16/04/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Judiciário deveria censurar publicação sob o argumento de violação da privacidade?

Publicado em 23/02/2017 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

A ordem judicial que impediu a Folha e o "O Globo" de publicarem matéria envolvendo a tentativa de extorsão contra a primeira-dama, Marcela Temer, chama a atenção para um fenômeno que aos poucos se enraizou no Brasil: a censura prévia por ordem judicial.

Há um grande número de juízes no país ordenando não só a remoção de reportagens da internet mas também impedindo jornais e outros veículos de publicarem seus textos, de forma preventiva.

Recorrem à Justiça com esse objetivo sobretudo os políticos, que tentam se resguardar da opinião pública. Ordenam que algo não seja sequer publicado. Se for publicado, que seja removido. Se for removido, que não seja publicado novamente.

Isso viola frontalmente o artigo 5º da Constituição Federal. Nossa Carta Magna foi sábia. Para que o Brasil nunca mais vivesse a miséria da censura, criou em seu artigo 224 o Conselho de Comunicação Social (CCS), órgão auxiliar do Congresso Nacional. Ele tem a atribuição de assegurar que "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição".

O conselho está atento à questão das violações à liberdade de expressão no país em todas as suas modalidades. Já se manifestou por unanimidade em favor da liberdade de expressão quando analisou o grande número de ordens judiciais para remoção de conteúdos durante o período eleitoral.

Neste artigo, em caráter individual como presidente e vice-presidente do Conselho de Comunicação Social, manifestamos nossa preocupação e repudiamos o crescente número de ordens judiciais nesse sentido, como a que afetou a Folha e "O Globo".

A liberdade de expressão não é absoluta. Precisa ser ponderada com outros direitos constitucionais, tais como a privacidade ou a proteção à dignidade humana. No entanto, nossa Constituição foi clara ao adotar um regime de responsabilidade. Violações a direitos no exercício da liberdade de expressão devem ser punidas, mas posteriormente. Jamais por meio de censura prévia.

Infelizmente, o Brasil vem destoando das regras de liberdade de expressão que são praticadas nos países democráticos. Desvia-se não só do modelo dos EUA, em que políticos e figuras públicas praticamente não têm direito de reparação contra ofensas, mas também dos vizinhos latino-americanos.

Países como Argentina, Costa Rica, El Salvador, México, Nicarágua e Uruguai ou nunca cercearam ou recentemente revogaram suas leis que permitiam a políticos recurso ao Judiciário para banir afirmações, mesmo que ofensivas, contra eles.

Além de violar a Constituição Federal, essa prática de cerceamento prévio viola também o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. Isso abre espaço para que o país seja questionado no plano internacional.

Um bom exemplo é o caso da Argentina. O país foi condenado em 2008 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ao punir o jornalista que expôs os agentes públicos responsáveis pelo massacre da igreja de são Patrício. Como resultado, a Argentina aprovou a "Lei Kimel", que limita a possibilidade de figuras públicas acionarem o Judiciário para cercear o que se diz sobre elas.

É claro que a liberdade de expressão não é absoluta. Precisa ser ponderada com outros direitos constitucionais, tais como a privacidade ou a proteção à dignidade humana.

No entanto, nossa Constituição foi clara ao adotar um regime de responsabilidade. Violações a direitos no exercício da liberdade de expressão devem ser punidas, mas posteriormente. Jamais por meio de censura prévia.

A ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, já proferiu a frase que ficou notória: "Cala a boca já morreu". Espera-se que o Judiciário seja capaz de repeti-la em uníssono.

Miguel Ângelo Cançado – Advogado e presidente do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional

Ronaldo Lemos – Professor de direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Columbia (EUA)


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *