24/04/2024 - Edição 540

Especial

Nepotismo

Publicado em 30/03/2017 12:00 -

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Quando, no dia 1º de maio de 1500, Pero Vaz de Caminha redigiu suas impressões sobre a terra que posteriormente viria a ser chamada de Brasil, não imaginou que deixava para a posteridade o primeiro registro de uma prática que hoje se alastra como uma erva daninha pelo país: o nepotismo.

De acordo com a interpretação original, ao final da carta Caminha teria pedido ao rei um emprego ao seu genro. Por isso, a palavra pistolão, muito empregada no Brasil para referenciar um parente ou conhecido que obteve ganhos ou favorecimentos, teve origem na palavra epístola (carta), devido à carta do escrivão português ao seu rei, D. Manuel I.

Aliás, a história da dominação de famílias políticas em cargos públicos, entre executivo, legislativo e judiciário, está na raiz da construção do Brasil, desde a época colonial. Durante as Capitanias Hereditárias, sistema de administração territorial criado por D. João III, certos governantes tiveram seus sobrenomes prosseguindo na política brasileira por muitos anos. A distribuição de províncias a poucos grupos era prática muito comum. Somente a família Alencar, por exemplo, esteve à frente de três províncias, com Tristão Gonçalves no Ceará, sendo sucedido por José Martiniano e Tristão Araripe no Rio Grande do Sul e Pará. O domínio se estendeu até o período da ditadura militar, quando Humberto de Alencar Castello Branco assumiu a presidência do Brasil, após o golpe de estado em 1964.

A família que, durante a história do Brasil, se perpetuou no poder por mais tempo, passando por seis gerações, foi a Andrada. A partir de José Bonifácio, patriarca da independência, outros 22 Andradas figuraram no cenário político do país, com nomes atuantes até hoje. Como José Bonifácio Tamm, deputado federal de Minas Gerais, que mantém um mandato parlamentar há 56 anos ininterruptos, tornando-se em um dos parlamentares mais experimentados do mundo.

Em Mato Grosso do Sul, famílias também tem se perpetuado no poder, gerando espaço para a prática do nepotismo. Os Trad são o exemplo mais óbvio. Nelsinho Trad foi vereador, prefeito de Campo Grande por dois mandatos. Seu irmão, Fabio Trad, presidiu a seccional regional da OAB e foi deputado federal. Outro irmão, Marquinhos Trad, atual prefeito de Campo Grande, foi vereador e deputado estadual. Primos dos Trad, Paulo Siufi e Luiz Henrique Mandetta ocupam, respectivamente, vagas na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul e na câmara Federal. Sobrinho de Nelsinho, Fabio e Marquinhos, Otávio Trad é vereador na capital sul-mato-grossense.

Muitas leis e lacunas

No Brasil, já há dispositivos legais que objetivam proibir o nepotismo na administração pública. O primeiro é de Pernambuco, de 1º de outubro de 2007. É a  Lei complementar 097/2007, aprovada pela Assembleia Legislativa e sancionada pelo então governador Eduardo Campos. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva editou, em 4 de junho de 2010, o decreto federal nº 7.203, que dispõe sobre a vedação do nepotismo no âmbito da administração pública federal. Finalmente, há a 13ª Súmula Vinculante, do Supremo Tribunal Federal (STF), aprovada em 21 de agosto de 2008, que proíbe o nepotismo nos Três Poderes, no âmbito da União, dos estados e municípios.

No papel, o dispositivo tem de ser seguido por todos os órgãos públicos e proíbe a contratação de parentes de autoridades e de funcionários para cargos de confiança, de comissão e de função gratificada no serviço público. A súmula também veda o nepotismo cruzado, que ocorre quando dois agentes públicos empregam familiares um do outro como troca de favor. Ficam de fora do alcance da súmula os cargos de caráter político, exercido por agentes políticos.

Na prática, no entanto, nossos “nobres” – no Executivo, no Legislativo e até mesmo no Judiciário – têm sido criativos para driblar e até mesmo burlar o regulamento.

Além do nepotismo direto, aquele em que a autoridade nomeia seu próprio parente, alguns dirigentes brasileiros se especializaram no chamado nepotismo cruzado é aquele em que o agente público nomeia pessoa ligada a outro agente público, enquanto a segunda autoridade nomeia uma pessoa ligada por vínculos de parentescos ao primeiro agente, como troca de favores, também entendido como designações recíprocas. O Decreto nº 7.203, de 4 de junho de 2010 veda tanto um quanto outro.

“É um velho costume de usar a máquina pública para fins particulares. É um atentado contra qualquer vida pública decente e não há nenhuma justificativa”, afirmou o professor de Filosofia Política da Unicamp Roberto Romano, que recorda os critérios da moralidade e da competência previstos na Constituição para o preenchimento de cargos públicos.

Súmula do STF provoca diferentes interpretações

Apesar da Súmula Vinculante de 2008, em decisões judiciais posteriores, o STF flexibilizou a iniciativa para cargos considerados de “natureza política”, entre eles de secretários municipais. Desde então, a incerteza sobre o alcance da medida tem gerado discussões nos meios jurídicos. Na avaliação de juristas e especialistas entrevistados pela Semana On, o entendimento de que a restrição não se aplica aos cargos políticos não está consolidado.

“Se essa jurisprudência estivesse consolidada, o STF teria feito uma espécie de retificação pontual da Súmula Vinculante Nº 13, o que ainda não foi feito”, avaliou o procurador Gustavo Binenbojm, professor de Direito da UERJ.

Para o professor Gustavo Alexandre Magalhães, doutor em Direito Administrativo pela UFMG, o texto da súmula deixou brechas, o que possibilita aos prefeitos interpretarem de acordo com suas conveniências. “Alguns pontos precisam ser esclarecidos. Pelo texto atual, o prefeito pode preencher seu primeiro escalão só com parentes, caso assim queira”, afirmou.

Mas, por que foi criado o Decreto nº 7.203, de 4 de junho de 2010 se já havia a Súmula Vinculante nº 13 que trata do mesmo assunto? As regras sobre a vedação de nepotismo até a data desse Decreto estavam baseadas nos princípios da moralidade e impessoalidade dos atos da Administração Pública, na vedação de subordinação direta da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e na redação aberta da Súmula Vinculante nº 13, do STF.

A Súmula Vinculante nº 13 abarca todos os órgãos e entidades que compõem a Administração Pública (direta e indireta) do país, ou seja, se aplica às esferas federal, estadual e municipal, e a todos os poderes da União, incluindo todos os órgãos e entidades que compõem o serviço público nacional.

O propósito do Decreto nº 7.203/2010 adveio da necessidade de regras mais detalhadas que os princípios da Constituição, mais amplas que a regra da Lei nº 8.112, de 1990, e mais minuciosas que a da referida Súmula Vinculante. Assim, o Decreto nº 7.203, de 4 de junho de 2010, trata da vedação do nepotismo no âmbito da administração pública federal, ou seja, somente dos órgãos e entidades do Poder Executivo Federal e de forma mais detalhada que a referida Súmula Vinculante.

Desde a publicação da súmula, as autoridades investidas do poder de nomeação questionam: afinal, quem eu não posso nomear para exercer cargo de comissão, confiança ou de função gratificada? A interpretação  literal revela que não poderão ser nomeados: a esposa(o)/companheira(o), filho(a), pai, mãe, avô(ó), neto(a), bisavô(ó), bisneto(a), irmão(ã), tio(a), sobrinho(a), sogro(a) e seus respectivos pais e avós, enteados e seus respectivos netos e bisnetos, cunhado(a), genro, nora, cônjuge do tio(a), irmã(ã) e sobrinho(a), da autoridade nomeante ou do servidor, da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento.

Nesse sentido, tendo a Súmula fixado os parentes determinantes para caracterização do nepotismo, será inconstitucional a nomeação de seus familiares, em razão do parentesco direto entre a autoridade nomeante e o nomeado, ou entre este e o servidor com aquelas funções.

Entretanto, não haverá nepotismo na nomeação de secretários municipais, em razão destes ocuparem cargos políticos, excluídos da vedação contida na Súmula Vinculante n° 13, por se tratarem de componentes do primeiro escalão, ligados de forma indissociável à orientação e à função política do governo.

Em cidades onde o descumprimento da lei tem sua devida atenção e fiscalização das Câmaras Municipais, gestores públicos são alvos de ações de improbidade administrativa, por incidência no art. 11, da Lei n° 8.429/92, sujeitando-o às sanções do inc. II, do art. 12, da referida lei. Mas, em muitos municípios onde vereadores se fazem de “cegos, surdos e mudos” para não verem tal prática, acontece o que a população chama de “farra com cargos públicos”.

“O Legislativo deixa de legislar sobre uma questão polêmica. Nesse vácuo, o Judiciário vai e preenche os significados do significante nepotismo não exatamente da melhor maneira. O resultado disso? O nepotismo continua presente na realidade política brasileira, talvez até pior do que antes, posto que agora legitimado por uma interpretação sem base jurídico-legal e pautada em critérios políticos”, critica a promotora de Justiça paranaense Márcia Berclaz.

Por uma súmula que tem um texto e um entendimento para além dele, o qual não tem o menor respaldo na dogmática do direito administrativo. De quebra, criou-se uma outra categoria de cargos para além da clássica divisão de efetivos e comissionados: os cargos ditos políticos. “E de política pequena a Administração Pública infelizmente já está cheia”, lembra Berclaz.

Com o beneplácito do Supremo, assim caminham as Secretarias Municipais, Estaduais e os Ministérios: loteados para partidos e em troca de favores, longe dos critérios de mérito, competência e profissionalismo exigidos dos servidores públicos por excelência, aqueles que prestam concurso público para preenchimento dos cargos, conforme prescreve o artigo 37, II, da Constituição.

Terceirização e nepotismo

Na noite do último dia 22, como prometido pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a terceirização irrestrita do trabalho foi aprovada. O PL 4302, de 1998, passou com 231 votos favoráveis, 188 contrários e oito abstenções, e agora depende apenas da sanção de Michel Temer.

Germano Siqueira, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), acredita que os deputados aprovaram "o pior projeto possível", e faz um alerta: ele "pode servir de instrumento para o nepotismo e o clientelismo" no setor público.

“Esse projeto diminuirá muito a quantidade de concursos públicos. Agora, nada impede que o prefeito, governador, ou mesmo no âmbito da União, destine suas atividades a empresas prestadoras de serviço terceirizado, como na Caixa Econômica, no Banco do Brasil, e na Petrobras. Isso por si só já é um absurdo, mas há outro maior: pode servir de instrumento para o nepotismo e o clientelismo. O governador, o prefeito, o deputado, o vereador, podem, quando há uma contratação intermediária desse tipo, colocar como terceirizados afilhados políticos e parentes”, afirma Siqueira.

Essa também é a avaliação do procurador-geral do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ronaldo Fleury. “Vai permitir a volta do nepotismo, do apadrinhamento político, a corrupção por meio de contratos de terceirização. É o que fatalmente ocorrerá. Porque o político, o procurador ou quem quer que seja que queira contratar um filho precisaria apenas criar uma empresa terceirizada, o órgão que ele trabalha será o contratante. Então é o fim de todo trabalho de combate ao nepotismo”, afirmou.

O presidente da Comissão dos Advogados Trabalhistas da Ordem dos Advogados do Brasil em Mato Grosso do Sul (OAB/MS), Rogério Pereira Spotti, vai na mesma linha. “Da forma que foi aprovação, a Lei poderá permitir a contratação indiscriminada de terceirizados, aí incluindo parentes, afins, companheiros e esposas, burlando a obrigação da Administração Pública na realização de concursos públicos para seus quadros de pessoal. Porém, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Tribunal Superior do Trabalho (TST) já manifestaram entendimento contrário à terceirização indiscriminada no serviço público, assim como o Tribunal da Contas da União (TCU)”.

Em Mato Grosso do Sul

Mato Grosso do Sul é palco constante para escândalos de nepotismo. O mais recente foi protagonizado por dirigentes da Omep e da Seleta, em que o Ministério Público Estadual (MPE) identificou a contratação de parentes de diretores – de forma direta e cruzada. As irregularidades somaram pelo menos, R$ 6 milhões mensais aos cofres municipais, incluindo, além do nepotismo, funcionários fantasmas, salários exorbitantes e diferentes para uma mesma função.

No Tribunal de Contas do Estado (TCE), uma Ação Popular apontou cruzamento de favores entre parentes de membros da Corte e dirigentes do governo do Estado. Parentes de conselheiros foram empregados na Sanesul, na Casa Civil do Governo do Estado e na Assembleia Legislativa. Em troca, o Tribunal acomodou indicados do governo em suas dependências.

No ano passado, o promotor de Justiça Marcos Alex Vera, expediu recomendações para a Prefeitura de Campo Grande (então sob a batuta de Alcides Bernal-PP) e ao Detran/MS, visando ao combate à prática de nepotismo identificada em ambos os locais.

Até na Assembleia Legislativa a prática viceja, especialmente na forma de fantasmas. O MPE promete finalizar as investigações no Legislativo estadual até março. Na Casa, uma CPI sobre o caso nem chegou a ser instalada, foi arquivada em dezembro.

O caso de Detran é o que gerou consequências mais recentes. As denúncias desestabilizam a atual gestão e resultou na exoneração de dois servidores, reforçando uma possível substituição do atual diretor-presidente, Gerson Claro, que à frente do Departamento desde janeiro de 2015. De lá para cá, o diretor-presidente enfrenta constantes denúncias de nepotismo. Uma delas, manifestada na ouvidoria do MPE, motivou recomendação da 29ª Promotoria de Justiça de Campo Grande para exonerar três servidores do órgão.

Em Dourados, o Ministério Público recomendou exoneração de assessores diretos da prefeita Délia Razuk (PR). Em fevereiro, o MP pediu a demissão do ex-vereador Albino Mendes do cargo de assessor especial do gabinete ou a exoneração do filho dele, o médico Éverton Basílio Pacco Mendes, do cargo da função de diretor técnico da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do município. No entendimento do promotor Ricardo Rottuno, a permanência de pai e filho nos cargos configurava nepotismo por “violar os princípios da administração, notadamente da moralidade, legalidade e impessoalidade”, além de constituir ato de improbidade administrativa. Albino foi demitido uma semana depois.

No início de março, o prefeito de Taquarussu, Roberto Tavares Almeida (PSDB), recebeu recomendação do Ministério Público para exonerar sua esposa, Ana Maria Dias Almeida, do cargo de secretária Municipal de Assistência Social. Segundo o MPE, Roberto Nem, como é chamado o prefeito, teria nomeado a primeira-dama para o cargo de secretária "em total desrespeito a Constituição Federal".

Na Câmara Municipal de Campo Grande, a vereadora Dharleng Campos (PP) também protagonizou um caso similar. Ela nomeou o namorado, o advogado Anderson Guimarães, que já havia atuado a seu lado na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e da Ciência e Tecnologia (Sedesc) pasta em que a vereadora foi titular na gestão do ex-prefeito Alcides Bernal (PP). Após pressão nas redes sociais e na imprensa, a vereadora exonerou o namorado.

Até o Tribunal de Justiça do Estado se viu envolto em caso do gênero. No ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) identificou nepotismo no TTJMS e determinou que a Corte exonerasse um dos servidores que ocupam cargo em comissão no tribunal. O procedimento foi iniciativa do próprio tribunal, que submeteu ao Conselho uma consulta para que fossem analisadas três situações de casais que ocupam cargos em comissão na Corte. Das três situações, duas não foram caracterizadas como nepotismo pelo CNJ. Em uma delas um dos cônjuges foi exonerado do cargo em comissão.

Estes são apenas alguns casos. A ponta de um iceberg que flutua, inchado, pelas águas turvas da coisa pública em Mato Grosso do Sul. Até quando?


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