18/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Cultura do estupro faz a culpa ser transferida do agressor para a vítima

Publicado em 29/08/2017 12:00 -

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Um novo relatório do Ministério da Saúde mostra que dez estupros coletivos ocorrem diariamente no Brasil. O dado pode ainda representar apenas uma parcela da possível chocante realidade: 30% dos municípios brasileiros não fornecem os dados ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).

“O estupro coletivo é um tipo de violência que choca as pessoas e gera uma repercussão maior”, afirmou Arielle Sagrillo-Scarpati, doutoranda em psicologia forense na Universidade de Kent, na Inglaterra.

“Ter uma classificação que diferencia o estupro cometido por um agressor do cometido por dois ou mais nos ajuda a entender melhor quais são as dinâmicas desse fenômeno.”

O levantamento mostra ainda um aumento no número de estupros coletivos: foram 1,5 mil crimes do tipo registrados em 2011, em comparação aos 3,5 mil notificados em 2016. Segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo, dados sobre violência sexual se tornaram de notificação obrigatória pelos serviços públicos e privados de saúde desde 2011.

Conversamos com Sagrillo-Scarpati, cujos estudos abordam violência contra a mulher, mitos da cultura do estupro, teoria de gênero e feminismo, sobre a importância desses dados (e da falta de parte deles) e as consequências desse tipo de crime para as vítimas. Confira.

Qual é a definição de cultura do estupro?

Falar de cultura do estupro é falar da forma que a sociedade se organiza para justificar a violência contra a mulher. São normas, comportamentos e práticas sociais que permitem que esse tipo de violência aconteça e que, quando aconteça, a responsabilidade seja transferida do agressor para a vítima

Como práticas que por vezes são vistas como “inofensivas”, como as cantadas, por exemplo, podem legitimar outras violências, como estupro e feminicídio?

São várias práticas que legitimam e sustentam a desigualdade de poder. A violência sexual é quase a ponta final da escala, e tem outras mais sutis, mas que não deixam de ser violências. Cantadas e alguns comentários são práticas que têm como função lembrar a mulher qual é o lugar dela na sociedade, do que pode acontecer com ela se não se comportar de determinada maneira.

É um lembrete à mulher de que o corpo dela é um objeto para a satisfação do homem, que ele tem o direito de a usufruir. E já que ela é um objeto, não precisa de consentimento. Pensar em combater a violência sexual é levar em consideração todos esses graus, desde os mais sutis aos mais graves.

O que a ciência já sabe sobre os agressores?

Depende da perspectiva teórica abordada, mas já foi observado que homens machistas e que são apegados às normas tradicionais de gênero, de querer ser visto como macho, por exemplo, têm mais chances de cometer estupros. Existem vários discursos que permitem que o homem cometa violência e não tenha a responsabilidade do que aconteceu atribuída a ele.

É necessário pensar no contexto dessas crenças. Há ainda um discurso de que o estuprador tem distúrbio mental, que o crime por ser agressivo ou ter um tipo de transtorno. Pode até ser verdade, talvez tenha, mas de modo geral, o que temos observado na literatura é que os agressores não têm patologia.

Falar de cultura do estupro é falar da forma que a sociedade se organiza para justificar a violência contra a mulher.

Se fosse o caso, como explicaríamos casos de estupros coletivos? No Brasil ocorrem 10 estupros coletivos por dia, todos esses agressores teriam patologia?

O estupro coletivo torna mais evidente o quanto é falho o discurso da patologização do agressor: é muito mais do que uma característica individual do agressor. É complicado porque a literatura a respeito do tema é nova, pouco foi produzido sobre esse assunto [estupros coletivos]. Do pouco que temos até agora, sabemos que nesses tipos de violência, os agressores costumam ser pessoas mais jovens e, as agressões, mais violentas.

Uma pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde mostra que o número de estupros coletivos aumentou significativamente desde 2011…

Precisamos avaliar o quanto o número reflete o aumento de casos ou de denúncias. De qualquer forma, é necessário prestar atenção nos índices: mesmo quando tivermos um sistema que funcione muito bem e funcione de forma equivalente no país todo, o estupro é um dos crimes com maior número de subnotificação.

Ainda com sistema organizado, a vítima tem muita dificuldade em registrar e denunciar o ocorrido. É muito mais complicado do que imaginamos, tem uma série de razões para as violências não serem notificadas — a não compreensão da vítima de que o que ela passou foi estupro é uma delas.

Um fator que tem se repetido no Brasil é a divulgação de vídeos e fotos após os estupros coletivos. Como isso pode afetar as vítimas?

Tornar público faz com que a vítima, além da violência física, seja submetida à uma segunda violência, a social. Um estudo recente da Suécia mostra que vítimas de estupros coletivos foram mais responsabilizadas pelo que aconteceu a elas do que as que foram abusadas por uma só pessoas. As vítimas de estupros coletivos foram mais responsabilizadas porque, segundos os participantes, se elas estavam com vários homens em um lugar, estavam pedindo que algo do tipo lhe acontecesse — se elas fossem de respeito, não se colocariam em uma situação de risco.

Ficamos intrigados quando vimos a apresentação sobre o assunto, já que a Suécia é considerada muito avançada em questão de igualdade de gênero. Isso nos faz pensar sobre o quanto os discursos e práticas que tiram a responsabilidade do agressor estão em todos os lugares. Em alguns pode ser mais velado, o que não significa que não exista.


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