29/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

A greve do drama e o drama da greve

Publicado em 04/05/2017 12:00 - Rodrigo Amém

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Precisamos falar sobre a manifestação que vai afetar todo mundo pelos próximos meses: A greve dos roteiristas dos EUA. A última vez que os autores dos filmes e seriados gringos resolveram cruzar os braços foi em 2007. Muitas séries de sucesso acabaram prejudicadas e, em alguns casos, canceladas. No desespero por colocar algo no ar, as redes americanas resolveram investir em programas sem roteiro: nasciam os reality shows que hoje empesteiam as telinhas do mundo.

Se você espera por algum seriado, filme ou game gringo ansiosamente, prepare-se: seu sonho geek vai demorar um pouco mais. E pode nem chegar.

O que querem os roteiristas? Bagunça? Feriado prolongado? Não, senhores. Eles querem um aumento na participação dos lucros. Desde o último acordo, o consumo do audiovisual mudou muito. Não havia Netflix, streaming e nem Youtube. E os autores ainda não recebem a mais por essas novas mídias. Ah, querem também plano de saúde melhorzinho.

Como eles conseguem tanto poder para peitar a segunda maior indústria norte-americana (a primeira, é claro, é a de armamentos)? Em uma palavra? Sindicato.

Tal lá como cá, sindicato é uma palavra feia. Já ouviu falar de Macartismo? Quando o governo americano começou a perseguir atores, diretores e roteiristas de Hollywood por seu histórico "comunista"? Muito dessa caça às bruxas foi motivada pela tentativa de desmantelar os sindicatos que "aterrorizavam" os donos de estúdios. Recomendo o ótimo filme "Trumbo" sobre o assunto.

Tal lá como cá, a influência dos sindicatos junto à opinião pública foi corroída pela corrupção, essa chaga das organizações formadas por seres humanos. Em Nova York, sindicatos de operários criaram famigeradas relações com a máfia, por exemplo. E a narrativa de "quadrilhas de preguiçosos chantageando o empresariado" pegou para todo mundo.

Hoje, sindicatos com a força do "Writers Guild" são raros no Tio Sam. Em geral, as relações entre patrões e empregados são bem – por assim dizer – liberais, sem muitas regras ou interferência do Estado.

num país como o Brasil, onde as relações trabalhistas são regidas por leis, qualquer processo de mudança tem que ser uma discussão entre todas as partes. Não dá para ser levado à toque de caixa por um governo provisório, correndo contra o tempo, contra a própria impopularidade e apoiado por um congresso mergulhado em denúncias de corrupção.

Lá, o funcionário negocia com o patrão. O nome disso é "entrevista de emprego". Funciona assim: o empregador oferece X. Se o candidato fala "não", o empregador chama o próximo da fila. O processo é repetido até a vaga ser preenchida e o valor do salário desabar. Em tempo, salário mínimo é um conceito ainda polêmico e contestado na terra do Tio Sam.

Em alguns Estados, discute-se se estabelecer um salário mínimo seria  "benéfico" para a economia ou se provocaria "demissões em massa". O resultado é que o americano classe baixa, quando consegue emprego, não é o bastante. Muitas mães e pais precisam trabalhar dois ou três turnos para alimentar suas famílias. É comum encontrar gente que teve que se mudar para o carro por não conseguir pagar o aluguel. E antes que a tradicional falta de empatia da direita brasileira se manifeste, é preciso esclarecer: em partes dos EUA o carro é um meio de subsistência, em muitos casos, indispensável.

No Brasil, estamos discutindo a flexibilização das leis trabalhistas. Uma discussão absolutamente legítima. O mundo mudou, as relações trabalhistas também. Foi essa mesma percepção que levou os roteiristas americanos a arrastar seus patrões de volta à mesa de negociação.

E num país como o Brasil, onde as relações trabalhistas são regidas por leis, qualquer processo de mudança tem que ser uma discussão entre todas as partes. Tem que ter a participação dos sindicatos, empresariado, sociedade e Estado. Sem dúvida, é trabalhoso e demorado. Não dá para ser levado à toque de caixa por um governo provisório, correndo contra o tempo, contra a própria impopularidade e apoiado por um congresso mergulhado em denúncias de corrupção.

Assim como a greve de Hollywood, uma reforma trabalhista é uma medida delicada, causada por uma mudança de cenários econômico e tecnológico e tem que ser administrada com calma e transparência. É preciso pensar na estrutura da mudança. No roteiro dessa transformação. E tem que ser um roteiro bem feito, de qualidade. Até porque, as trapalhadas e curtições dessa galera muito louca que apronta todas, é um filme que eu já vi e sei muito bem como acaba.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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