20/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Nada de importante aconteceu hoje

Publicado em 02/06/2017 12:00 - Rodrigo Amém

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Os americanos comemoram sua independência no dia 4 de julho. Nesta data em 1776, as colônias norte-americanas formalizaram sua declaração de liberdade da coroa britânica. Como será que o rei da Inglaterra reagiu? Diz a lenda que, no diário de Rei George, o dia é marcado com apenas uma linha: "Nada de importante aconteceu hoje". Na verdade, o curador da Biblioteca Britânica Arnold Hunt detonou este mito. Não há qualquer evidência de que George mantivesse um diário pessoal. De qualquer maneira, a história se fixou na cultura popular como um bom exemplo de como, às vezes, é difícil para quem está no olho do furacão perceber o escopo da destruição ao seu redor.

O último dia 25 de maio vai ser reconhecido pelos historiadores do futuro como o fim da hegemonia americana da geopolítica global. Naquela quinta-feira, Donald Trump e Emmanuel Macron, novo presidente da França, trocaram um aperto de mão que mais parecia uma queda de braço. O jornalista Philip Rucker descreveu a cena: "Cada um apertou a mão do outro com intensidade, as suas articulações ficaram brancas, os maxilares estavam cerrados e as suas feições estavam contraídas." Se tratava de uma demonstração de força, não de um cumprimento.

Os dois dispostos a provar para o mundo quem era o macho alfa naquele encontro. Obviamente, trinta anos mais jovem e em superior condição física, Macron não arredou o pé (ou melhor, a mão). E fez questão de deixar clara sua postura.  "É preciso mostrar que não faremos pequenas concessões, mesmo que simbólicas", disse Macron ao Journal du Dimanche.

Trump é fruto de um mundo onde diplomacia e cooperação são sinais de fraqueza. Toda vez que as coisas não saem como ele quer, ele recolhe os brinquedos e vai para casa, convicto de que as crianças vão correr atrás dele, implorando seu retorno ao playground.

Para Trump, aquele momento foi último prego no caixão de sua relação com a Europa. Sua viagem tinha começado bem na Arábia Saudita, que compartilha com o presidente americano sua paixão por ouro, petróleo e supressão à imprensa. Mas entre os líderes democraticamente eleitos do velho continente, Trump encontrou desconforto e desdém. Ele era visivelmente o peixe fora d'água. Enquanto os demais participantes do encontro conversavam e riam, Trump permanecia a maior parte do tempo isolado.

Ao retornar a Washington, Donald estava decidido a não deixar barato. Uma semana depois de ter sua mãozinha esmagada pelo garotão francês, ele resolveu ir à forra. Retirou os EUA do Tratado de Paris. Em seu discurso, Trump não fez a menor questão de esconder a razão: "Não queremos mais que outros líderes e outros países riam de nós. E eles não vão mais rir", discursou, inacreditavelmente.

É importante que se diga que o Tratado de Paris não é tão injusto quanto os republicanos gostam de pintar. Claro que as metas são mais severas para os americanos, já que eles emitem três vezes mais carbono que o resto do planeta. Também é verdade que o acordo não é essa Coca-Cola toda que se diz por aí. Primeiro, porque não há sanções para quem não o cumpre. Segundo porque uma parte considerável dos Estados americanos já disse que pretende manter seu compromisso com as metas do Tratado, independente do que Donald diga ou faça.

Para Trump, sair do Tratado de Paris tem mais a ver com o nome do que com o conteúdo (aliás, como toda sua carreira empresarial). Na verdade, Donald queria demonstrar força com uma canetada, um movimento de mão. Ele queria uma revanche contra o francesinho. Fosse o "Tratado de Londres", é possível que os EUA ainda fizessem parte. "Eu fui eleito para representar os cidadãos de Pittsburgh, não Paris", disse o presidente norte-americano. Se não o veneram em Paris como em Pittsburgh, ele se retira de Paris. Da cidade e do tratado.

É óbvio que, diplomática e ecologicamente, a saída dos EUA terá consequências. Mas Trump não enxerga tão longe. Ele não tem ideia de que, por exemplo, sua decisão o coloca numa situação de isolamento (de novo). E por mais que seu eleitorado não entenda o que isso significa, isso é o começo do fim da influência política dos EUA no mundo.

A chanceler alemã Angela Merkel está animadíssima para assumir o cargo de líder do mundo livre. "Os tempos em que nós podíamos contar com os outros acabaram", sentenciou Merkel. "Nós estamos mais determinados que nunca, na Alemanha, na Europa e no mundo a juntar esforços", disse.

Trump é fruto de um mundo onde diplomacia e cooperação são sinais de fraqueza. Toda vez que as coisas não saem como ele quer, ele recolhe os brinquedos e vai para casa, convicto de que as crianças vão correr atrás dele, implorando seu retorno ao playground. Trump não percebe que a jogo agora é outro. Acredito que ele anotaria em seu diário: "Nada de importante aconteceu hoje". Vai ver esse é o verdadeiro significado de "Covfefe".

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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