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Publicado em 05/05/2017 12:00 -
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Franceses chegam às urnas neste domingo (7) como quem vai ao divã: em crise de identidade. Em tempos de globalização e migração, a escolha de seu próximo presidente está ligada ao significado de sua nacionalidade.
O candidato centrista Emmanuel Macron, 39, e a ultranacionalista Marine Le Pen, 48, têm visões opostas sobre o que é ser francês. Disputam, por exemplo, a posição do país no continente e se deveria seguir na União Europeia.
Macron quer que o francês tenha euros na carteira, mas Le Pen menciona a volta do franco. O país dele é multicultural e alinhado aos EUA, enquanto o dela acena à população nativa e à Rússia.
A identidade é uma definição difícil. "Ser francês é gostar de baguete", ironiza uma eleitora na praça da República, Paris.
Mas, dentro desse conceito amplo, ficam por resolver questões urgentes como o quão franceses são os migrantes e seus filhos, rejeitados por parte do país.
Uma pesquisa publicada na quinta (4) prevê a vitória de Macron com 61% dos votos contra os 39% de Le Pen, indicando a prevalência da visão mais inclusiva —a direitista fez campanha contra migrantes e muçulmanos.
A sondagem foi realizada pelo instituto francês Ifop-Fiducial com 1.500 pessoas de 1º a 4 de maio. A margem de erro é de 2,4 pontos percentuais em ambas as direções.
Santa Guerreira
A crise de identidade está evidente quando Macron e Le Pen tentam se apropriar politicamente da figura de Joana d'Arc, a santa guerreira queimada viva em 1431.
Ela é um dos símbolos da sigla nacionalista Frente Nacional, fundada por Jean-Marie Le Pen, pai da candidata.
"Joana d'Arc viveu em um período em que a França estava muito fraca", diz Jean-Réne Coueille, um líder da Frente Nacional na região de Loire, no centro do país. É um personagem essencial quando o país precisa de símbolos para suas reconquistas —seja territoriais ou de prerrogativas do governo. "É central á mentalidade francesa."
Mas Macron tem tentado reverter o cenário. Ao lançar sua candidatura, no início de 2016, ele discursou diante da estátua de Joana d'Arc, comparando suas trajetórias ao dizer que ambos tentaram romper o sistema.
Joana d'Arc participou da Guerra dos Cem Anos contra a Inglaterra e, dizendo ser instruída por visões, recuperou a cidade de Orléans.
Políticos se apropriam há séculos de sua imagem, afirma Olivier Bouzy, diretor do Centro Joana d'Arc em Orléans, ao sul de Paris.
Entre os séculos 16 e 18, explica, ela serviu como uma evidência de que Deus havia privilegiado o reino francês.
Após a derrota na guerra com a Prússia no século 19, ela passou a ser associada às províncias francesas perdidas —foi quando foi tomada por partidos nacionalistas.
Essa carga política foi eletrificada por Jean-Marie Le Pen ao fundar a Frente Nacional nos anos 1970, saudoso de um passado imperial.
"A história terá um papel importante nessas eleições", afirma Bouzy. "A identidade é essencial. Vamos escolher entre o passado e o futuro."
Argélia
Essa escolha poderá ser determinada por outro fato histórico: a Guerra da Argélia (1954-1962). Segundo Jean-Yves Camus, especialista no estudo da direita nacionalista, o conflito foi fundamental na construção da Frente Nacional de Marine Le Pen.
A Argélia foi por décadas um território francês. A violenta disputa que culminou na sua independência criou fissuras ainda hoje visíveis entre franceses cristãos e muçulmanos, e entre nativos franceses e imigrantes.
"Há um grande ressentimento em relação aos muçulmanos. Para parte da população, vendemos nossos valores como superiores aos deles, mas fomos rejeitados pela independência", diz.
Com o fim da guerra, em 1962, um milhão de colonos franceses —os chamados "pieds noires", pés negros— tiveram de deixar o norte da África em poucos dias e se instalar no sul da França.
Esse deslocamento ajuda a explicar a força da Frente Nacional nessa região, hoje um dos bastiões de Le Pen. Antigos colonos e seus descendentes, que ouviram histórias da guerra, ainda guardam rancor em relação aos migrantes africanos.
São histórias que voltam à tona quando a reportagem ouve eleitores franceses.
Safa Gurdan, 22, é filha de argelinos e votará contra Le Pen. "Meus pais tinham o direito de estar aqui. Somos franceses", diz. "Não quero impedir outros migrantes de virem à França."
"Se nascemos aqui, não importa. Somos franceses mesmo se não nos parecemos com a imagem tradicional", diz Lucille Cosgrave, 26, filha de irlandeses.
Mas, como outros entrevistados, ela titubeia ao definir o que é o tal "francês tradicional". E pondera: "Joana d'Arc é um símbolo francês porque lutou pela França inteira, e não só por um grupo".
Apoio jovem
Hoje com 23 anos, o jovem desempregado Brian Lemaire tinha 8 quando as notas de euro entraram em circulação na França. Ainda assim, ele diz sentir falta do franco, a moeda francesa anterior.
"Era muito melhor para as pessoas", explica ele enquanto espera Marine Le Pen chegar para o último comício de sua campanha à presidência da França, na quinta (4).
O local escolhido, Ennemain, é um diminuto vilarejo rural de 230 habitantes, boa parte deles idosos, no norte da França. A paisagem foi renovada pelo afluxo de eleitores jovens da região interessados em ouvir Le Pen.
Enquanto outros fenômenos nacionalistas e populistas mundiais, como Donald Trump nos EUA e o "brexit" no Reino Unido, mostraram mais força entre os mais velhos, Le Pen é sucesso entre os jovens franceses.
No primeiro turno, a ultradireitista liderou entre a faixa etária de até 34 anos, com 25,7%, segundo pesquisa Opinionway. Em seguida ficou o ultraesquerdista Jean-Luc Mélenchon, com 24,6%, e só então o centrista Emmanuel Macron, com 21,6%.
Resultado diferente do resultado global, com Macron (24%) em primeiro, seguido por Le Pen (21,3%).
Boa parte da explicação está na falta de empregos. Enquanto a taxa de desemprego da população geral francesa é de 10%, ela supera 24% entre jovens de até 24 anos.
Lotérico em uma cidade a 15 km de Ennemain, Emerik Armand, 21, diz ter vários amigos sem emprego.
Ele apoia a proposta de Marine Le Pen de decretar uma moratória na entrada de imigrantes legais no país, o que tem exasperado especialistas em direito. "É só por um tempo, até que todos os franceses tenham tempo de arranjar trabalho."
Para ele, que é filiado à Frente Nacional, partido da candidata, a imigração só funcionava quando havia pleno emprego no país.
Divisões de Base
De olho em seu futuro, a FN tem investido nos jovens, inclusive em sua cúpula.
O diretor da campanha dela, David Rachline, tem 29 anos. O vice-presidente da FN, Florian Philippot, tem 35. Deputada na Assembleia Nacional francesa, Marion Maréchal Le Pen, sobrinha de Marine, tem 27.
O partido também investe em seu grupo jovem, a Frente Nacional da Juventude.
David Berton, 25, foi formado politicamente pelo movimento. Atraído pelas ideias da FN aos 16, filiou-se em 2010 e em 2012 já tinha um cargo na campanha presidencial de Le Pen daquele ano. Diz ter se interessado por política por meio do estudo de história e literatura no ensino médio.
"Eu considero a língua francesa é uma das mais belas do mundo, ela tem um virtuosismo intelectual. Sou muito ligado à nossa civilização e à defesa dela. Na paisagem política atual, o único movimento que parece compartilhar disso é a Frente Nacional", afirma.
Berton chama atenção para outro fator que atrai os jovens para a sigla, além do desemprego: o medo de decair de classe social (déclassement, em francês), que aflige particularmente a juventude.
"De geração em geração víamos um aumento do nível de vida da população, o pai sabia que o filho iria viver melhor, era uma lógica econômica. A minha geração vai ser a que vai viver pior. O déclassement é uma violência social", lamenta Berton.
A mesma expressão usou Marine Le Pen em seu discurso, no qual atacou Macron, a elite, a imprensa, os imigrantes e os muçulmanos. Disse dar "eco à violência social que vai explodir no país".
Jovens, adultos e idosos aplaudiram, gritaram que a amavam e, ao fim, cantaram a Marselhesa.
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