20/04/2024 - Edição 540

Palavra do Editor

A propriedade privada das expressões humanas

Publicado em 17/02/2017 12:00 -

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Você deve ter ouvido falar do caso da jovem Thauane Cordeiro, de Curitiba (PR), que foi criticada por outras moças devido ao fato de, sendo branca, estar usando um turbante em uma estação de ônibus. Para quem não compreende o conceito de apropriação cultural, o caso pode parecer absurdo. E é.

Para contextualizar a situação, vale dizer que a apropriação cultural é um conceito da antropologia que se refere ao momento em que alguns elementos específicos de uma determinada cultura são adotados por pessoas ou um grupo cultural diferente. Passa também por uma reflexão política: esse uso teria uma conotação negativa quando a cultura de um grupo que foi historicamente oprimido é adotada por um grupo historicamente dominante.

“Eu estava na estação com o turbante toda linda, me sentindo diva. E eu comecei a reparar que tinha bastante mulheres negras, lindas aliás, que estavam me olhando torto, tipo 'olha lá a branquinha se apropriando da nossa cultura'. Enfim, veio uma falar comigo e dizer que eu não deveria usar turbante, porque eu era branca. Tirei o turbante e falei 'tá vendo essa careca, isso se chama câncer, então eu uso o que eu quero! Adeus.', Peguei e saí e ela ficou com cara de tacho.”, contou a jovem paranaense em uma postagem no Facebook.

Feito este preâmbulo, vamos lá.

Pouco importa se Thauane tem câncer (ela tem) e usava o turbante –  uma indumentária típica da cultura afro – para disfarçar a queda de cabelos proveniente do tratamento a que é submetida. Em uma sociedade livre, ninguém deveria ser obrigado a se submeter a uma patrulha ideológica odiosa, ou ter que apontar argumentos – como uma doença – para justificar o uso de um acessório, um tipo de vestimenta, uma expressão ou penteado.

O que parece óbvio para alguns, não o é para outros.

Que incongruência observar setores da esquerda dependurados em pautas identitárias, como a apropriação cultural, como se esta fosse a solução para o racismo, quando é, de fato, a legitimação do copyright cultural.

A cultura é um universo de símbolos e as imagens e as estéticas são fruto das experiências humanas. Para os defensores das pautas identitárias, no entanto, um turbante carrega significados mais complexos e profundos do que simplesmente ser uma vestimenta, e seu uso por brancos reflete uma relação de poder.

De fato, recentemente, a moda se apropriou dos turbantes e das estampas étnicas. Modelos e atrizes – muitas brancas – posaram para editoriais em revistas de moda, tornando os acessórios estilosos. Para alguns cientistas sociais, isso ocorre pois, ao ser usado por uma pessoa branca (integrante de uma cultura dominante), o objeto oriundo da cultura negra (ou indígena) passa a ser aceitável. Quando um símbolo de um povo marginalizado é tomado pelo elemento dominante, isso se torna uma relação de privilégio de uma cultura em relação à outra. Trata-se de um processo que envolve desigualdade e desrespeito, dizem eles.

Dizem, também, que o problema não deve ser individualizado, mas atacado quando tem origem no consumo cultural. Tipo assim: não tem problema se uma branquinha pegar uma toalha estampada e amarrar no cabeça; o problema é se uma grande indústria de vestimenta lançar uma coleção com motivos étnicos… Que o diga Thauane…

Há muita gente por aí debatendo este tema sob óticas enviezadas, ou, pior, de forma desonesta. A pergunta de fundo é a seguinte: uma determinada prática cultural só deve ser exercida pelo grupo da qual é originária?

Penso que estamos diante uma das maiores deformações feitas em nome das chamadas "pautas identitárias".

Via de regra, bens culturais são fruto de esforços coletivos. É o caso das grandes invenções da ciência e das artes, que sempre foram obras impessoais e abertas ao uso geral. Questões como autoria e direito autoral surgiram depois, com o desenvolvimento do capitalismo comercial.

Que incongruência, portanto, observar setores da esquerda dependurados em pautas identitárias, como a apropriação cultural, como se esta fosse a solução para o racismo, quando é, de fato, a legitimação do copyright cultural.

O movimento negro no Brasil não gosta de ser comparado aos seus congêneres norte-americanos ou europeus – embora reproduza suas táticas. O conceito de apropriação cultural é uma delas. Alegando a defesa da exclusividade cultural negra como símbolo de luta, reivindicam o controle sobre o que as pessoas podem usar, sentir, dizer.

A reivindicação de símbolos culturais coletivos por grupos étnicos, como se estes fossem objetos de posse a serem disputados é uma afronta histórica, social e política, especialmente à esquerda do prisma ideológico,

Como disse o historiador Gilberto Maringoni, o conceito de apropriação cultural reproduz uma das piores marcas do capitalismo predador. “Trata-se abertamente de uma das maiores odes à propriedade privada que vi nos últimos tempos”.

E eu subscrevo.


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