25/04/2024 - Edição 540

Especial

Mulheres na arena virtual

Publicado em 08/03/2017 12:00 -

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Vai ter shortinho sim, e se não gostar, a gente vai de calcinha mesmo.” O comentário foi feito no ano passado pela youtuber Jessica Tauane durante uma entrevista ao portal G1 sobre a campanha #vaitershortinhosim (criada por um grupo de alunas de um colégio de Porto Alegre que defendiam que a peça fosse permitida nas dependências da escola).

A matéria, que além da campanha das estudantes gaúchas falava sobre outras hashtags de empoderamento feminino, foi publicada em 8 de março. A ideia era celebrar o Dia Internacional da Mulher, mas Jessica não teve muitos motivos para comemorar.

Na caixa de comentários do portal, um homem identificado como Renildo por algum motivo achou que seria interessante dar sua opinião sobre a aparência da youtuber: “Poxa, isso é covardia, sou professor, ganho pouco e tenho que aturar aluno mal-educado. Agora vou ter que ficar olhando para orca de shortinho”. Uma segunda pessoa, então, viu o comentário e fez uma montagem dele sobre o rosto de Jessica. A imagem viralizou e logo estava sendo compartilhada por milhares de pessoas. Para piorar, algumas delas encontraram o perfil da moça no Facebook e começaram a denunciar seus posts para que ela fosse suspensa — o que, de fato, aconteceu.

“Eu já sabia que corria esse risco”, ela diz. “Quando uma mulher declaradamente feminista fala sobre feminismo em um veículo com grande alcance, quase sempre há algum tipo de ataque. Se essa mulher é gorda, sapatão e não corresponde aos ideais de beleza, pior ainda!” Jessica resolveu responder: escreveu uma carta aberta para o tal Renildo. O texto recebeu mais de 10 mil curtidas e foi compartilhado por quase 3 mil pessoas, mas nunca alcançou o destinatário original. “Ele não disse nada, então acho que não deve ter visto”, conta.

O caso ilustra bem um comportamento comum na internet: quando discordam de algo que foi dito por alguém, os usuários atacam quem disse, e não o que foi dito. E depois fecham a porta para qualquer forma de diálogo. Apertam a campainha e saem correndo.

O movimento feminista, do qual Jessica faz parte, é talvez o que tenha melhor se apropriado da internet como espaço de discussão e propagação de ideias. Mas não é o único: ativistas negros, gays e trans, além dos militantes de direita e de esquerda (os famosos coxinhas e petralhas), também estão cada vez mais migrando suas atividades para as redes sociais.

O destaque do movimento de mulheres não surpreende. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), elas correspondiam a 52,2% do total de internautas no país em 2014. Os jovens são outro público expressivo: mais da metade dos usuários (51,5%) tinha entre 10 e 29 anos.

Uma parte considerável desses novos ativistas já compareceu a protestos e encontros presenciais, mas há muitos que se manifestam exclusivamente na internet sob a forma de textos, hashtags e vídeos. E o volume de informação produzido por eles sinaliza a centralidade que a política assumiu no dia a dia dos brasileiros.

Não é palavrão

Em 2011, a jovem Aline Ramos publicou em seu perfil no Facebook um texto em que se declarava feminista e defendia que o rótulo “não era um palavrão”. Na universidade, o assunto simplesmente não era debatido. Entre as principais referências da estudante estavam o blog Escreva, Lola, Escreva, da professora Lola Aronovich, e algumas páginas feministas no Twitter. “Eu gosto de resgatar o histórico do Facebook porque a postagem teve umas duas curtidas, quase zero”, ri Aline.

Criada em um ambiente religioso e com a autoestima afetada por um relacionamento abusivo, a jovem via no feminismo um meio para se fortalecer e não pretendia se envolver em grupos ou introduzir o movimento a outras pessoas. O que não imaginava é que hoje, aos 25 anos, já teria se inteirado sobre a questão racial e criado o blog Que nega é essa?, participado de dois coletivos e dado uma série de entrevistas como a que concedeu a esta reportagem e à iniciativa Precisamos falar com os homens? Uma jornada pela igualdade de gênero, da campanha #ElesPorElas (#HeForShe), da ONU Mulheres. Desnecessário dizer que suas intervenções no Facebook recebem bem mais curtidas do que há cinco anos.

A história de Aline ilustra o percurso que muitas pessoas vêm trilhando em direção ao ativismo político e social na internet. Encontrando conteúdos sobre temas diretamente relacionados ao seu cotidiano, elas passam a pesquisá-los e, eventualmente, veiculam as próprias ideias — podendo também virar formadoras de opinião, envolver-se em ações fora da rede, alcançar outros interessados e iniciar novos ciclos.

A dimensão desse fenômeno no Brasil se visibilizou em 2013, quando as manifestações de junho deslocaram milhões de pessoas para as ruas e embaralharam os limites entre o online e o offline. Em 2015, foi a vez do feminismo tomar a frente do debate político na “Primavera das Mulheres”, com as campanhas #primeiroassédio e #meuamigosecreto e atos públicos contra o Projeto de Lei nº 5.069/13, do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que visa dificultar o acesso à pílula do dia seguinte.

A política é pop

De certa forma, “virtualizar” o debate político foi um movimento decisivo para sua popularização. Quando pertencer a uma militância e frequentar seus espaços físicos deixa de ser pré-requisito para apoiar uma causa, mais gente se sente habilitada a abraçá-la. A ideia de que pessoas comuns (em oposição aos “ativistas profissionais”) são igualmente responsáveis pela ação política parece realizar uma velha promessa democrática e ganha força na medida em que outras figuras improváveis se posicionam publicamente.

Desde 2014, elas se multiplicaram na mídia: a cantora Beyoncé se manifestou feminista, a atriz Emma Watson representou a campanha #HeForShe e, no Brasil, a jornalista Julia Tolezano, a Jout Jout Prazer, pautou relacionamentos abusivos e sexualização infantil em seu canal no YouTube, sendo rapidamente associada ao feminismo. A cantora Clarice Falcão também lançou, no final de 2015, o clipe de Survivor, regravação do hit do grupo Destiny’s Child que celebra o empoderamento feminino.

Mas se por um lado a “adesão” dessas personalidades contribui para chamar atenção para os movimentos sociais, por outro uma parte dos ativistas recebe os gestos de forma crítica. As motivações das celebridades (e mesmo de quem não é famoso) são discutidas e, frequentemente, lacunas e contradições nas suas abordagens são apontadas.

O clipe de Survivor, por exemplo, foi problematizado pelas feministas negras: não estaria Clarice, uma mulher branca, capitalizando sobre a obra de mulheres negras? Caberia a ela protagonizar o debate da sobrevivência no país que, segundo o Mapa da Violência 2015, registrou aumento de 54% nos feminicídios de mulheres negras (em paralelo à queda de quase 10% nos feminicídios de mulheres brancas) entre 2003 e 2013?
Como costuma acontecer, esse debate não foi pacífico. Enquanto algumas ativistas negras se disseram decepcionadas com o movimento feminista, várias feministas brancas pareciam alheias à origem das críticas — e outras, ainda, se fizeram de Glória Pires no Oscar e disseram “não ser capazes de opinar”.

A lógica da “Treta”

Confusões semelhantes permeiam a discussão de tópicos tão diversos quanto apropriação cultural (“moda de ‘inspiração étnica’ é errado?”), o trabalho das empregadas domésticas, a marginalização de lésbicas e bissexuais no movimento LGBT e a inclusão de homens e pessoas transexuais no feminismo.

À primeira vista, a maioria desses conflitos não são evidentes — especialmente para quem nunca precisou refletir sobre eles e está “chegando agora” no ativismo. Entre os que sofrem o preconceito diariamente, porém, muitos já não têm paciência de retornar às mesmas questões, encontrar as mesmas resistências e reprisar as mesmas brigas, sobretudo com quem está no mesmo barco.

“O que normalmente dificulta a comunicação é a falta de maturidade para lidar com divergências. Várias vezes, espera-se um discurso único e ataca-se quem não concorda”, explica Djamila Ribeiro, feminista negra e mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Resulta disso que as tentativas de diversificar os movimentos tendem a se perder em conversas improdutivas, que rapidamente escalam para a troca de farpas e “rachas” nos grupos.

A lógica da “treta” se reproduz no debate de quase todas as pautas políticas. Durante as eleições presidenciais de 2014, o confronto entre os partidários de cada candidato no segundo turno acirrou a disputa na internet e fora dela. No meio artístico, não faltam exemplos de quem ainda hesita em comentar assuntos complexos: a própria Jout Jout — hoje embaixadora do Brasil em uma iniciativa do YouTube para empoderar criadoras na plataforma — manteve distância do título “feminista” no início.

Diga-me com quem andas

Existe ainda outro fator que explica a dificuldade que muita gente tem de se associar aos movimentos sociais. O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão, em 1888. “Isso significa que, enquanto nação, temos mais tempo de escravidão do que de liberdade”, lembra Djamila Ribeiro.
A estrutura das sociedades escravocratas é marcada pela hierarquia e pela desigualdade; nosso legado, portanto, é um país profundamente ancorado em privilégios sociais e cujos cidadãos menosprezam as populações consideradas inferiores.

A partir dos anos 1970, os movimentos sociais dispostos a corrigir dívidas históricas — como o feminismo, o movimento negro e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) — se reorganizaram com a distensão do regime militar.

O processo de redemocratização favoreceu as ações da sociedade civil e o movimento social como um todo se fortaleceu com a criação e a ascensão do Partido dos Trabalhadores (PT), fundado em 1980. “Os movimentos sociais se agruparam de alguma maneira sob o guarda-chuva do PT, que encaminhou muitas dessas demandas de uma maneira ou de outra”, diz o historiador e antropólogo René Marc da Costa Silva. “Mas não sem resistência: no caso das mulheres e da questão racial, por exemplo, a resistência foi muito grande dentro do próprio partido. Então não foi uma coisa pacífica, mas, de qualquer forma, o PT foi o canal que encaminhou muitas dessas demandas.”

Mais tarde, conforme assumiu cargos legislativos e, em especial, a Presidência da República, o partido acabou deslocando a política das ruas para o âmbito do Estado. O efeito colateral dessa mudança foi o esvaziamento da esfera pública como lugar de debate.

“É como se os movimentos sociais tivessem concluído que já não precisavam lutar com tanta força pelo fato de poderem participar diretamente do poder institucionalizado”, resume Heloisa Dias Bezerra, cientista política e professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

A atividade dos movimentos sociais costuma estar ligada à conjuntura histórica. Atualmente, o cenário é de crise econômica, e a mesma classe média que apoiou o PT durante a abertura política se voltou contra ele ao ver seus padrões de consumo ameaçados pela recessão. Somando todos esses fatores tem-se uma das razões que explicam o fato de tantos movimentos sociais estarem sendo encarados com desconfiança. “Esses movimentos que estão dentro do Estado, que participaram de toda essa arrumação, têm uma dificuldade muito grande de se apresentar em público com autonomia e independência do Estado de modo a não serem confundidos com ele”, diz Silva.

O mundo está chato?

Há pouco tempo, a estudante Sofia Fávero teve sua identidade questionada aos risos por um homem enquanto atravessava a rua. Sofia é a Travesti Reflexiva, que, no Facebook, compartilha relatos sobre a vivência trans para mostrar que gênero e sexualidade são temas que tocam a todos. Diante do desconhecido, ela não se abateu: respondeu que era, sim, travesti. “A partir do momento que eu decidi o lugar que o termo ‘travesti’ ocuparia, sem aquela herança ofensiva, o constrangimento passou a ser do outro, e não meu”, explica.

Desde a segunda metade do século 20, as ciências sociais reconhecem como “diferentes” os integrantes dos grupos de minoria — nome que expressa o acesso reduzido desses sujeitos a direitos humanos fundamentais. Mulheres, todas as pessoas do espectro LGBT, negros e indígenas são algumas das categorias sociais que são historicamente discriminadas.

Organizações como o feminismo e o movimento negro resgataram a importância das experiências pessoais para o ativismo. Em parte, isso é o que leva tantas pessoas que “despertam” para o machismo, o racismo e a homo-lesbo-transfobia a deixar de rir de algumas piadas — o que está longe de ser uma coisa ruim. “Estar consciente daquilo que nos atravessa e, por isso, deixar a vida ‘mais chata’ nos possibilita alcançar um crescimento pessoal que só pode ser encarado como positivo”, diz Sofia.

A maioria dos problemas sociais combatidos hoje, como o machismo e o racismo, não são fenômenos pontuais, e sim a própria base do sistema social e cultural brasileiro, construído durante os últimos 500 anos. No entanto, devido à nossa educação precária, a desigualdade normalmente acaba sendo entendida como disputa entre indivíduos. Daí a pensar que o problema do outro “não é problema meu” e que o avanço das minorias implica o retrocesso geral, é um pulo — e feministas, negros e pessoas do círculo LGBT se tornam, mais uma vez, alvos privilegiados de intolerância.

Quem fala o que quer ouve… o que quer?

Desde a infância a jovem Babi Souza, criadora do Vamos Juntas?, reparava nas diferenças entre a vida dos homens e a das mulheres de sua família. “Apesar disso, não me considerava feminista pelo simples fato de que eu não sabia o que era o feminismo”, relata. O desconhecimento não impediu que ela propusesse uma solução a um problema do cotidiano feminino: a insegurança nas ruas. Lançado em julho de 2015, o Vamos Juntas? incentiva a união entre mulheres para intimidar possíveis agressores e desconstruir a ideia de que elas não podem confiar umas nas outras.

A página do movimento no Facebook soma mais de 450 mil seguidores. “Entender que as pessoas pensam como pensam por conta de discursos que ouviram a vida toda, e que todo mundo tem motivo para ser como é, é algo do qual não se tem como fugir quando se lida com tanta gente”, explica a jornalista. Babi logo compreendeu que suas posições nunca vão agradar a todos, e procura permanecer fiel ao que acredita. “Cada um luta da forma que acha certo e, se todas lutarmos, já estamos no lucro”, afirma.

O novo ambiente do ativismo de fato oferece mais espaço e ferramentas para que os usuários se apropriem de sua voz e das causas que os mobilizam. Desde o boom dos blogs até o surgimento das redes sociais, a internet se popularizou como veículo pelos múltiplos recursos de comunicação que reúne em cada plataforma. Mas, para a filósofa Marcia Tiburi, autora do livro Como Conversar com um Fascista, as transformações mais recentes contribuíram, ironicamente, para o empobrecimento da nossa relação com a linguagem e o retrocesso no pensamento e na interpretação. “Nós não estamos envolvidos com uma fala que se faça compreender. E, sobretudo, uma qualidade perturbadora da nossa cultura atual é a impaciência e indisponibilidade para a escuta”, destaca.

Não é raro ver internautas comentando textos que não leram ou aos quais não dedicaram muita atenção. Aparentemente, temos mais oportunidade, mas menos disposição para interagir uns com os outros: exaustos pelo intenso fluxo de dados, fugimos do diálogo.

O problema não se limita ao ativismo nem à internet, marcando todas as formas contemporâneas de relacionamento.

“A impressão é de que se tornar a sua própria marca virou uma coisa tão importante que as pessoas esquecem do sentido número 1 da comunicação, que é relacional”, diz Joanna Burigo, mestre em Gênero, Mídia e Cultura pela London School of Economics e fundadora da Casa da Mãe Joanna, projeto que visa pluralizar o discurso feminista. O interesse genuíno no que o outro tem a dizer é fundamental para que pontos comuns possam surgir de posições distintas — e para que nossos argumentos sejam revistos e ajustados quando necessário.

Joanna acrescenta que a falta de diálogo e a desinformação andam de mãos dadas. A iniciativa da Casa da Mãe Joanna surge como um esforço de “alfabetização midiática” e elaboração do pensamento feminista. “Existe uma diferença muito grande entre ter a possibilidade de expressar uma opinião e articular um raciocínio de fato”, explica a comunicadora.

Às vezes, essa diferença está nos minutos a mais de reflexão antes de comentar ou compartilhar uma postagem. Embora permitam reações rápidas e expressivas diante dos acontecimentos, as redes sociais também parecem precipitar respostas e dificultar o processamento das interações, tornando as pessoas mais corajosas e menos engajadas.

“Se a comunicação virtual dificulta a experiência pessoal, ela também tende a facilitar a idealização, isto é, o preconceito em relação aos objetos”, explica o psicólogo José Leon Crochík. Preconceito, nesse caso, não necessariamente significa uma concepção negativa das pessoas, mas uma noção superficial ou distorcida de quem elas são.

As pessoas deixam de ser pessoas e se tornam apenas fotografias ou textões. E, sendo as redes sociais ambientes onde a vida íntima é tão exposta quanto nossas posições políticas, é comum que os ativistas formadores de opinião se tornem quase ídolos pop — e que sua conduta seja tão avaliada quanto a de uma celebridade. A disputa por influência também favorece o surgimento de uma espécie de rivalidade velada entre os ativistas. Num universo de pessoas amplamente silenciadas lutando para serem ouvidas, ter a opinião mais contundente, o texto mais compartilhado e o maior prestígio offline torna-se, por vezes, mais importante do que fazer avançar o debate.

As dores do crescimento

Estamos produzindo mais conteúdo do que somos capazes de processar e ainda temos muita dificuldade de pausar o falatório e apreciar o que já foi publicado por terceiros. É razoável se preocupar com o rumo que o ativismo vem tomando, então? Será que o uso de turbantes por pessoas brancas e o papel dos homens na luta feminista serão tratados com tranquilidade algum dia?

Provavelmente, sim, mas também para isso é preciso ter paciência. Considerando a herança política brasileira — que, além do passado escravocrata, inclui a Ditadura Militar —, chega a ser surpreendente a rapidez e a força com as quais a sociedade está se apropriando de sua função cidadã. “Nós temos uma democracia bastante deformada pelo Estado autoritário que foi implantado no Brasil”, observa Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, membro da Comissão Municipal da Memória e da Verdade da Prefeitura de São Paulo (SP). Hoje com 71 anos, Amelinha participou da luta armada contra o regime militar e foi uma das pioneiras do movimento feminista no país.

A atuação repressiva do Estado ao longo da trajetória dos movimentos sociais fez com que o Brasil produzisse poucas referências como Amelinha — e mesmo as mais famosas não são conhecidas pela maioria da população. Isso explica o porquê de tantos debates e mobilizações progredirem devagar: a impressão é de que os ativistas precisam começar do zero e ninguém parece ter ideia de onde partir. “Nós já estamos em uma situação vulnerável e nos fragilizamos ainda mais para ver quem tem mais direito à fala, quem está mais por baixo… É muito fácil se perder nesses caminhos e não ver a política em um sentido mais amplo”, diz a blogueira Aline Ramos. Conhecer as experiências anteriores é importante também para que os próprios movimentos se fortaleçam. Como a livre manifestação política é relativamente estranha aos brasileiros, hoje é mais fácil se organizar em torno de questões pontuais — um projeto de lei, um representante controverso — do que em torno de um projeto político sólido.

Batalha dos textões

Ainda que atualmente a prática  em voga seja a de travar qualquer luta política a partir de identidades (“feminista”, “negro”, “homossexual”), é fundamental enfatizar as convergências entre elas, sob o risco de os movimentos sociais se reduzirem aos próprios nichos. “O problema é que, em determinado momento, a esquerda não conseguiu mais articular todas essas lutas específicas em um processo de transformação social mais amplo”, afirma o historiador e antropólogo René Marc da Costa Silva.

Hoje, não apenas a noção de identidade é confundida com a de individualidade — algo evidente na “batalha dos textões” — como os movimentos em geral comunicam-se com dificuldade entre si e com quem está “lá fora”. A pressão que os ativistas encaram para se adequar aos seus grupos, encarnando o militante ideal, também acaba atrapalhando a renovação dos movimentos.

De qualquer forma, as disputas internas fazem parte das organizações políticas e, agora, não deixam de sinalizar o despertar das gerações mais jovens para o debate e o uso cidadão da internet. Por tentativa e erro, estamos aprendendo a nos organizar, e algumas conquistas, como o aumento da transparência e a fiscalização de ações governamentais, já foram alcançadas. “São vínculos efêmeros (entre os ativistas), mas, ao mesmo tempo, eles acumulam para a luta política. Isso fica na memória das pessoas que participaram e se torna exemplo de uma mobilização possível”, diz a professora Maíra Kubík Mano, do Bacharelado em Gênero e Diversidade da Universidade Federal da Bahia.

A fase de decadência vivida pela política institucional brasileira favorece a criatividade dos ativistas e dos movimentos civis. Prova disso é o encerramento da carta aberta que a youtuber feminista Jessica Tauane escreveu para responder ao ataque do professor Renildo: “No fim, a graça ainda prevalece aqui: a comparação com orcas foi ótima porque a orca é conhecida como ‘baleia assassina’, mas, na verdade, é um tipo de golfinho. E assim sou eu: super dócil, mas não mexe comigo, que eu não ando só”.


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