28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Para juristas, decisão que permite tratar homossexualidade é absurda e marca retrocesso

Publicado em 19/09/2017 12:00 -

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A liminar deferida pelo juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho na sexta-feira (15), no Distrito Federal, que permite aos psicólogos oferecerem tratamento contra homossexualidade tem repercutido e causado revolta. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) divulgou uma nota em que se posiciona contra a decisão da Justiça Federal e afirma que irá recorrer. Além disso, grupos ativistas LGBT, como o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero e a Aliança Nacional LGBT afirmaram que ingressarão no processo para reverter a decisão.

Como apontam especialistas, a decisão atenta contra os Direitos Humanos, além de princípios éticos profissionais da profissão de psicólogo, como fica nítido na Resolução 01/1990 do CFP, em que foi acordado que profissionais da área “não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados”. Deste modo, o conselho de ética proíbe qualquer ação discriminatória que sugira algum tipo de “cura” para homossexuais. 

Ainda de acordo com o a resolução, “os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas”.

Entretanto, apesar de ser algo que já há muito foi superado pelos debates em direitos humanos e pela medicina – vale dizer que a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da lista de doenças em 1990 – o juiz suspendeu em liminar os efeitos da Resolução 01/1990, ao alegar que a proibição de atuar em favor da “cura gay” atentaria contra a liberdade profissional dos psicólogos.

O caso despertou intensa revolta. O Doutor em Direito Constitucional, Professor na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Alexandre Bahia, afirmou que a decisão do juiz é absurda e retoma conceitos há muito ultrapassados:

“Essa decisão é absurda: ela retoma conceitos já há muito superados, seja aqui seja fora do País. Falar em permissão de tratamento para pessoas homossexuais usando a desculpa da “egodistonia” distorce conceitos, mais uma vez, há muito debatidos e definidos. (…) O juiz que deu a liminar parece desconhecer as dúzias de Normas de Direito Internacional – seja OEA, ONU, OPAS/OMS que, reiteradamente, têm falado contra terapias de ‘cura’ da homossexualidade. Associações Médicas e de Psicologia, do Brasil, dos EUA, da Europa, etc., há anos reúnem centenas de pesquisas e artigos mostrando que tais terapias são não apenas enganosas mas desastrosas para os que a ela são submetidos” afirmou o professor. 

O Professor Doutor de Direito na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Renan Quinalha, em seu perfil no Facebook criticou a decisão e afirmou que acionará o Conselho Nacional de Justiça contra o magistrado: “Depois de décadas de luta pela despatologização, ressuscita-se o discurso da cura de uma doença. A decisão (…) é exemplo perfeito disso. Vamos denunciar o juiz ao CNJ e divulgar bastante esta notícia absurda. A farra do Judiciário conservador que decide contra a lei precisa acabar” afirmou.

A Advogada, Mestre em Direito pela PUC/SP e co-fundadora da Rede Feminista de Juristas, Mariana Serrano, também discordou da decisão, a qual qualificou como “gravíssima” – “eleger a ‘manutenção a liberdade de pesquisa’ em detrimento da vedação a práticas de tortura física e psicológica e estigmatização de toda uma parcela populacional importa em violação gravíssima aos direitos humanos” – afirmou.

Mariana lembrou ainda dos efeitos da decisão para quem é constantemente invisibilizado no debate LGBT, como pessoas bissexuais:“outro fator relevante, é que a forma como essa informação tem sido veiculada pela mídia reproduz o apagamento da bissexualidade, ironicamente na semana da visibilidade bissexual. Pessoas bissexuais também são estigmatizadas com a patologização de orientações não-heterossexuais, e a mídia tem falhado lembrar que existimos”, completou.

No Twitter repercutiu a hashtag #HomofobiaÉDoença, a qual até o momento da publicação da matéria estava em primeiro lugar nos trending topics mundiais. 

Veja a decisão na íntegra.

Primeiro país a banir a "cura gay"

O Brasil está bem longe de ser o paraíso da tolerância e ainda mais distante de ser um exemplo de segurança e garantia de direitos à população LGBTQ. No entanto, fomos o primeiro país em que as autoridades de saúde mental se manifestaram contra a terapia de conversão, também chamada de terapia de reorientação sexual, terapia reparativa ou cura gay, um conjunto de métodos que consideram a sexualidade da pessoa como critério para determinar um quadro de saúde mental – e que pregam a heterossexualidade como única orientação sexual “saudável”.

Apesar da recente decisão do juiz federal da 14ª Vara do Distrito Federal ter aberto brecha para que psicólogos ofereçam “cura gay”, o tratamento foi proibido pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) há 18 anos. De acordo com o CFP, a decisão liminar “abre a perigosa possibilidade de uso de terapias de reversão sexual. A ação foi movida por um grupo de psicólogas (os) defensores dessa prática, que representa uma violação dos direitos humanos e não tem qualquer embasamento científico”. O Conselho ainda defende que “terapias de reversão sexual não têm resolutividade, como apontam estudos feitos pelas comunidades científicas nacional e internacional, além de provocarem sequelas e agravos ao sofrimento psíquico”.

Em 1999, o CFP estabeleceu que seus profissionais não poderiam colaborar com eventos ou serviços de tratamento para reversão da homossexualidade e que não deveriam reforçar o preconceito fazendo qualquer tipo de relação entre orientação sexual e transtorno psicológico.

Mas esse “pioneirismo brasileiro”, na verdade, esconde um atraso global na abordagem do assunto. Até pouco tempo atrás, cientistas insistiam na teoria do distúrbio. Nas décadas de 1950 e 1960, um grupo de terapeutas aplicou uma técnica semelhante ao método Ludovico de Laranja Mecânica para “curar” a homossexualidade masculina. No experimento, gays foram expostos a imagens de homens nus enquanto levavam choques elétricos ou eram obrigados a consumir substâncias que os faziam vomitar. Quando os participantes não conseguiam mais aguentar a sessão, os cientistas mostravam fotos de mulheres peladas ou os enviavam a encontros com enfermeiras jovens.

Assim como na história de Anthony Burgess, os cruéis testes não mudaram a orientação sexual deles, inclusive, contribuíram para desenvolvimento de traumas psicológicos. Desde então, não faltam exemplos científicos que comprovam que homossexualidade não é uma doença e, por isso, não pode nem precisa ser tratada.

A homossexualidade e o conceito de “distúrbio de orientação sexual” saíram completamente da relação de doenças do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) dos Estados Unidos e da Associação Americana de Psiquiatria em 1987. A Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da sua listagem de patologias em 1992. A decisão do Conselho Federal de Psicologia brasileiro aconteceu sete anos depois.

Mesmo que muitas nações estejam empenhadas na garantia de direitos civis igualitários e no combate à homofobia, o movimento contra a “cura gay” é relativamente recente. Autoridades do Reino Unido, Canadá, Israel e de alguns estados americanos vêm se posicionando contra o “tratamento” por falta de embasamento científico desde 2007. Austrália, Chile e Suíça, por exemplo, só manifestaram repúdio à prática em 2016. Também ano passado, Malta se tornou o primeiro país europeu a banir esse tipo de terapia. De acordo com a nova lei maltesa, quem for pego tentando mudar ou reprimir a orientação sexual de alguém será multado ou preso.

Infelizmente, a realidade no arquipélago mediterrâneo está longe de ser regra. Gays, lésbicas, bissexuais e transexuais são alvo de ataques de ódio em vários lugares do mundo – em algumas nações são vistos como criminosos e estão sujeitos à pena de morte. Segundo informações da ILGA (International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association), 73 países consideram que sexo gay é crime. O número equivale a quase 40% dos membros da ONU.

Por aqui, mais homossexuais são assassinados que nos 13 países do Oriente e África onde há pena de morte contra os LGBT. Mesmo que a liminar no Distrito Federal seja freada por instituições de saúde, jurídicas ou de direitos humanos, continuamos com indicadores que comprovam a exclusão e o desrespeito com a população LGBT. No Brasil, um homossexual morre a cada três dias – de acordo com as estatísticas do Grupo Gay da Bahia (GGB). E sete em cada 10 brasileiros gays já sofreram algum tipo de violência. Também lideramos o ranking mundial de assassinato de transexuais.

Diante dessa contagem alarmante de vítimas, difícil é entender como ainda não foi criado nenhum tratamento contra a homofobia.


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