25/04/2024 - Edição 540

Camaleoa

Coração e mente doentes

Publicado em 16/01/2014 12:00 - Cristina Livramento

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Giovanna Nantes, 19 anos, espancada supostamente pelo ex-namorado Matheus Georges Zadra Tannous, também de 19 anos, teve o rosto desfigurado e o maxilar quebrado em quatro partes. Está em recuperação, em casa com a família, com 12 pinos no rosto.

Dayane Silvestre Uliana, 26 anos, assassinada com três tiros na cabeça, pelo ex-marido Júlio César Barreira, 38 anos, enquanto dirigia no cruzamento das avenidas Manoel da Costa Lima e das Bandeiras.

Ângelo da Guarda Borges, 58 anos, manteve por 22 anos a esposa, 44 anos, e os quatro filhos, 15, 13, 11 e 5 anos, em cárcere privado. Ângelo espancava diariamente a mulher e os filhos e dava apenas arroz como alimento.

Segundo a Polícia Civil, só em Campo Grande, os boletins de ocorrência já somam mais de 208 registros.

José Mário Ferreira, pecuarista, 58 anos, matou a mulher, a médica Maria José de Pauli, de 60 anos, com golpes de barra ferro na cabeça. Depois ligou para a filha, contou o que tinha acabado de fazer e se enforcou no quintal da casa.

Rafael London Marques da Silva, 27 anos, foi preso dia 9 de janeiro por matar e enterrar a mulher Marcia da Costa Moreia, 34 anos,  nos fundos de um residencial, em Dourados. À polícia, Rafael disse que a morte de Márcia foi um “acidente”.

Com exceção do caso de cárcere privado, todos os outros crimes fazem parte das estatísticas de 2014 de violência contra a mulher em Mato Grosso do Sul. Segundo a Polícia Civil, só em Campo Grande, os boletins de ocorrência já somam mais de 208 registros.

Na frente da tela do computador ou da tevê, a primeira coisa que vem à cabeça é entender o que leva uma mulher a apanhar de um companheiro e mais do que isso, permitir que essa relação de violência perdure por anos e mais, que a imobilize a ponto de não conseguir pedir socorro.

Pelas ruas e nas conversas com os amigos, infelizmente, os questionamentos não são muito fieis a essa linha de pensamento. Grande parte deles parte do princípio de que mulher não deve mexer com homem, “se mexe tem que tá preparada pra aguentar a porrada.” Para Roberto*, mulher provoca. “Você acha que homem vai lá provocar um policial armado, não, não vai porque sabe que vai apanhar. Por que mulher provoca homem?”

Mas você acha mesmo que justifica, por exemplo, bater a ponto de quebrar o maxilar de uma garota de 19 anos em quatro partes?

No caminho até a manifestação em frente da Prefeitura, da família e amigos de Giovanna, tentei argumentar com ele sobre esse conceito. – Mas você acha mesmo que justifica, por exemplo, bater a ponto de quebrar o maxilar de uma garota de 19 anos em quatro partes? “Sabe-se lá o que ela fez pra ele.”

Em seguida ele me diz que sabe de muitos homens que vivem a mesma cena de violência em casa com suas companheiras. “Mas você vê isso na imprensa, não, não vê. Não vê porque homem tem vergonha de ir na delegacia contar que apanha de mulher.” Então é uma questão de ter vergonha de denunciar ou não ter vergonha de se expor e apanhar? Nossa, as pessoas conseguem me confundir.

Delair Nantes, 53 anos, do lar, acha que cada pessoa tem um pensamento. “Uns se envolvem por dinheiro, outros por amor, mas é sempre uma relação de poder, de mostrar quem é que manda.”

José Arnelino Clementino, paraibano e carpinteiro de 83 anos, morador há 63 em Campo Grande, se orgulha dos 13 casamentos que teve e de nunca ter batido em nenhuma de suas mulheres. “Pra mim isso é erro dos dois. Os dois são fracos da cabeça. Nós somos coração e mente, a pessoa que é mau tem o coração e a mente doentes.” Clementino não aprova a combinação álcool e provocação. “Se o cabra já tá todo cheio de álcool na cabeça e a mulé chama ele de viado, tá provocando, aí é confusão na certa.”

Outra estatística que é assusta é o número de sentenças de processos das Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Campo Grande. O número dobrou em um ano. Em 2012 foram sentenciadas 1.207 ações, em 2013, 2.700 julgamentos. Os números são do Tribunal de Justiça. Só nos dez primeiros dias de 2014, as duas Varas da Violência Doméstica da Capital receberam 269 novos processos.

Por outro lado, o que poderíamos dizer para os Robertos que acham que mulher gosta de apanhar e que apanha porque provoca? Quando você conversa com um homem que pensa desta forma fica claro nos primeiros minutos que nada do que você diga vai mudar a concepção de mundo que ele tem. Esse homem é burro, é doente?

José Arnelino Clementino, paraibano e carpinteiro de 83 anos, morador há 63 em Campo Grande, se orgulha dos 13 casamentos que teve e de nunca ter batido em nenhuma de suas mulheres.

Como explicar para esse homem que nada justifica bater em uma mulher? Nem vice-versa. Essas pessoas, inclusive as que julgam cruelmente as mulheres vítimas de violência doméstica, têm uma visão distorcida da realidade. Quem não tem o coração e a mente doentes, como disse Clementino, jamais vai levantar a mão para alguém ou vai dizer que “mulher provoca”.

Quem é esse homem, por que ele pensa dessa maneira, o que e/ou quem o educou a pensar assim?  O que podemos fazer para que nossas filhas, futuramente, tenham capacidade de se proteger e se precaver contra essa cena de violência? O que podemos fazer para que nossos filhos, futuramente, não se tornem novos agressores ou reféns? Por que temos tanta dificuldade em pensar nossos problemas sociais como uma sociedade?

*Roberto é a junção de três homens entrevistados.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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