29/03/2024 - Edição 540

Especial

Estamos em guerra

Publicado em 07/11/2017 12:00 -

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Em 2016, mais de 60 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. É isso que aponta um novo relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no último dia 30. Chega a soar óbvio falar que esse número é alto — afinal, são mais de 60 mil pessoas; mas quão alto é esse valor, de fato?

O número exato é até um pouco maior: foram 61.619 mortes causadas intencionalmente (ou seja, só são contabilizados homicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte) em território brasileiro durante o ano passado. Para comparação, é como se a população inteira de cidades como Paraty (RJ) ou Campos do Jordão (SP) simplesmente fossem dizimadas ao longo de um ano.

O cenário é de guerra. Um relatório produzido pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, respeitada instituição inglesa de pesquisa, apontou que o Brasil matou tanto quanto a Síria. Em 2016, na nação que convive com uma guerra civil foram cometidos, também, 60 mil assassinatos. O estudo ainda mostra que matamos três vezes mais do que o Iraque e o Afeganistão, respectivamente com 17 e 16 mil cidadãos assassinados durante o ano passado.

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Em números proporcionais, a situação tende a ficar tão ruim quanto. Foram 29,9 assassinatos a cada 100 mil habitantes, o quádruplo do que aparece em países vizinhos como a Argentina, onde um levantamento do governo mostrou que a mesma taxa não passa dos 6,6. Mesmo na República Democrática do Congo, o valor é de 13 assassinatos a cada 100 mil habitantes. Números como os nossos só começam a aparecer em países conhecidos por sua periculosidade, como Trinidad e Tobago ou África do Sul, onde os número também giram em torno dos 30 assassinatos a cada 100 mil habitantes, de acordo com um estudo feito pelo Banco Mundial em 2015. Levantamento esse, aliás, que traça a média mundial como 5,5 assassinatos a cada centena de milhar – um quinto do valor brasileiro.

Dá até para comparar com tragédias históricas. Em 1946, o governo americano calculou que a então recente bomba de Hiroshima teria feito um número quase similar de vítimas: 66 mil. Quando pensamos na outra cidade japonesa bombardeada pelos yankees, o número é ainda mais impressionante: a estimativa aponta que 39 mil pessoas morreram instantaneamente em Nagasaki, 56% a menos do que o montante de vítimas brasileiras de 2016.

E como se não bastassem as más notícias, a pior delas é de que a tendência não é melhorar. Este é o pior resultado desde que o Fórum começou a ser publicado, em 2011 – de lá para cá, nossos assassinatos subiram 22%.

De 2011 a 2015, Brasil teve mais mortes violentas do que a Síria

Não é exagero dizer que o Brasil é um dos países mais violentos do mundo. O Anuário de Segurança Pública 2016, já havia deixado isso bem claro: entre 2011 e 2015, houve mais mortes por causas violentas por aqui do que na Síria – país que enfrenta uma guerra civil violenta, e que é dominado pelo Estado Islâmico.

Na Síria, nesses cinco anos de conflito, morreram 256.124, de acordo com a ONU; no Brasil, foram 279.592 (quase a população da Islândia, 330 mil) – uma diferença de 23.468 pessoas. Dá quase uma Islândia inteira (que tem 320 mil habitantes). Só em 2015, foram 58.492 mortes – quase uma a cada nove minuto). O mais triste é que, entre as vítimas daqui, 54%  eram jovens (de 15 a 24 anos) e 73%, negros.

De longe, a causa mais comum é o assassinato, que aconteceu em 89% dos casos. Mas também destacam-se o latrocínio (roubo seguido de morte), responsável por quase 4% dos óbitos, e lesões violentas, que resultaram em 1,4% das mortes.

Como negros representam a maior parte da população pobre do país (76%, segundo o IBGE), eles acabam também correspondendo à fatia mais vulnerável da população. A violência policial, por exemplo, é especialmente intensa contra negros ou pardos: eles correspondem a 75% dos mortos por oficiais. Em 2015, 21.033 pessoas foram assassinadas pela polícia – quase 36% do total de mortes violentas (levando em conta apenas os dados oficiais). É um número bem maior do que o de latrocínios, por exemplo, que fizeram 2.314 vítimas.

Isso leva a três dados assustadores: 70% da população brasileira acha que a Polícia Militar é truculenta demais, 58% afirmam ter medo dessa violência e 53% temem ser assassinados pela PM. De fato, só 6% acreditam que a violência exercida pela polícia estaria “na medida” certa para o combate ao crime – e metade dos brasileiros acha que ela é ineficiente em manter a segurança do país.

Polícia que mata e morre

De acordo com o Anuário de 2016, a nossa Polícia Militar é uma das que mais matam no mundo – mas também é a que mais morre, em comparação com outras nações. Por ano, entre os quase 500 mil policiais militares do país, acontecem 393 homicídios (103 em serviço, 290 fora de serviço), e 70% desses profissionais afirmam conhecer pelo menos um colega que morreu. Para dar uma ideia, no mesmo período nos EUA, a polícia matou 442 pessoas – e perdeu 127 policiais.

O clima de terror que todo esse contexto causa é palpável: 76% dos brasileiros têm medo do assassinato. E 57% acreditam que “bandido bom é bandido morto” – ou que as pessoas que cometem crimes não têm uma punição adequada. Você deve estar pensando que isso só pode ser resultado de pouco investimento em segurança pública pelo governo. Mas não é pouco o dinheiro que vai para essa área: em 2015, a União gastou R$ 76,3 bilhões em segurança, equivalente a 1,38% do PIB brasileiro. A quantia até vem aumentando (desde 2002, cresceu 62%), e é semelhante aos gastos de países desenvolvidos, como Espanha (1,2% do PIB) e Alemanha (1,3%).

Soluções

Como evitar que as mortes violentas continuem subindo?

"A ação acontece em duas pontas: primeiro, preciso melhorar a qualidade de vida das pessoas, para deixá-las menos expostas à gramática do crime. Depois que o sujeito comete o crime, devo trabalhar para que não haja reincidência", diz o professor da FGV Rafael Alcadipani, que cita a regulamentação das drogas para diminuir o poder do crime organizado.

Para Daniel Cerqueira, pesquisador do IPEA, o investimento precisa ser mais em ações de inteligência e menos no que chama de polícia reativa, "espalhada pelas ruas para tentar, via policiamento ostensivo, refrear a violência".

Olaya Hanashiro, conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, destaca o "papel fundamental" dos municípios em políticas de prevenção, "olhando para os grupos mais vulneráveis". Os municípios, diz, devem trabalhar em resolução de problemas e ter uma guarda preparada para mediar conflitos, "e não uma reprodução do que não está dando certo".

As 30 cidades mais violentas do Brasil, segundo o Ipea

A cidade de Altamira, no Pará, lidera o ranking dos municípios mais violentos do Brasil, formulado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com dados de 2015.

O cenário retratado pelo estudo, segundo os autores da pesquisa, acabou evoluindo para a crise de segurança pública que estremeceu o país no início do ano. De acordo com o estudo, essa crise é resultado direto da incapacidade dos governos em planejar, propor e executar políticas minimamente efetivas para a área.

Em 2015, 59.080 morreram vítimas de homicídios no Brasil — o que equivale a 28,9 mortes a cada 100 mil habitantes.

Isso significa que, a cada três semanas, 3,4 mil pessoas foram assassinadas no Brasil – um número maior do que a quantidade de mortos nos 498 ataques terroristas que aconteceram nos cinco primeiros meses de 2017.

A taxa mostra uma nova acomodação nos níveis de homicídios no país, que passaram da faixa de 48 mil a 50 mil até 2007 para um novo nível de 59 mil a 60 mil em 2015.

No geral, houve uma redução no número de assassinatos na região Sudeste, uma estabilização no Sul, e, por outro lado, um grande crescimento nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Desta vez, além da publicação do estudo, o Ipea anunciou o lançamento do site Atlas da Violência, que vai trazer dados e estatísticas sobre violência urbana no país.

Municípios mais violentos

O índice do Ipea leva em conta a taxa de homicídios mais o número de Mortes Violentas com Causa Indeterminada.

Em Altamira, essa taxa ficou em 107, o que quer dizer que houve 107 mortes para cada 100 mil habitantes.

A presença dessa cidade no topo do ranking pode ser explicada pelos baixos índice de desenvolvimento humano (IDH) e renda per capita, mas não só: há o fenômeno de crescimento econômico desordenado, provocado pela construção de Belo Monte.

Em segundo lugar no ranking, aparece Lauro de Freitas, na Bahia, com incidência de 97,7 homicídios; seguida por Nossa Senhora do Socorro, em Sergipe, e São José do Ribamar, no Maranhão.

A primeira capital do ranking é Fortaleza, no Ceará, em 13º na lista. Entre os 30 municípios mais violentos, há três da região Sul e um da região Sudeste: todos os outros estão no Nordeste, Centro-Oeste ou Norte do país.

Veja o ranking das 30 cidades mais violentas do Brasil:

Posição

Estado

Cidade

Taxa

1

PA

Altamira

107

2

BA

Lauro de Freitas

97,7

3

SE

Nossa Senhora do Socorro

96,4

4

MA

São José de Ribamar

96,4

5

BA

Simões Filho

92,3

6

CE

Maracanaú

89,4

7

BA

Teixeira de Freitas

88,1

8

PR

Piraquara

87,1

9

BA

Porto Seguro

86

10

PE

Cabo de Santo Agostinho

85,3

11

PA

Marabá

82,4

12

RS

Alvorada

80,4

13

CE

Fortaleza

78,1

14

BA

Barreiras

78

15

BA

Camaçari

77,7

16

PA

Marituba

76,5

17

PR

Almirante Tamandaré

76,2

18

BA

Alagoinhas

75,7

19

BA

Eunápolis

75,1

20

GO

Novo Gama

75

Senado quer saber sua opinião sobre o Estatuto do Armamento

Diante do descalabro da violência, as coisas ainda podem piorar. O Senado Federal abriu uma consulta pública sobre o  projeto de lei que institui o Estatuto do Armamento, que – em linhas gerais – facilitaria o porte de armas no Brasil.

Até o último dia 7, mais de 92 mil pessoas tinham manifestado apoio à proposição e pouco mais de 11 mil votaram contra.

O projeto de lei 378/2017 foi protocolado em 5 de outubro pelo senador Wilder Morais (PP-GO), dois dias depois do ataque em Las Vegas, que matou mais de 50 pessoas e reacendeu nos Estados Unidos o debate contrário à liberação do porte de armas.

Na justificativa do projeto de lei, o senador usa o caso como exemplo de que “não são as armas que matam as pessoas, mas sim o próprio ser humano” já que, segundo ele, a taxa de homicídios no Brasil por armas de fogo é superior a dos Estados Unidos, onde é mais fácil adquirir uma arma legalmente.

Entre as mudanças sugeridas por Wilder no projeto está a redução para 18 anos da idade mínima para ter arma (hoje é 25 anos) e validade de 10 anos para o registro (hoje, de cinco anos).

Em setembro, o senador apresentou outro projeto de decreto legislativo sobre o mesmo assunto.

O texto propõe a realização de um plebiscito, junto com as eleições gerais do ano que vem, para que a população se manifeste sobre a liberação do porte de armas de fogo para cidadãos residentes em áreas rurais e a revogação do Estatuto do Desarmamento e sua substituição por um instrumento normativo que assegure o porte desse tipo de  arma pessoas que preencham determinadas regras. 

O projeto aguarda parecer na Comissão de Constituição e Justiça da Casa. Até esta segunda, 239 mil pessoas já tinham manifestado apoio à proposta em outra consulta pública.

Para a presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), senadora Regina Sousa (PT-PI), o porte de armas não é a solução para a criminalidade. “A sociedade cobra da gente, o parlamentar acha que a solução mais fácil é liberar o armamento, mas não vai dar certo”, disse.

A senadora acredita que liberar o porte de armas não amedronta os bandidos e que eles não vão deixar de abordar as pessoas. Ela defende melhorias da segurança pública, por exemplo, combate efetivo ao tráfico de drogas, pois, segundo ela, os mercados de droga e de armas têm “os mesmos personagens”.

Regina Sousa é contra a liberação do porte e também da posse de armas, mesmo em áreas rurais, o que poderá ser permitido caso os parlamentares aprovem o PLS 224/2017, em análise na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Na visão da senadora, a proposta abre um precedente perigoso. “A arma estimula a pessoa a ficar valente, a se sentir segura, e pode fazer besteira”, avaliou.

Ela também ponderou que crianças podem ter acesso em casa, como no caso do atentado num colégio em Goiânia, em que um adolescente de 14 anos matou dois colegas e feriu quatro, usando a arma de um dos pais, ambos policiais.

Regina afirmou que, no Congresso, a pressão pelo armamento vem da indústria de armas e os parlamentares já têm sua opinião formada. Na sociedade, porém, ainda é possível debater e convencer a população de que “a solução não é ter arma”. A presidente da CDH informou que vai pedir que os projetos sobre armamento passem pela análise da comissão, mas caso não seja possível, que o tema pelo menos seja debatido no colegiado.


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