20/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

O Lobby que habito

Publicado em 25/08/2017 12:00 - Rodrigo Amém

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Quando esta treta aconteceu, eu provavelmente estava ocupado com Trump, Temer ou os dois. Mas eu não queria deixar passar (ainda mais) a oportunidade de falar sobre o caso: Almodóvar pagou um micão como presidente do júri no Festival de Cannes. Foi o dia em que Will Smith, "O Maluco no Pedaço", deu uma aula de tolerância e diplomacia no fleumático diretor de "Fale com Ela".

O caso é que a Netflix inscreveu alguns filmes na seleção do evento. Mais precisamente, "Okja" e "The Meyerowitz Stories". De acordo com as regras do festival, apenas títulos exibidos nos cinemas da França podem participar da seleção.

E veja bem, a Netflix não se importaria, em princípio, de levar seus filmes às telonas francesas para participar do festival. O problema é que as distribuidoras do país determinam uma reserva de mercado de três anos antes que os filmes exibidos nas suas salas possam ser comercializados via streaming.

Três anos.

Claro que a Netflix não topou a regra abusiva. Pressionado pelo lobby das distribuidoras francesas, Almodóvar fez uma defesa holística da importância das salas de cinema.

"Creio firmemente que, ao menos na primeira vez que uma pessoa vê um filme, a tela não deve ser parte de nosso imobiliário. Devemos nos sentir diminutos, humildes, diante daquilo que vemos", afirmou o cineasta, justificando porque seria absurdo um filme nunca visto nas telonas ser premiado num festival de cinema. Will Smith discordou, lembrando que a plataforma proporciona acessibilidade para milhões de pessoas e pode perfeitamente coexistir com as salas de exibição. Almodóvar fez biquinho e amarrou a cara, mas aí já era tarde. Um dos mais aclamados diretores contemporâneos tinha tomado um corretivo do astro de Homens de Preto 2.

Eu até entendo um artista defender que suas obras sejam vistas sempre sob as condições ideais. Deve ser por isso que Almodóvar proíbe a comercialização de suas obras em Blu Ray ou entrecortadas por intervalos comerciais no Supercine da Rede Globo. #SóqueNão. O fato é que o conceito "condições ideais" é subjetivo. Eu, por exemplo, acho que ser obrigado a me deslocar até o cinema e esperar na fila à meia noite pela única sessão não-dublada disponível é longe de ideal. Mas não sou a única vítima das práticas predatórias do mercado cinematográfico.

Oferecer um acervo variado a qualquer cidadão com 30 reais e uma rede wifi deveria ser celebrado por todos os realizadores de audiovisual. Menos, talvez, aqueles que não possuem interesse na democratização ao acesso à linguagem cinematográfica.

A mão de ferro das distribuidoras afeta a produção do audiovisual dentro e fora do Brasil. Em Hollywood, muitos filmes são censurados ou até mesmo deixam de ser produzidos em função da força destes lobistas. Mesmo aqui, em que as ferramentas de subvenção viabilizam produções de menor "potencial mercadológico", são os distribuidores que decretam quais películas serão ou não agraciadas com o privilégio da exibição pública.

E é por isso que essas organizações usam toda sua força para determinar quem pode ou não participar dos festivais de cinema. Não tem nada a ver com "tradição" ou "condições ideais" de fruição artística. A ideia é garantir que só quem passou pelo gargalo da distribuição possa participar de festivais e ganhar divulgação na mídia. Mesmo que isso signifique divulgar filmes que ninguém viu ou verá.

Para que eu assista a um filme indicado a Cannes, por exemplo, tenho que me sujeitar à agenda da distribuidora internacional, sua afiliada brasileira e a disponibilidade de salas de exibição. No Rio de Janeiro, pode levar até seis meses para que um referido filme esteja disponível. E não vamos nem falar da qualidade da sala de exibição e do valor do ingresso.

Esse argumento de que só é cinema se você assistir no cinema, além de desonesto, é elitista. Fosse feita a vontade de Almodóvar, pouca gente na terrinha teria acesso à sua obra. Qual foi a última vez que um filme deste grande diretor foi exibido em um cinema em Dourados, Corumbá ou mesmo Campo Grande?

Foi por isso que a Netflix foi bater na porta de Cannes. Para mostrar a plataforma como um espaço viável para a produção de conteúdo cinematográfico de qualidade. Uma nova forma de viabilizar projetos sem as restrições físicas como o número de telonas disponíveis num determinado momento.

Como toda tecnologia desruptiva, o streaming o incomoda quem detém o controle do mercado. Oferecer um acervo variado a qualquer cidadão com 30 reais e uma rede wifi deveria ser celebrado por todos os realizadores de audiovisual. Menos, talvez, aqueles que não possuem interesse na democratização ao acesso à linguagem cinematográfica. Eu suspeitava que havia muito "artista" nessa lista. Mas Almodóvar me surpreendeu. Ainda assim, talvez um pouco menos do que sua afirmação de que ele "era feminino o bastante" para não precisar incluir mulheres no seu júri do festival.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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