atos processuais ou a faculdade das partes (ideologia do trâmite).[ii] A justiça penal está configurada por um universo de práticas e sistemas normativos que, lato sensu, também devem ser compreendidas como atos processuais. [iii] A normatividade, quando se está em questão esta parcela do poder que administra a justiça criminal, deve considerar diferentes regras e modelos informais de funcionamento. O saber processo penal, apto a servir-se como um verdadeiro saber de batalha,[iv] de enfrentamento às patologias inquisitoriais, não pode se ater a uma análise lógico-formal de suas normas. Enfim, todo o “sistema penal subterrâneo” interessa ao processo. É no campo processual penal que corre o sangue do sistema, como costuma dizer Rui Cunha Martins, jurista português, admirado e bem conhecido em nossas terras.[v]

Em segundo lugar, deve-se ter em mente que o espaço judicial é um espaço de lutas, onde devemos interferir para orientar a atuação dos atores judiciais em seu dia a dia. Existe um duelo de práticas em que se jogam os valores fundamentais da sociedade. Esta luta política possui grande envergadura e está para além do cidadão que está juiz, promotor ou defensor, individualmente isolados. O processo penal como espaço de batalha entre diversas perspectivas ideológicas e discursivas (crença na funcionalidade da prisão, crença na verdade real, etc.) envolve especialmente o funcionamento das organizações, onde a grande maioria daqueles atores estão inseridos. As organizações, como ponderou o próprio Binder, tem um grande poder de configuração de suas condutas e respondem, sem dúvida, pela maior parte das práticas e disseminação da cultura inquisitiva no processo penal. Investigar radicalmente o funcionamento de todas as máquinas organizacionais, responsáveis pela produção de subjetividade que, ao fim, incorpora o juiz, o agente penitenciário, policial ou o promotor, é de extrema importância para a construção do processo penal em tempos de exceção institucionalizada.

Em terceiro lugar, a construção de um saber processual de batalha exige, como elemento básico de sua constituição, a aproximação com a criminologia crítica. A demonstração prática da (des) funcionalidade do direito penal como instrumento de tutela de bens jurídicos e sua afirmação como mero fato de poder implica numa visão limitadora da persecução estatal frente ao indivíduo, essencial à reconstrução hermenêutica do processo penal, conforme se propõe nesta breve coluna. O direito processual penal, ancorado na criminologia crítica, considera as diversas formas de opressão (funcionamento concreto do sistema) como parte integrante do seu próprio saber. Da formulação dos dispositivos legais à interpretação e aplicação pelos atores judiciais, todos devem orientar-se no sentido de transformação destas práticas. A criminologia crítica finca o processo penal na realidade e, desta forma, produz uma nova análise do papel do Estado e dos processos de criminalização. Sem isto, o saber processual penal se reduz à uma teoria perdida no universo concreto das práticas punitivas.

É importante que se diga, porém, que a análise dos processos de criminalização formal e sua relação com os mecanismos de controle social e político do capitalismo corresponde precisamente ao objeto da criminologia crítica e radical. A denúncia ideológica da seletividade do sistema criminal no capitalismo será, portanto, como adiantou Alberto Binder, um encargo dos criminólogos e criminólogas críticos. Isto não nos impede de construir um modelo crítico de processo penal que incorpore o exercício concreto destes mecanismos com vistas à reconstrução hermenêutica do seu saber. Ao saber processual penal caberá desvelar, denunciar e atuar para expurgar as inúmeras práticas inquisitoriais que a criminologia crítica aponta como o funcionamento ordinário da máquina repressiva estatal.[vi]

Como se disse, um saber de batalha só se confirma na prática transformadora do sistema de justiça criminal. Há no seu interior um compromisso concreto com a emancipação, aqui entendida como efetiva realização da liberdade em um sistema de justiça criminal atravessado pela lógica social e política do neoliberalismo e, consequentemente, fascistizado.

Este compromisso com a emancipação deve lançar o saber processual penal para além do garantismo abstrato da dogmática tradicional, entendida como “ciência normal”.[vii] O garantismo, como lembra Salo de Carvalho, deve ser muito bem “enquadrado” como uma espécie de pauta mínima, piso, e não teto.[viii] Precisamos mais. Na realidade, como defende Alessandro Baratta, “só um novo garantismo, alimentado criticamente pelo conhecimento empírico sobre os sistemas punitivos, pode servir para limitar de qualquer modo a sua contradição estrutural com os direitos humanos fundamentais, e instaurar na consciência política geral a constatação do quão pouco a intervenção da justiça penal pode fazer pela sua proteção”.

Esta dogmática, nos parece, corresponde àquilo que Vera Regina Andrade chamou de ciência extraordinária e marca o compromisso com a busca da segurança prometida, dos direitos humanos e de igualdade, inscritos no projeto político e social da modernidade. [ix]

Registra-se que esta abordagem do saber processual penal não se deve confundir com a mera orientação constitucional do processo, como previu o próprio Binder. A par de seus inegáveis avanços, a “perspectiva constitucional” parece não incorporar a visão empírica sobre os sistemas judiciais, novas formas de ensino do saber processual e, como tal, ainda se apega a categorias comuns de tipo procedimental, vinculadas a uma análise sequencial do processo penal. É nosso dever ir além. O saber processual penal de batalha é um saber prático e está inserido no seio de outros processos políticos, culturais, sociais e econômicos. Por isso, o ensino do processo penal não é alheio, nem está desassociado da luta pela superação do neoliberalismo, responsável por fragilizar a alteridade, recrudescer a criminalização da pobreza e as diversas manifestações do fascismo na sociedade brasileira contemporânea.

A formação de uma nova compreensão do processo penal é inseparável, portanto, de uma nova compreensão do mundo e da experiência política necessária para alterar o estado de coisas. A análise teórica não será possível fora da experiência que nasce das práticas concretas do sistema de justiça criminal, dirigidas a superar o inquisitorialismo de uma vez por todas.

Um saber processual penal de batalha, uma vez associado ao desejo de alterar as práticas autoritárias do sistema de justiça penal, não apenas coloca em xeque as condições reais de sua existência, como produz a modificação da consciência do próprio agente.

Trata-se de uma prática que, ao se voltar ao mundo que nos cerca, modifica-o na exata medida em que também transforma os sujeitos da ação. Um saber processual penal que fomenta, em suma, uma espécie de praxis em que coincidem mudança do sistema de justiça e de si mesmo. A dialética entre teoria e ação social está na base de um processo penal orientado a enfrentar os erros, abusos e violações ocasionados pelo exercício do poder punitivo do Estado. O comportamento crítico dos Atores Judiciais nascerá, portanto, da consciência deste “materialismo prático” que surge da relação poder/opressão, que marca o funcionamento do sistema de justiça criminal.

Finalmente, o saber processual penal de batalha, eminentemente prático e voltado à resistência, pressupõe profunda “desconfiança na bondade do poder punitivo[x] e, desta forma, cria inúmeros instrumentos de controle do poder estatal. Instituindo um modelo de processo penal concebido como dispositivo de contra-poder jurídico[xi], este saber produz transformações sociais e culturais de larga escala e, ainda, oferece melhor segurança de que a decisão judicial será política e juridicamente legítima.

Eis, enfim, o que deve buscar o direito processual penal em tempos como o nosso: construir um saber processual que incorpore a realidade concreta do Brasil e nos prepare para atuar neste campo do poder, responsável por organizar as respostas violentas do Estado. Constituir um saber de batalha que atravesse o sentido das normas processuais e nos permita escrever de forma digna, em atenção às milhares de pessoas encarceradas, sobre direito processual penal. Afinal, como disse Alberto Binder, a quem se dedica esta coluna, esta é a disciplina em que se estuda “os mecanismos que nós, seres humanos, utilizamos para prender nossos semelhantes dentro de jaulas”.

Antonio Pedro Melchior – Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro e Advogado Criminalista

[i] BATISTA, Vera Malaguti. Depois do Grande Encarceramento. Organização Pedro Vieira Abramovay/Vera Malaguti Batista. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 34.

[ii] BINDER, Alberto. Derecho Procesal Penal. Hermeneutica Procesal Penal. Buenos Aires: Ad-hoc.

[iii] BINDER, Alberto. Hermeneutica Procesal Penal. op. cit, p. 15-16. Conferir, igualmente, BINDER, Alberto. Política Criminal de la formulación a la práxis. Buenos Aires: Ad-hoc, 1997, p. 39.

[iv] A expressão saber de batalha é de Alberto Binder. Cf. Hermeneutica Procesal Penal, obra citada.

[v] Cf. MARTINS, Rui Cunha. A hora dos cadáveres adiados. Corrupção e Expectativa.

[vi] Ibidem, p. 119

[vii] BARATTA, Alessandro. Prefácio. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica. Do controle da violência à violência do controle penal. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

[viii] Estas ponderações devem ser tributadas ipsi litteris à Salo de Carvalho no contexto das conversações estabelecidas no âmbito do grupo de pesquisa já citado nesta obra, Teoria Crítica e Crítica da Racionalidade Punitiva na Faculdade Nacional de Direito (FND-UFRJ).

[ix] Conferir ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica. op. cit.

[x] A este respeito, cf. CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. São Paulo: Saraiva, 2015.

[xi] Desenvolvemos o conceito de direito processual penal como dispositivo de contra-poder jurídico em CASARA, Rubens. MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do Processo Penal brasileiro. Dogmática e Crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.


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