29/03/2024 - Edição 540

Especial

Corrupção em verde oliva

Publicado em 27/09/2017 12:00 -

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Manifestos em favor da intervenção militar, vistos nos últimos tempos em várias cidades brasileiras, exalam o bolor dos 51 anos que se passaram desde que apelos semelhantes foram erguidos pela primeira vez no Brasil, em 1964. Combater a corrupção, derrotar o comunismo e conter a inflação eram as palavras de ordem nos quartéis às vésperas do golpe que derrubou o presidente João Goulart. O que muitos manifestantes de agora parecem desconhecer é que, além de instaurarem um período de trevas no país, os militares não entregaram o que prometeram.

A inflação, que era de 80% no governo deposto, saltou para quase 300% no final da ditadura. O festejado “milagre econômico”, que levou o país a alcançar taxas anuais de crescimento de até 14%, foi o momento de maior concentração de renda da nossa história. E as relações espúrias entre o Estado e empreiteiras agora devassadas pela Operação Lava Jato também remontam àqueles tempos nada saudosos. Foi um decreto do governo militar, em 1969, que fechou as portas para as construtoras estrangeiras, catapultando empresas até então regionais – como Odebrecht, OAS, Mendes Júnior e Camargo Corrêa – à condição de donas das maiores obras públicas do país.

No último dia 15, um general do exército reacendeu no País um debate antigo. Em um evento maçônico, o general Mourão sugeriu que pudesse haver uma imposição militar para conter a crise política: "É óbvio que, quando nós olhamos com temor e com tristeza os fatos que estão nos cercando, a gente diz: 'pô, por que não vamos derrubar esse troço todo?' […] Nós estamos numa situação daquilo que poderíamos lembrar lá da tábua de logaritmo, de aproximações sucessivas, até chegar um momento em que ou as instituições solucionam o problema político pela ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou então nós teremos que impor isso."

Diante a fala, o comandante do Exército, general Villas Bôas, minimizou: "Essa questão está resolvida internamente. […] Ele inicia dizendo que segue as diretrizes do comandante. E o comando segue as diretrizes de promover a estabilidade, baseada na legalidade e preservar a legitimidade das instituições", disse em entrevista a Pedro Bial, na quarta-feira (20).

No dia 21, o ministro de Defesa, Raul Jungmann, e o comandante do Exército decidiram não punir formalmente o general Mourão. A afirmação gerou uma acalorada reação de setores democráticos que rechaçam completamente a mera hipótese, evocando os crimes praticados pelo regime, de 1964 a 1985, e de partidários de uma nova intervenção militar, segundo quem o que chamam de “período militar” foi isento de corrupção e desvios de conduta. Será?

Entulho autoritário

Mesmo 32 anos depois do final do período, o Brasil ainda sofre com alguns resquícios da ditadura militar. Especialistas entendem que os principais legados deste período são o autoritarismo e desrespeito aos direitos humanos pela segurança pública no País, desinteresse de pessoas bem intencionadas em participar da política e escândalos de corrupção.

O advogado e professor Felipe Lazzari da Silveira afirma que “nosso tempo é marcado por resquícios ou permanências autoritárias que possuem relação com períodos históricos autoritários anteriores, como a Era Vargas e a Ditadura Civil-Militar”.

Segundo ele, “tais permanências seguiram arraigadas em nossas instituições e também no imaginário da população pelo fato de que, no processo de transição da última ditadura para a democracia, não tratamos do legado deixado por aqueles regimes”.

“Nesse sentido, o período da Ditadura foi mais crucial para a consolidação do autoritarismo já que coincidiu com um período de modernização do País, bem como por ter promovido alterações importantes no nosso sistema político e também em outros campos, sobretudo no da segurança pública”, afirma.

O advogado e professor do Ibmec Taiguara Libano Soares e Souza concorda e diz que muito ainda resta dos anos de chumbo no tempo presente, o entulho autoritário. “As permanências do regime de exceção podem ser percebidas sobretudo na dinâmica autoritária característica de algumas instituições públicas, que não foram capazes de promover reformas consistentes de modo a compatibilizar-se com o regime democrático”. Segundo ele, “particularmente destacam-se as instituições policiais, em especial a Polícia Militar”.

“O autoritarismo estatal, construído ao longo de duas décadas de ditadura, ainda deixa marcas evidentes no modus operandi das corporações, naturalizando procedimentos absolutamente incompatíveis com o Estado Democrático de Direito, como a tortura como meio para obtenção de provas, a repressão penal desproporcional e desarrazoada a manifestações populares, os elevados índices de letalidade policial dando ensejo a verdadeiras execuções sumárias e extrajudiciais”, afirma Souza.

Ele exemplifica a afirmação dizendo que a violência institucional atinge especialmente os setores mais vulneráveis da população brasileira, “notadamente jovens, negros e pobres, moradores das periferias urbanas”.

“A título exemplificativo, vale apontar que apenas no Rio de Janeiro, nos últimos 10 anos, mais de 10.000 civis foram mortos pelas polícias em operações, números de um país em guerra”, argumenta.

Silveira diz que muito deste legado se deve ao fato de não termos apurado e julgado os crimes cometidos naquele período pelo Estado. Segundo o especialista, nós também não reformamos devidamente nossas instituições.

Desse modo, considerando ainda que o Regime Militar procedeu diversas modificações em termos de leis e decretos, tudo para dar um aspecto de legalidade ao regime, logicamente, grande parte da nossa sociedade encara essa parte do passado como apenas mais uma parte da nossa história, e não como um crime.

Segundo ele, “quando não lembramos do passado, temos uma tendência de repetir os erros daquele período no futuro”. Hoje, Silveira acredita que “grande parte dos problemas que enfrentamos atualmente, são frutos do período ditatorial e seu legado”.

“Se temos um déficit de líderes políticos, podemos pensar, por exemplo, que a Ditadura contribuiu para isso, na medida em que interrompeu violentamente o processo de formação dessas lideranças ao cassar mandatos, assassinar ou exilar pessoas que tinham boas intenções e vontade de participar da vida política do País”, diz Silveira.

O especialista diz que a Comissão Nacional da Verdade e a Comissão de Anistia fizeram o que foi possível para mudar essa percepção dos brasileiros sobre o período ditatorial. Porém, ele afirma que o trabalho foi insuficiente se comparado ao “estrago” causado pelo governo militar.

“Mas precisamos pensar nisso, encontrar alternativas, ou iremos seguir convivendo com o desinteresse pela política, com a violência policial extremada, dentre outros expedientes autoritários que infelizmente seguem sendo visto com normalidade”, diz.

Souza argumenta que é preciso resgatar nossa história, impedindo o esquecimento e contribuindo para a responsabilização dos agentes de crimes contra a humanidade. Assim, segundo ele, existe uma construção de uma cultura de respeito aos direitos humanos.

“Desta forma, pode-se falar na necessidade de políticas de não-repetição, ou seja, medidas que permitam a consolidação da democracia e vedação da repetição das violações de direitos humanos típicas do regime de exceção”.

Período de “glória”?

Souza diz que, certamente, parcela da população tem a compreensão equivocada de que, supostamente, durante a ditadura não havia corrupção, além de ter se revelado como um período em que havia maior segurança e êxito na condução da política econômica.

Porém, ele lembra que “a essência de uma ditadura reside na inexistência de liberdade de imprensa e liberdade de expressão, bem como da perseguição política, com a perseguição política institucionalizada e o fechamento dos partidos”.

“Desta forma, não havia condições objetivas para que grandes esquemas de corrupção fossem denunciados ou apurados. Pesquisas recentes apontam que boa parte das grandes empresas envolvidas em escândalos de corrupção com o poder público atualmente, foram criadas durante o regime de exceção”, afirma.

Além disso, ele lembra que, no período não havia independência e imparcialidade nas instituições. Assim, “o Poder Judiciário, Ministério Público e Polícia não manifestavam atuação contra os arbítrios perpetrados pelo regime militar”.

O mesmo pode-se apontar para a suposta segurança durante os anos de chumbo. Segundo Souza, com o número de aproximadamente 30 mil presos e torturados — além de milhares de perseguidos, exilados, cassados, demitidos — não se pode afirmar que o Brasil teve segurança em um regime que “promove violações sistêmicas aos direitos humanos fundamentais”.

Silveira afirma que “não existe ‘glória’ nenhuma nesse passado”. Ele diz que, internacionalmente, “passamos vergonha” quando afirmamos que algumas pessoas defendem o retorno da ditadura.

Nesses países, onde de certo modo o legado ditatorial foi tratado com muita seriedade, onde muitos torturadores, independente da idade foram julgados, condenados e presos, praticamente todos os cidadãos consideram o Estado ditatorial como um crime”.

Ditadura militar enriqueceu grandes empreiteiras

Ao contrário do que dizem seus defensores, a ditadura brasileira foi muito corrupta. E mais do que isso: ao barrar construtoras estrangeiras das obras do "milagre econômico", militares celebraram o casamento entre o Estado e as grandes empreiteiras.

Denúncias contra empreiteiras pipocaram nos anos 1950, principalmente com os planos de JK de fazer o Brasil crescer 50 anos em 5. Depois, voltaram com a redemocratização. Já na ditadura, o silêncio. Sinal de limpeza? Não para o historiador Pedro Henrique Pedreira Campos, autor de Estranhas Catedrais. “Isso evidencia obviamente não o menor número de casos, mas o amordaçamento dos mecanismos de fiscalização e divulgação.”

Em 1969, o presidente Costa e Silva barrou empresas estrangeiras de participar das obras públicas no País. Com essa reserva de mercado e as obras faraônicas da ditadura – como Transamazônica, Itaipu, Tucuruí, Angra, Ferrovia do Aço e Ponte Rio-Niterói -, as construtoras se tornaram grandes grupos monopolistas ligados intimamente com o Estado e com poucos mecanismos de controle.

Até a década de 1960, as obras da Odebrecht mal ultrapassavam os limites da Bahia. Com o protecionismo de Costa e Silva, começou a dar saltos. Primeiro, construiu o prédio-sede da Petrobras, no Rio. Os contatos governamentais na estatal abriram portas para novos projetos, como o aeroporto do Galeão e a usina nuclear de Angra. Assim, de 19ª empreiteira de maior faturamento, em 1971, pulou para a 3ª em 1973, e nunca mais deixou o top 10. Outra beneficiada foi a Andrade Gutierrez, que saltou do 11º para o 4º lugar de 1971 para 1972.

Empreiteiras menos amigas da ditadura tinham futuro menos brilhante – como a mineira Rabello. Desde a década de 1940, seu proprietário Marco Paulo Rabello foi próximo a JK. Na prefeitura de Belo Horizonte, passou-lhe o Complexo da Pampulha. No governo de Minas, foram rodovias estaduais. Finalmente, como presidente, JK deu-lhe o filé mignon de Brasília: o Eixo Monumental, incluindo a Catedral, o Alvorada e o Planalto. Mas JK era um dos grandes desafetos dos conspiradores de 1964. Com o golpe, a Rabello ficou de escanteio. Foi perdendo licitações até ir à falência nos anos 1970.

Foi assim que, ao fim da ditadura, dez irmãs detinham 68,7% do faturamento das cem maiores empreiteiras – para Campos, não necessariamente por sua excelência técnica e administrativa, mas por suas conexões políticas.

Bom era na ditadura… Tá.

“No tempo do militarismo é que era bom, pelo menos não tinha corrupção.” Quem não tropeçou nessa frase nos últimos anos ou não tem Facebook, ou não frequenta roda de bar nem salão de beleza, ou não recebe visita em casa. Em tempos de descoberta de escândalo em cima de escândalo em todos os Poderes e em cada uma das esferas de todos eles, tornou-se senso comum comparar o atual estado ético da sociedade brasileira — principalmente na questão público-política — ao da época em que os generais mandavam no País.

Uma visão obviamente caolha, ao negligenciar valores essenciais, como a liberdade de expressão, sufocada durante os anos de chumbo do regime. Mas, pior, uma visão errada também: a corrupção correu solta durante os anos de militarismo e os próprios comandantes que tomaram o poder prometendo acabar com a praga foram forçados a admitir que pouco (ou nada) poderiam fazer contra ela.

Ao assumir o poder após anos de tribulação, havia duas “bandeiras de luta” a que se comprometia o novo regime (o que, aliás, é curioso, pois ditadura não tem de dar satisfação a ninguém): uma era livrar o País do “mal do comunismo”; outra, combater a corrupção — o que, na verdade, não era nenhuma promessa inédita. Naquela que viria a ser a última eleição que o Brasil teria para presidente pelas próximas três décadas, o jingle do então candidato da conservadora UDN à Presidência, Jânio Quadros, virou um clássico da campanha: “Varre, varre, varre, varre, varre vassourinha/ Varre, varre a bandalheira/ Que o povo já está cansado/ De sofrer desta maneira/ Jânio Quadros é a esperança/ Desse povo abandonado/ Jânio Quadros é a esperança/ Desse povo abandonado…”

Claro, Jânio ganhou. E decepcionou. Assim como ganharia e decepcionaria Fernando Collor de Mello em 1989, depois de proclamado o “caçador de marajás” em uma indefectível capa da revista “Veja”. Ambos, Jânio e Collor, como intrépidos salvadores da pátria, fizeram crer que venceriam a corrupção. Como se fosse só estalar um dedo ou acionar uma lâmpada de Aladim. Ocorre que a corrupção nunca bateu asas e voou do Brasil. Pelo contrário, sentou praça com a comitiva de Pedro Álvares Cabral e gostou da terra. Apesar de não ser exclusividade tupiniquim, é tão endêmica — embora mais nociva — quanto o mosquito da dengue ou a cachaça. Poderia ser controlada, com doses anti-impunidade.

No hiato entre as duas eleições presidenciais, a turma verde-oliva avocou a prerrogativa de extinguir a aberração. E o “estalar de dedo” foi o execrado Ato Institucional nº 5 (AI-5), editado em 1968 e que se tornou o marco mais simbólico do que houve de pior no período ditatorial. Dando poderes extraordinários ao Presidente da República, suspendeu garantias e se sobrepôs à Constituição de 67 — já promulgada para servir ao regime militar, ressalte-se. Mas além das aberrações contra os direitos políticos e civis, o instrumento tinha também um item no mínimo pretensioso: seu Artigo 8º queria varrer a corrupção punindo os acusados com a perda de bens: “O Presidente da República poderá, após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública, inclusive de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem prejuízo das sanções penais cabíveis.”

Fácil como a Transamazônica

Um relato bem didático e sintético do que os militares fizeram foi feito pelo historiador Carlos Fico, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e está no livro “Como Eles Agiam: os Subterrâneos da Ditadura Militar” (Record, 2001). Por exemplo, para executar o trabalho relativo ao tal Artigo 8º, foi criada a Comissão Geral de Investigações (CGI). Para vencer a vilã corrupção, seus membros passaram a atuar como super-heróis justiceiros por todo o País. Era como fazer a Rodovia Transamazônica: da mesma forma que seria “só” rasgar aquela mata com as máquinas do desenvolvimento, os paladinos da moralização ética precisariam “apenas” fazer cumprir aquele item do poderoso AI-5. Fácil.

Fácil até começar. Conforme relata o livro de Carlos Fico, para moralizar o país as 20 subcomissões da CGI tiveram de lidar com casos de corrupção tão diversos como o aumento de salários da magistratura e de membros do Tribunal de Contas do Paraná e o atraso de salários da rede municipal de ensino de São José do Mipibu (RN); o adubo superfaturado comprado pela Secretaria de Agri­cul­tura de Minas Gerais e a alta do preço da carne em Manaus; co­brança de taxas escolares indevidas no Espírito Santo e irregularidades na administração da Federação Baiana de Futebol.

Mas a população se envolveu. Assim como quando se multiplicou em “fiscais do Sarney” — o então presidente que, por ironia, se tornou um dos frutos mais viçosos que o período da ditadura ofereceria à política brasileira — pelo fim da inflação, acreditava que o fim da corrupção viria com a saga planejada pelos militares. “A força do discurso moral de combate à corrupção gerava simpatia em setores da sociedade, que encaminhavam, espontaneamente, denúncias à comissão”, relata Fico.

O problema é que os super-heróis do regime exorbitavam. Cometiam excessos variados e chegavam a se achar tão poderosos quanto a alta cúpula do governo, a ponto de criar atritos com diversos órgãos federais. Governadores se sentiram perseguidos.

Resultado de tudo: os militares acabaram se tornando prisioneiros da própria artimanha. Ainda no relato do historiador, em cinco anos (de 1968 a 1973) foram 1.153 processos. Destes, mil foram arquivados. Outros 58 viraram proposta de confisco e 41, alvo de decreto presidencial. Dez anos depois, a comissão era extinta, com o AI-5, pelo general-presidente Ernesto Geisel. Sem resultado concreto algum, ou porque os processos se mostravam mal fundamentados — e, então, vulneráveis a uma análise jurídica mais criteriosa — ou porque havia uma paralisação por conta de… injunções políticas. Ou seja, o mesmo motivo que, até hoje, continua impedindo a apuração e a punição de casos envolvendo grandes nomes do poder.

Cúpula do regime militar admitiu que corruptos se beneficiaram do regime

O presidente era Ernesto Geisel. E seu interlocutor, naquele dia, no prédio que abrigou o Ministério da Agricultura, era o almirante Faria Lima. A este, o comandante-em-chefe do Brasil admitiu, ao ser questionado se era mesmo hora de fazer a abertura política: “A corrupção nas Forças Armadas está tão grande que a única solução para o Brasil é fazer a abertura”, desabafou Geisel. Uma declaração fortíssima, registrada no livro “História Indiscreta da Ditadura e da Abertura” (Record, 1999), do historiador Ronaldo Costa Couto, doutor pela Universidade de Sorbonne, em Paris.

Outra declaração, esta resgatada por Carlos Fico em seu livro “Como Eles Agiam: os Subterrâneos da Ditadura Militar”, mostra que os chefes do poder militar fizeram seu mea-culpa já no início do regime. “O problema mais grave do Brasil não é a subversão. É a corrupção, muito mais difícil de caracterizar, punir e erradicar”, admitiu o ministro Estevão Taurino de Resende, o primeiro presidente da Comissão Geral de Investigação (CGI), que caçava tanto os que considerava subversivos como os supostos corruptos nos primeiros anos do regime. Era ele que tinha de dar conta — conforme escreveu Armando Falcão, outro ministro, mas da Justiça, no governo Geisel, em seu  livro “Tudo a Declarar” (Nova Fronteira, 1989) — dessa parte da política de Castelo Branco, o primeiro presidente da ditadura civil-militar no Brasil, que tinha sido chefe do Estado-Maior do Exército nomeado pelo deposto João Goulart e se tornou um dos líderes do movimento golpista. 

No texto “Falso Moralismo”, publicado na “Revista de História” (2009), a cientista política Heloísa Murgel Starling, diz que não havia medida para coibir os desregramentos, já que a própria ditadura suprimia os limites a quem quer que se colocasse no alto do poder. “Havia privilégios, apropriação privada do que seria o bem público, impunidade e excessos.” O general Gleuber Vieira, em depoimento aos professores Celso Castro e Gláucio Ary Dillon Soares, em 1994, publicado depois no livro “A Volta aos Quartéis — Memória Militar Sobre a Abertura” (Relume-Dumará, 329 páginas), diz que na ditadura “houve deslizes de que eu mesmo, na época, tomei conhecimento”, embora ressalte o período como “de austeridade como poucos na história republicana”.

É bem verdade que a atitude de parte dos militares pareceu ser genuína, apesar de ingênua, na busca da solução do drama da corrupção no País. Não contavam eles que alguns dos colegas de farda pudessem se envolver em casos — o que levava à paralisação de processos de apuração dos fatos, para não respingar na imagem idônea que precisava passar o regime. Se os generais presidentes não ficaram ricos, o mesmo não se pode dizer de muitos e muitos civis (e militares) que estiveram às bordas do poder. Fortunas foram erguidas durante os anos do “milagre econômico”; suspeitas de superfaturamento pairam até hoje sobre obras como a Ponte Rio–Niterói, ainda que não houvesse instrumentos tecnológicos para uma apuração mais acurada; e foram, ainda, muitos os episódios de corrupção que vazaram para a imprensa apesar de todo o fechamento da estrutura comunicacional, como os casos Luftalla (1977), Jorge Atalla (1979), Econômico (primeira parte, na década de 70) e Coroa Brastel (1985), entre vários outros.

Por fim: para comprovar a existência da corrupção na ditadura, bastaria admitir que houve tortura e que tenha sido acobertada pelo regime. Para torturar, desfigurar corpos, mutilar outros e tirar vidas sem deixar margem para questionamentos, era preciso “legalizar” procedimentos. A tortura deixava de ser tortura com a anuência e cumplicidade de agentes dos diversos poderes (peritos, policiais, delegados, juízes, gestores, parlamentares etc.). Ou seja, o que uns faziam para justificar evasão de divisas, outros usavam para evasão de corpos. É “menor”, essa corrupção?

O sagrado direito de não precisar de super-herói

É um tanto estranho uma terra com mais de 500 anos nas costas viver uma democracia ainda recente. Mais do que isso, o atual é o mais longo período verdadeiramente democrático no Brasil. Como diria um ex-presidente (também enrolado nas artimanhas da corrupção), nunca antes na história deste País houve um tempo com tal qualidade de verdadeira democracia como agora. É tão democrático que se pode inclusive pedir a volta da ditadura, escrever sobre isso e postar nas redes sociais. 

Tentem imaginar o inverso. Escrever, na época do general Emílio Garrastazu Médici umas poucas e boas sobre a tal Revolução de 64 e exigir a volta dos direitos políticos plenos e o fim do regime. E puxar uma convocação, via redes sociais, para uma passeata, ou ao menos um rolezinho, contra a turma fardada. Chega a ser surreal — e é mesmo.

A frase “bom era na época dos militares” carrega uma série de incongruências históricas e sociológicas, a tal ponto de não ser possível acreditar que alguém realmente pense que possa ser assim. Falar sobre “menos corrupção” apontando para a ditadura é como ignorar uma montanha de defeitos na antiga namorada para justificar uma birra com a atual por uma imperfeição que ambas carregam. 

O que incomoda, na verdade, é sabermos que temos uma democracia assim, imperfeita. Assim também era a democracia no começo dos anos 1960, quando havia a ascensão dos movimentos sociais juntamente com uma temperatura cada vez mais alta da Guerra Fria. Isso catalisou a saída dos militares dos quartéis para os palácios e retardou, em meio século, o progresso da democracia no Brasil: menos de 20 anos após sair do regime de exceção do Estado Novo, em 1945, o País voltava a ser tomado de assalto. 

A democracia é a pior forma de governo, sem contar todas as demais que já foram experimentadas, dizia o primeiro-ministro britânico Winston Churchill. E na democracia brasileira que temos é preciso conviver com gente questionável que cresceu na política exatamente no período não democrático: assim foi com Antonio Carlos Magalhães, assim é com Paulo Maluf, José Sarney e tantos outros, que souberam jogar o jogo dos militares, cresceram durante o regime e entraram com muito poder na fase pós-ditadura, a ponto de distribuírem as cartas. A ponto de existir Pedrinhas no meio do caminho de toda uma Nação.

O problema do Brasil não é a democracia: é a corrupção. Melhor até: não é nem a corrupção — que existe em qualquer local do planeta —, mas a impunidade à corrupção. Pedir o retorno do militarismo como resposta à corrupção na democracia é o mesmo que ver o bode em cima do sofá da sala e tirar o sofá. E para combater a corrupção nada melhor do que instituições fortes. Ano a ano depois de mais uma redemocratização, elas estão sendo construídas e ajudando a estabelecer novos paradigmas. Nada disso é perfeito, mas a tendência é que este aprendizado aperfeiçoe a democracia, especialmente quando ela surge não pelas mãos de super-heróis, seres messiânicos, mas pelo que há de melhor nela: suas instituições, os poderes Legislativo, Executivo e Ju­diciário.

Mas, enfim, há chances de um golpe?

Para Dulce Pandolfi, historiadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), não é provável. Mas, a baixa reação da sociedade a esta possibilidade é um alerta.

Para Dulce, a sociedade brasileira está muito polarizada. “Bolsonaro e Mourão representam esse segmento mais radical. Mas, ao mesmo tempo, todas as pesquisas mostram um crescimento de Lula para as eleições. Apesar da expressão de Bolsonaro nas pesquisas, o pensamento de direita proto-fascista tem um teto e não vai crescer mais do que isso. Esse setor não tem uma hegemonia na sociedade, é um segmento minoritário”, acredita.

Dulce lembra que mesmo a corrupção em vários âmbitos e a investigação do presidente da República não validam uma intervenção militar e a consequente quebra do rito democrático no país. “Nada justifica. A democracia se aperfeiçoa com mais democracia. A corrupção é endêmica no Brasil. É uma ilusão pensar em um governo militar como forma de combate à corrupção, por mais caótica que esteja a sociedade brasileira, justamente porque o regime militar também foi corrupto”.

Ela sustenta, ainda, que o alto nível de confiança da sociedade das Forças Armadas é fruto de disputa por projetos de memória. “É difícil combater um projeto que foi muito veiculado e abrandado naquele período. Vivemos como se os militares não tivessem sido ditatoriais. E esse discurso tem uma forte penetração forte na sociedade. E o lado que combateu a ditadura não conseguiu esclarecer para a população quão maléfico foi aquele período, mesmo com as descobertas da Comissão Nacional da Verdade. Somos um país que padece de cidadania. Esse setor conseguiu implantar a sua versão e esse caos que o Brasil está vivendo hoje reforça essa versão”, afirma.

10 escândalos de corrupção da ditadura militar

1. Hidrelétrica de Itaipu

A maior produtora de energia elétrica do mundo provavelmente também foi a obra em que mais se desviou verba pública durante o regime militar. Em 1979, o embaixador José Jobim foi encontrado morto com uma corda no pescoço. Sua filha afirma que uma semana antes ele estava na posse de João Figueiredo e havia anunciado que escreveria um livro sobre a corrupção na construção da usina. Jobim participou do empreendimento indo ao Paraguai para negociar as turbinas com a empresa Siemens. Sinais de sangue nas roupas e os pés encostados no chão, mas o investigador concluiu que teria sido "suicídio" sem sequer abrir o inquérito. (Leia a fonte aqui.)

2. Paulipetro

"Rouba mas faz" foi o slogan de ninguém menos que Paulo Maluf, que teve empresa criada para a perfuração de petróleo enquanto foi governador de São Paulo. Depois de perfurados 69 poços, constatou-se que não havia petróleo algum e que R$ 4 bilhões foram gastos na "empreitada". Belo presente da ditadura militar, tão aclamada pelos saudosistas dos coturnos e uniformes verde e amarelo, proporcionou à política brasileira.

3. Ponte "Costa e Silva" (Rio-Niterói)

O primeiro grande empreendimento faraônico dos militares, a Ponte Rio-Niterói demorou 5 anos para ser entregue e passou por dois consórcios diferentes. O general Costa e Silva, que "humildemente" deu o próprio nome à ponte, licitou a Construtora Ferraz Cavalcanti, a Construtora Brasileira de Estradas, a Empresa de Melhoramentos e Construções S.A. e a Servix Engenharia S.A, que entregariam a obra por 238 milhões de cruzeiros em 1971.

Com o atraso nas obras e inúmeros acidentes que levaram a morte de muitos operários, o ministro dos Transportes, Mário Andreazza, da alta cúpula das obras faraônicas dos militares, adiou a inauguração e entregou a obra para a Camargo Corrêa, Mendes Júnior e Construtores Rabelo Sérgio Marques de Souza.

Segundo O Globo, a obra terminou custando US$ 674 milhões de dólares na época. Já segundo a Istoé, o empreendimento teria ficado em R$ 5 bilhões. Difícil saber o número exato quando os militares escondem as informações e censuram a imprensa.

4. Delfim Neto e a Camargo Correa

Delfim Neto foi ministro da Fazenda durante o governo Costa e Silva, Médici, embaixador na França durante o governo Geisel e ministro da Agricultura no governo Figueiredo.

Sobre ele pesam as suspeitas, também abafadas pela censura e pelo encobrimento de tudo o que ocorreu durante os governos militares, de ter facilitado a Camargo Correa na construção de outras duas hidrelétricas, de Água Vermelha (MG) e de Tucuruí. As denúncias foram publicadas em no livro "Ditadura Acabada" de Élio Gaspari.

A hidrelétrica de Tucuruí, no projeto US$ 2,5 bilhões, acabou custando US$ 10 bilhões de dólares. (Fonte.)

5. Newton Cruz e o caso Capemi

Um caso leva a outro, e o jornalista e colaborador do Serviço Nacional de Inteligência, Alexandre von Baumgarten, teria sido morto por ter contato com as denúncias envolvendo o general Newton Cruz com a Agropecuária Capemi e a exploração da madeira no futuro lago Tucuruí (ver anterior). Pelo menos US$ 10 milhões de dólares teriam sido desviados para beneficiar o SNI. O ex-delegado do Dops, Cláudio Guerra, declarou em 2012 que a ordem para matar veio do próprio SNI.

6. Transamazônica

Conhecida por ser a a estrada que liga o nada ao lugar nenhum, a Transamazônica foi uma obra faraônica bilionária e inconclusa por parte dos militares, durante o governo Médici (1969 – 1974). O projeto previa a ligação do Cabedelo, na Paraíba, à cidade de fronteira Benjamin Constant, no Amazonas. A ideia era seguir até o pacífico pelo Peru e o Equador, uma roubalheira realmente sem limites, combinado ao desmatamento da mata, expulsão de povos indígenas e seringueiros. No fim, a Transamazônica terminou 687 km antes, em Lábrea, e, claro, sem asfalto. Nem por isso, deixou de custar a bagatela de US$ 1,5 bilhões de dólares na época.

7. Grupo Delfin

A corrupção rolava tão solta, que os corruptos de casos diferentes se juntavam esporadicamente para roubar. No caso do grupo Delfin, Mario Andreazza (ministro do Interior, ex transportes) e Delfim Netto (Planejamento, ex fazenda) se encontram com Ermano Galvêas (Fazenda), em uma reportagem da Folha de SP em 1982 que apontou que a empresa de crédito imobiliário Grupo Delfin, dos três, recebeu 70 bilhões de Cruzeiros do Bando Nacional de Habitação (governo) para quitar dívidas.

8. Golpe militar financiado por Caixa 2

Em 2014, o coronel reformado Elimá Pinheiro relatou à Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo que os militares receberam financiamento através de caixa 2 de empresas. No caso relatado Raphael de Souza, presidente da Federação das indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), teria pago o equivalente a, nos dias de hoje, R$ 9,5 milhões para comprar o apoio do general Amaury Kruel, que comandava o 2º Exército em São Paulo e havia sido Ministro da Guerra de João Goulart.

Segundo o depoimento, "Cada um trazia duas maletas, uma em cada braço. No total, seis maletas. (…) Mandei abrir. Começou uma briga, mas olhei e vi que era só dólar, dólar, dólar. Todas elas cheias de dólares. Amarradinhos do banco, aqueles pacotes de depósito bancário. Um milhão e 200 mil dólares." Kruel jurava lealdade a Jango e rapidamente mudou de lado.

"Ninguém doava dinheiro de lucro" disse Paulo Egydio Martins, ex-governador de São Paulo e presidente da Associação Comercial de São Paulo na época. Este fato ilustra que, não só existiu corrupção durante a ditadura militar, mas mais que isso, se não fosse a corrupção dos capitalistas, os militares não teriam força para se manter no poder por si próprios, sem o apoio dos capitalistas que financiaram aquele regime autoritário em troca de multiplicar seus lucros. (Fonte aqui..)

9. Corrupção do chefão do Dops: Paranhos Fleury

Um dos nomes mais conhecidos da repressão, atuando na captura, na tortura e no assassinato de presos políticos, o delegado paulista Sérgio Fernandes Paranhos Fleury foi acusado pelo Ministério Público de associação ao tráfico de drogas e extermínios. Apontado como líder do Esquadrão da Morte, um grupo paramilitar que cometia execuções, Fleury também era ligado a criminosos comuns, segundo o MPF, fornecendo serviço de proteção ao traficante José Iglesias, o "Juca", na guerra de quadrilhas paulistanas. No fim de 1968, ele teria metralhado o traficante rival Domiciano Antunes Filho, o "Luciano", com outro comparsa, e capturado, na companhia de outros policiais associados ao crime, uma caderneta que detalhava as propinas pagas a detetives, comissários e delegados pelos traficantes.

Fleury também é acusado de envolvimento em diversos outros episódios de sequestro, tortura e assassinato durante a ditadura militar, entre eles os do militante Carlos Lamarca e do dominicano Frei Tito, caso relatado no filme Batismo de sangue. Também participou da prisão de participantes do Congresso de Ibiúna da União Nacional dos Estudantes (UNE) e é apontado como um dos comandantes da Chacina da Lapa, em São Paulo, e da Chacina da Chácara São Bento, no Recife.

10. Fraude do Farelo

Na pequena cidade de Floresta, Pernambuco, a agência do Banco do Brasil fazia empréstimos a pessoas influentes do estado, supostamente para plantar mandioca. Mas elas nunca pagavam: alegavam que a seca destruíra os plantios que nunca foram feitos e os prejuízos eram cobertos pelo seguro agrícola. Em 1981, quando se descobriu a mutreta, calculava-se que o valor total dos “empréstimos” chegara a 700 milhões de dólares. O processo de desvio de dinheiro não foi concluído e, claro, nenhum dinheiro foi devolvido. Em Pernambuco mesmo, no ano seguinte, grandes pecuaristas pediam financiamento para comprar farelo para alimentar o gado e aplicavam o dinheiro na caderneta de poupança. Essa história ficou conhecida como “fraude do farelo”.


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