19/04/2024 - Edição 540

Camaleoa

A cidade está mudando (e eu também)

Publicado em 25/04/2014 12:00 - Cristina Livramento

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No feriado estive em São Paulo para rever os amigos e lamber a cidade. O que jamais poderia imaginar é que, desta vez, ao invés de chorar de emoção por estar ali, eu seria tomada por uma irritabilidade e sensação de não-pertencimento. O ser humano é expertise em desenvolver certezas absolutas sobre a própria vida (muito mais sobre a vida do outro, mas vamos nos ater a nós mesmos nesse caso), mas o universo sempre dá um jeito de fazer com que a gente reflita sobre nossos significados.

Durante os quatro dias em que fiquei na cidade, atormentada pelo excesso incontrolável de gente pelas ruas e pela sensação de vazio, pensei no quanto o homem precisa fazer inúmeras voltas para, definitivamente, encontrar seu próprio eixo. Como se tivéssemos que lutar contra dragões, demônios, provar o gosto de diferentes paraísos, alcançar a lua e, após isso tudo, voltar para dentro de si e se desprender de qualquer coisa que represente o significado de “ser feliz”.

Explico. É como olhar para uma casa bonita e pensar, nessa casa eu vou ser feliz. É quando você olha para um vestido, na vitrine, e pensa, se usar esse vestido, vou arrasar. No meu caso, era, “se eu morasse em São Paulo, seria uma pessoa muito mais feliz”.

Você experimenta – sensorialmente – alguma coisa e deposita um valor exorbitante naquilo, o significado de felicidade. Talvez não aconteça de maneira consciente, deve fazer parte do homem, projetar a felicidade no casamento, na casa própria, na tevê de 52”, nos filhos, no carro zero km, afim de preencher o vazio existencial. Lidar com esse vazio, no cotidiano, não é uma coisa fácil, talvez por isso a gente tenha se rendido de um jeito tão vulgar ao consumismo. É muito mais fácil amontoar coisas dentro do peito, do que curar uma ferida aberta, ou seja, tratar com afeto e dedicação esse vazio existencial.

Nos intervalos dessa luta interna, àqueles que se aventuram a olhar para dentro de si, acontece um processo de iluminação. Como se alguém segurasse uma lanterna e fizesse um sinal. Você pensa, “ah, eu não tenho do que reclamar, tenho uma vida boa, está indo tudo bem, realmente não preciso disso para ser feliz”.

Mas a gente vive um turbilhão de sensações o tempo todo – e nem nota – sendo obrigado a lidar com várias coisas acontecendo ao mesmo tempo e acaba atropelada pela rotina. E de novo estamos reclamando, pensando em como seria bom “se eu tivesse”, “se estivesse”, “se fizesse” e aquela luz fraca nem é mais lembrada.

O processo de mudança é lento, doloroso e inevitável. Enquanto a luz da lanterna volta a aparecer para a gente, a cidade muda. Vamos lentamente e, ao mesmo tempo, às vezes com mais ou menos resistência, nos transformando.

Assim, como minha rua, em Campo Grande, que já foi tão tranquila que podíamos esticar uma rede de vôlei e passar o dia inteiro jogando, hoje não posso pensar em colocar o pé no asfalto sem antes olhar atentamente para os dois lados.

Pinheiros, bairro onde morei em São Paulo, também se transformou. Toda vez que volto lá, me refiro a uma mudança recente, a partir de 2010, vejo uma mudança drástica e corrosiva. Desta vez, quase fiquei petrificada, com o coração sangrando (é, eu gosto de ser dramática) ao ver um banner escrito “Vende-se mercadinho”, na Rua Teodoro Sampaio, onde costumava comprar fruta e material de limpeza.

As pessoas mudam, a cidade muda e tudo faz parte de um processo independente do nosso querer. Não há controle algum sobre essa transformação.

Voltei de São Paulo para Campo Grande, após o feriado, satisfeita com minha própria história, como se mais um ciclo tivesse sido encerrado e a vida me apresentasse um recomeço. A oportunidade de seguir minha trajetória, sem olhar para o passado desejando estar em algum lugar entre o Baixo Augusta e a Vila Madalena. Como se finalmente estivesse conectada com o agora.

Nesse exercício de reflexão – toda essa verborragia é apenas uma reflexão – sobre o passado, revi Manhattan (1979), filme de Woody Allen. E ri sozinha ao ver o personagem Isaac Davis, caminhando pelas ruas de Nova York, questionar a demolição dos prédios ao invés de transformá-los em patrimônio histórico.

Diferente de Isaac, eu não me joguei na frente de nenhum prédio em demolição, nem na frente do mercadinho em Pinheiros, em forma de protesto, nem tive minha mão pisoteada por um policial, mas é fato que a cidade – ou seria mais correto dizer, o mundo – está mudando. E talvez o segredo para sobreviver a esse processo – externo e interno – de mudanças inevitáveis seja fazer com que ele seja leve, na medida do possível.

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Manhattan (1979), de Woody Allen

 

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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