28/03/2024 - Edição 540

Judiciário

O Juiz Agente de Segurança Pública é o inquisidor contemporâneo

Publicado em 12/10/2017 12:00 -

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Se não bastasse a fusão do julgador com a parte acusadora no processo penal, o inquisitorialismo contemporâneo aproximou o juiz de uma das agências vinculadas ao poder executivo. Eis a figura dojuiz – secretário de segurança pública”.

A crença da população na função messiânica do judiciário parece assumir traços de uma veneração religiosa. Do ponto de vista subjetivo, a situação parece complicada, a considerar que as organizações e os atores que atuam no sistema criminal, em especial o juiz, são bombardeados por demandas de ordem e aderem à convocação de atuar como linha de frente de uma suposta “guerra contra o crime”. Renasce assim uma mística inquisitorial, uma cruzada cotidiana conduzida pelo julgador, tal como descrito por Franco Cordero.

Romper a aproximação entre juiz e promotor/juiz e secretário de segurança pública é uma tarefa difícil em razão do largo caldo cultural deixado pelo inquisitorialismo e, consequentemente, da consolidação de uma série de mitos autoritários no âmbito da justiça criminal.

Como desenvolvido por Rubens Casara, um destes mitos é justamente o mito do processo penal como instrumento de pacificação social [i] Desconstruí-lo não é fácil porque se trata de romper com um determinado padrão de racionalidade e, também, um atravessamento inconsciente.

O mito do processo penal como instrumento de pacificação social constitui um discurso que identifica o processo penal como instrumento de repressão e controle social, enquanto o juiz criminal figura como órgão de segurança pública ao lado das instituições policiais e do Ministério Público. Como demonstrado por Casara, há uma tendência à administrativização do juízo criminal, que passa a atuar de maneira parcial no combate aos “criminosos”.

É o que prova a peça publicitária recentemente divulgada pela Associação de Juízes Federais (Ajufe), claramente orientada a aproximar o correto funcionamento da justiça à perseguições e condenações criminais e não à tutela das liberdades públicas e do devido processo legal.[ii]

Esta perspectiva gera uma epistemologia autoritária, avessa a imposição de limites ao poder de punir. De igual sorte, esse quadro leva ao aumento do arbítrio estatal, decisionismos e, em especial, à diminuição da importância da imparcialidade do órgão julgador. As garantias processuais, em sua concretude, passam a ser vistas como entrave à eficiência repressiva.

Veja como isto ocorre na prática:

O Juiz de Direito Alexandre Abrahão Dias Ferreira determinou o arquivamento do inquérito policial instaurado para apurar a responsabilidade penal de agentes policiais no episódio conhecido como a morte de Márcio José Sabino, o “Matemático”. Na ocasião, em rede nacional, foi publicado um vídeo em que o comerciante de drogas ilícitas foi literalmente caçado, como um animal, pela polícia. O cidadão foi perseguido por um helicóptero, em cadeia nacional, de onde a polícia militar disparou tiros em sua direção com o nítido propósito de alvejá-lo. Márcio foi encontrado morto, tempos depois, dentro de um carro.

Os fundamentos exarados na decisão constituem um exemplo emblemático da transformação de um magistrado em parte operante das agências estatais encarregadas de executar uma determinada política de segurança pública. No caso brasileiro, em especial no Estado do Rio de Janeiro, uma política criminal de extermínio, com apologia aberta à execução sumária, violência policial e abuso do poder do Estado. Consta o seguinte da decisão pelo arquivamento:

“Amanhã e todos os dias gostaríamos de acordar e saber que poderemos subir nos coletivos, trafegar nos nossos veículos, desfrutar nossas praias, almoçar, jantar e curtir todos os espaços sempre com a certeza que acima de nós Deus e seus anjos negros, nas suas máquinas voadoras lá estão prontos para nos deixar viver! Nós precisamos de vocês! Pagamos, ricos ou pobres, independentemente de raça, cor e credo, nossos impostos e temos direitos! Amamos vocês! Somos a parcela amordaçada e leal a vocês! Vão lá e façam de novo a diferença, estamos gritando por vocês! Amém! Por todo o exposto e por estar convicto de que a ação dos investigados não constitui crime, DETERMINO O ARQUIVAMENTO com base no Art. 23, III do CP c/c Art. 395, III do CPP.”

Em outro momento da decisão, sustenta o juiz:

“em países evoluídos é assim! A prioridade é sempre de quem vive na legalidade, paga impostos e defende a pátria. Quem se opõe deve ser suprimido a qualquer custo porque se tal não ocorrer, o sistema se inverte, assim como vem ocorrendo aqui.”

Este é o exemplo envolvendo um juiz específico, mas deve ficar claro que a administração da justiça criminal envolve mais do que pessoas em carne e osso. O que está em questão é a presença de organizações, responsáveis por fornecer padrões de conduta, expectativas, orientações ideológicas e atravessamentos subjetivos.

Em uma democracia, entretanto, a agência judicial deveria controlar o exercício das políticas de segurança pública pelo executivo e não legitimar e apoiar a supressão de pessoas pelo Estado. Esta inversão do papel confiado ao judiciário em um Estado de Direito representa um dos grandes sintomas contemporâneos da fascistização do sistema de justiça penal.

Vários outros exemplos da transformação do juiz em secretário de segurança pública poderiam ser citados. No Rio de Janeiro é escandalosamente frequente o deferimento de mandado coletivo e genérico de busca e apreensão em favelas da cidade. Em 2014, a 39 ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, pelas mãos do juiz Ricardo Coronha Pinheiro franqueou o acesso à todas as residências do complexo da maré, que conta com mais de 120 mil moradores, distribuídos em 15 comunidades.

No início de 2017, a juíza Angélica dos Santos Costa da 02ª Vara Criminal da Comarca Regional de Jacarepaguá deferiu buscas e apreensões coletivas na Cidade de Deus, região oeste do Rio de Janeiro. Justificou a medida, dizendo que “em tempos excepcionais, medidas também excepcionais são exigidas com intuito de restabelecer a ordem pública”. A decisão foi impugnada. Por sorte, foi distribuída à relatoria do Desembargador Paulo Baldez da 05ª Câmara Criminal do TJRJ que a considerou abertamente ilegal: “caso não constem essas determinações no mandado, a pena é de inversão ao disposto no ordenamento jurídico vigente, inclusive de normas internacionais de proteção à pessoa humana, e violação frontal ao Estado Democrático de Direito.”

Por falta de espaço, ficaremos nestes casos. Há, por parte da maioria dos juízes criminais, uma concepção equivocada do papel constitucional que lhes foi reservado e, ao mesmo tempo, que tipo de segurança lhes compete preservar. Começarei pelo segundo aspecto.

A segurança deve ser primariamente entendida como proteção avançada de todas as liberdades.[iii] Pensada a partir do direito das liberdades públicas – no qual o direito penal e processo penal se inserem – precisa ser compreendida amplamente como garantia de segurança jurídica do indivíduo em face do poder, preservando-o contra toda repressão arbitrária. Hoje, a segurança do indivíduo em face do poder, possui problemas adicionais como, por exemplo, a concentração de dados de todos os aspectos da vida do cidadão nas mãos do Estado e de grandes empresas privadas do campo da internet/comunicação.

Como lembra Jean Rivero e Hugues Moutouh, “deixa de haver segurança quando nenhum comportamento individual é subtraído ao conhecimento e memória dos detentores do poder”. [iv] Não podemos esquecer ainda as lições de Alessandro Barata, segundo o qual a segurança é um interesse secundário, pois sempre está relacionado a outro interesse (primário) que se quer preservar, assim, ou o direito à segurança significa a efetiva segurança de todos os direitos para todos os indivíduos, ou é ideológico e implica na seleção de alguns direitos de algumas pessoas para serem protegidos, ao mesmo tempo em que limita direitos de outras pessoas (os excluídos).[v]

De qualquer forma, não se pode deixar de reconhecer que ao lado da segurança jurídica em face do poder ou da ideia de segurança dos direitos em detrimento de um direito à segurança, há uma aspiração à segurança material em face de agressões de todo tipo. Esta dimensão da segurança, que aqui denominaremos de segurança cotidiana ou, simplesmente, segurança pública, infelizmente, é a única privilegiada atualmente por governos das mais variadas orientações ideológicas.

Em uma delimitação insatisfatória, chamaremos de segurança pública o conjunto de políticas executadas pelo Poder Executivo com o objetivo de promover a manutenção de uma determinada noção de ordem, assim compreendida segundo os interesses sociais, políticos e econômicos de um modelo de Estado e governo. No contexto do neoliberalismo contemporâneo, responsável por desmantelar ou impedir que se efetivem as redes de proteção social, este conjunto de políticas está unicamente centrada sobre o poder punitivo, em especial, os mecanismos de controle e encarceramento da população pobre e negra.

O sistema de administração da justiça penal, por sua vez, deve ser entendido como um artefato criado pelo poder estatal que, como tal, compõe-se de várias organizações, como por exemplo, os aparelhos judicial, policial e penitenciário. Todas estas instâncias trabalham diretamente com a resposta violenta do Estado aos desvios criminalizados por ele e tem a função política de discipliná-lo, organizá-lo, contê-lo, enfim, garantir direitos em face do poder.

Estruturado de forma tão ampla, é inegável que o sistema de administração da justiça criminal mantém uma relação estreita com o instituto da Segurança Pública. Disso não resulta que todas as agências que constituem o sistema devem exercer a mesma função. Justo o contrário. O meu argumento central é a de que a relação entre estes aparelhos e a segurança pública está marcada por orientações constitucionais distintas.

Há um papel reservado à polícia, ao Ministério Público, outro ao judiciário e outro à administração penitenciária, para ficarmos nestas quatro organizações formais. Compreender a importância de cada um destes lugares e a finalidade político-jurídica de suas determinações sempre foi e, ainda é, o maior problema para a democratização da Justiça Penal. Tudo isto nos leva, portanto, ao ponto inicial. Existe uma relação entre segurança pública e sistema de administração da justiça criminal que não se pode deixar de reconhecer. Com mais acerto, há um vínculo estreito entre o dever de preservar as liberdades públicas e o sistema de justiça criminal. Qual é a função política do processo penal e, em especial, do juiz criminal neste campo?

Seguramente, não é o de se converter na parte togada do Batalhão de Choque ou do BOPE.

O processo penal se dedica a construir ferramentas de limites ao exercício da competência punitiva do Estado, cabendo ao juiz fincar estes marcos. As formas processuais e garantias fundamentais em matéria criminal constituem um escudo protetor do cidadão frente ao poder penal, sendo inaceitável que um juiz criminal possa flexibilizar garantias fundamentais em apoio à execução de uma política criminal que não lhe cabe exercer.

O processo penal é um dispositivo de contra-poder jurídico e o juiz, guardião das liberdades públicas. A sua função política, na relação que estabelece com a segurança pública, é a de conter a violência do Estado, estabelecendo uma disciplina rígida dos atos de poder.

Para termos Juízes Justiceiros da Sociedade que substituem a polícia, fazem as vezes do Ministério Público e mais parecem secretários de segurança pública, não precisamos de um sistema de administração de justiça penal. O juiz criminal que pretende exercer segurança pública por meio do processo penal não faz ideia do lugar institucional que ocupa, ou faz, e deliberadamente se despoja dele. Se transforma em general de uma suposta guerra que deveria conter e não incentivar. É assim que perdemos o terceiro, o ator imparcial, aquele em quem confiávamos que não atiraria, muito menos pelas costas.

A relação do Judiciário com a segurança pública só se justifica, portanto, como contenção da violência constitutiva do programa punitivo do Estado. Esse é o único modo de se relacionarem em uma democracia.

Antonio Pedro Melchior – Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro e Advogado Criminalista.


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