29/03/2024 - Edição 540

Mato Grosso do Sul

Assim morrem os Kaiowá

Publicado em 10/11/2017 12:00 -

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O lançamento do livro “Do corpo ao pó: crônicas da territorialidade kaiowá e guarani nas adjacências da morte” – vencedor do Prêmio Anpocs 2016 – do antropólogo Bruno Martins Morais, traz informações alarmantes sobre a situação dos Kaiowá em Mato Grosso do Sul.

Na última década, o Estado liderou absolutamente o ranking dos estados mais violentos contra povos indígenas no Brasil. O Relatório de violências contra os povos indígenas no Brasil publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) registrou, no ano de 2013, 53assassinatos de indígenas no país, sendo que 33 (62%) ocorreram no Mato Grosso do Sul. Desde 2003, são 349 homicídios contabilizados pelo Cimi no estado, o que corresponde a 56% do total de homicídios contra indígenas no Brasil.

Nos padrões internacionais, qualquer região com taxa acima de 10 homicídios por 100 mil habitantes é considerada uma zona de violência endêmica, e o Estudo global sobre homicídios do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime registra em 2012 uma média de 6,2 homicídios para cada 100 mil habitantes em todo o globo.

Somam-se aí os suicídios — e são muitos. Nos últimos dez anos da contagem do Distrito Especial de Saúde, 506 indígenas no Mato Grosso do Sul apelaram para a corda e foram encontrados dependurados em galhos de árvore ou nas travessas dos barracos. “Asfixia mecânica”, “constrição cervical”, “enforcamento”, é o que resta registrado nos laudos necrológicos. Entre as 39 ocorrências de suicídios de 2013, apenas duas envolveram meios distintos do enforcamento: um jovem guarani que ingeriu veneno, e um Terena que se matou com uma arma de fogo. A estimativa é que mais de mil suicídios tenham ocorrido somente entre os Kaiowá e Guarani nos últimos 30 anos. As vítimas, em sua maioria, são adolescentes do sexo masculino. A faixa etária de maior incidência é entre 15 e 19 anos entre os rapazes, e de 10 a 14 anos no sexo feminino.

Novamente, os números relativos delineiam uma conjuntura catastrófica. No relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS), com dados contabilizados até 2012, o país que lidera o ranking mundial de suicídios é a Guiana, com uma taxa de 44 ocorrências a cada 100 mil pessoas; o Brasil figura em oitavo lugar em números absolutos, com quase 12 mil ocorrências, mas a média de seis mortes a cada 100 mil é uma taxa baixa, e representa metade da média mundial. Tomando os dados da Sesai, contudo, o que se vê é que os indígenas no Mato Grosso do Sul detêm uma taxa de suicídios mais de treze vezes maior do que a população brasileira em geral. Se, apenas pelo exercício de argumentação, considerássemos os indígenas do estado como uma nação independente, eles liderariam o ranking mundial com uma taxa quase sete vezes pior que a referência da OMS para constatação de uma epidemia.

Por que tantos jovens indígenas tiram suas vidas no Mato Grosso do Sul, quem saberia dizer? Nas descrições do relatório do Cimi, a cena é quase sempre a mesma: “A vítima estava com uma corda no pescoço amarrada a uma árvore, foi encontrada pelo marido que não soube explicar o motivo do suicídio”, consta da descrição de uma ocorrência no ano de 2009. Em 2011, um jovem kaiowá de 27 anos da aldeia de Amambai “foi encontrado pendurado no galho de uma árvore, e não se sabe o motivo do suicídio”. Quando em vez, no entanto, as notas registram uma possível motivação: contendas familiares, brigas entre casais… Jovens eventualmente se matariam por rixas com os amigos, e algumas vítimas são descritas como “mostrando um comportamento de tristeza”.

O tom de outras entradas já é o de um desespero, ou de uma vergonha, associados ao trabalho ou à condição social dos suicidas. Na Reserva Indígena de Amambai, em 2010, um rapaz de 23 anos “teria se matado porque ficou envergonhado por receber uma quantia muito pequena em dinheiro pelo seu trabalho numa usina”. Ele foi encontrado morto, com uma corda no pescoço, deitado em uma cama. Em 2012, um adolescente de 16 anos do acampamento Jatayvari, no município de Ponta Porã, teria comentado com a irmã que “desejava muito comprar uma moto, o que seria impossível, pois teria que esperar muito”. Enforcou-se, logo depois. Ainda naquele mesmo ano, N. D., de 24 anos, chegou em casa vindo de Campo Grande após uma temporada de trabalho na construção civil; sua mulher “notou que estava triste e estranho”, e ele “contou que não estava contente com o trabalho e que teria sido melhor que não tivesse ido”. No final da tarde, seu corpo foi encontrado atado a uma árvore à beira do rio.

N.D. vivia no Passo Piraju. Era sobrinho de Dona Macilene e do Sr. Arnaldo, e, portanto, primo do adolescente de 16 anos que terá caído ou sido atirado de um ônibus em movimento a caminho do trabalho no corte de cana — o caso do filho de Macilene e Arnaldo não encontrei registrado nos relatórios do Cimi. Seria interessante saber se a metodologia do Conselho Indigenista Missionário o classificaria como suicídio ou homicídio, posto que os eventos nunca foram esclarecidos e não há, no Mato Grosso do Sul, narrativa sobre morte de indígena que não esteja em disputa, nem motivação que se faça suficientemente clara. Não há explicações óbvias, não há perícia que aclare as dúvidas e acalme as angústias. No discurso dos parentes enlutados, sobram acusações por ação ou omissão e não há diferença entre suicídio e homicídio.


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