19/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Apropriação cultural e a cultura da apropriação

Publicado em 17/02/2017 12:00 - Rodrigo Amém

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Mas afinal: apropriação cultural existe? Claro que existe. Desde que existe cultura, existe apropriação cultural. É só através da apropriação que a cultura é transmitida e transformada. A incorporação de elementos vindos de outras freguesias é fundamental para a construção da identidade. Seja de uma pessoa ou de um grupo social.

Por exemplo, a suástica nazista sofreu apropriação cultural. Muito antes de Hitler, ela já estava presente nas culturas budistas, astecas e tantas outras. Seu significado foi profundamente alterado, claro. Já a cruz passou de instrumento de tortura romano para símbolo de resistência judaico, para expressão de fé cristã para símbolo de racismo do Ku Klux Klan em menos de dois mil anos. Cada um dos elementos da cultura negra foi incorporado de outras tradições e teve seu significado reinventado no processo. De Iemanjá ao turbante.

Esse jogo de apropriação e ressignificância é parte central do processo de formação e expressão de nossa identidade cultural. Verdade, existem milhares de civilizações isentas de apropriação. Infelizmente, pouca gente ouviu falar delas. Esse é o problema. Cultura sem troca é cultura morta.

Mas, se o conceito de apropriação cultural é antigo, tem novidade no pedaço: a apropriação cultural indébita. Ou opressora. Ou do mal, como você preferir. Essa é mais convenientemente delineada: trata-se da apropriação da cultura de uma minoria oprimida por uma maioria opressora. Essa noção parece ter emanado do conceito de patrimônio intelectual, um dos frutos mais caros e complexos da revolução industrial.

Cultura sem troca é cultura morta. Mas, se o conceito de apropriação cultural é antigo, tem novidade no pedaço: a apropriação cultural indébita. Ou opressora. Ou do mal, como você preferir.

Quando a Apropriação Cultural Indébita (ACI, para facilitar) surgiu era, essencialmente, uma crítica à indústria cultural sob o ponto de vista das minorias. Tratava-se da exploração comercial de uma cultura pelo empresário opressor capitalista, sem a autorização (e, principalmente, sem os royalties) dos explorados no processo. Acredite, nenhum escravo americano recebeu direitos autorais por um blues. E o sistema que permitiu essas injustiças dá frutos ainda hoje.

Alguns casos são tão descarados que é difícil encontrar defensores. A rede de lojas de roupas Zara, por exemplo. Mesmo depois de abalada por diversas acusações de exploração de trabalho escravo em pleno século XXI, lançou uma coleção com estampas inspiradas na cultura africana. E seu catálogo, claro, era cheio de modelos branquinhas de cabelos e olhos claros. Um excelente motivo para mobilização e protestos, piquetes na porta, boicotes, coisa e tal. Uma megacorporação explorando trabalhadores e lucrando com a ACI de um continente devastado pela exploração do homem branco? Inserir emoji de vômito aqui, faz favor.

Mas, como lidar com a Madonna? A carreira da Material Girl é a definição da ACI. Não tem cultura (oprimida ou não) no planeta que não tenha virado baú para seus figurinos. Da cultura negra à japonesa, do catolicismo ao budismo, da Islândia à Argentina, ela se apropria e ressignifica tudo. E lucra uma barbaridade no processo. Não seria motivo para protesto e boicote? Ou será que ela tem permissão por ser porta-voz da causa LGBT e do feminismo? Será que é por isso que tem tanto branco com alargador de orelha denunciando ACI nas redes sociais? Créditos?

A questão da ACI como um problema sistêmico do capitalismo é uma questão que deve ser debatida, questionada e pensada. As pessoas precisam mesmo ser educadas e conscientizadas a respeito dessa forma de exploração cultural. Para que elas tomem por si mesmo a decisão de compactuar (ou não) com essa mutreta sociológica. Até porque, como quase tudo no capitalismo, a decisão final é do consumidor. E aí, meu filho: minha cultura, minhas regras.

Agora, a menina perde o cabelo na quimio e põe turbante para dar uma levantada na auto-estima. Mandam tirar porque ela não é negra e isso é ACI. Não, isso não é ACI. O nome disso é bullying.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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