18/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Democracia enfrenta novas ameaças e situação preocupante na América Latina

Publicado em 25/01/2017 12:00 -

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A ofensiva conservadora que atravessa vários países da América Latina, acompanhada de um processo de judicialização e de deslegitimação da política, coloca um cenário muito preocupante para o presente e o futuro da democracia na região. A avaliação é do ex-senador e ex-ministro da Economia do Chile, Carlos Ominami, que esteve em Porto Alegre na semana passada participando de debates do Fórum Social das Resistências. Atual presidente da Fundação Chile 21, Ominami participa hoje de um esforço de recomposição política e programática da esquerda chilena. O economista analisa a situação da America Latina, fala sobre o quadro político no Chile e adverte para as novas ameaças que pairam sobre a democracia e sobre as forças populares.

 

Como o senhor avalia o atual momento político da América Latina, com o avanço de setores conservadores e de uma direita mais extremista, após quase duas décadas de predomínio de governos progressistas na região?

Acredito que vivemos uma situação muito delicada e preocupante para a democracia e para o futuro das forças populares. Estamos enfrentando uma ofensiva conservadora surpreendente e de grande envergadura. Quando digo surpreendente, estou pensando, por exemplo, no caso do Brasil. Há alguns anos, ninguém imaginava que um impeachment pudesse ocorrer no Brasil. Talvez fosse possível esperar que isso acontecesse em Honduras ou no Paraguai, mas não no Brasil. O que aconteceu virou um espinho cravado na garganta das forças progressistas de toda a América Latina. O PT era um grande ponto de referência latino-americano. Hoje em dia deixou de sê-lo e espero que ainda possa se recuperar.

A vitória da direita na Argentina também foi grave, assim como o é a situação da esquerda e do progressismo no Chile. Bachelet obteve uma grande vitória em sua segunda eleição com mais de 60% dos votos, mas seu governo foi perdendo apoio popular e hoje tem mais de 60% de rejeição. Essa queda é resultado de reformas bem intencionadas, mas muito mal executadas. Essa situação pode provocar não apenas uma derrota eleitoral na próxima disputa presidencial, mas uma derrota política, cultural e ideológica. Além disso, temos a mudança de governo nos Estados Unidos que vai criar uma situação particularmente delicada para México e Cuba. Precisamos acompanhar com a atenção e muita solidariedade o que pode ocorrer nestes dois países.

Há, por outro lado, algumas coisas positivas como o que está acontecendo na Colômbia, onde se chegou a um acordo para por fim a décadas de guerra. Há uma esquerda que resiste no Uruguai. Há também uma esquerda que começou a mostrar certa força no Peru com Verónika Mendoza, mas não podemos negar que o quadro é globalmente delicado e preocupante.

Na sua opinião, há algum termo de comparação que pode ser adotado entre a situação atual e aquela vivida, por exemplo, nas décadas de 60 e 70, que acabou resultando em um ciclo de ditaduras na América Latina?

Felizmente, creio que não. As situações são bem distintas. Ainda que, considerando o que vem acontecendo, devamos ser muito humildes em nossos prognósticos, pois temos nos equivocado muito. Nos equivocamos com Trump, com o Brexit, com as perspectivas do acordo de paz na Colômbia, juramos que o governo de Dilma não cairia e essas coisas foram acontecendo. Mas não creio que haja espaço para golpes militares ao estilo do que aconteceu nas décadas de 60 e 70. As ameaças são novas. Uma das principais é a de um populismo autoritário que busca respostas fáceis para problemas complexos. Um populismo que busca se sintonizar com uma certa demanda de uma mão forte por parte de setores populares. Esse populismo se nutre também do processo de deslegitimação institucional: deslegitimação dos partidos, da política, do Congresso. Isso pode dar espaço ao surgimento de lideranças messiânicas e autoritárias que geram uma grande esperança e, rapidamente, transformam essa esperança em frustração.

Em um debate que ocorreu no Fórum Social das Resistências, uma ativista mexicana fez um relato sobre a terrível situação de violência que vive o México e disse que seu país, hoje, é uma grande fossa de cadáveres e desaparecidos. O Brasil, por sua vez, vive agora uma série de rebeliões em penitenciárias com práticas de decapitação e esquartejamento que também se repetem no dia a dia de grandes cidades. Parece haver um clima de violência que começa a transitar tanto na esfera criminal como na política. Na sua opinião, isso pode ser tomado como indício de uma degeneração social mais grave?

De fato, esses são fenômenos muito inquietantes. O caso do México é muito grave mas não é essencialmente novo. O México tem uma tradição de violência. É especialmente delicado que a violência se transporte também para o terreno da política. Em 1994, o candidato do PRI (Partido Revolucionário Institucional) à presidência do país, Luis Colosio, foi assassinado. Há muitos anos que as eleições mexicanas são marcadas por denúncias de fraudes. Não sou um especialista no assunto, mas creio que, no Brasil, as raízes da violência são distintos. Essas rebeliões e motins em presídios não começaram ontem. A história carcerária do Brasil é muito dura. O que é preocupante é que, em muitos países da nossa região, o Estado de Direito está colocado em xeque por essas situações. As forças do Estado têm dificuldades para garantir a proteção do território, como é o caso da Colômbia. O Chile também tem os seus problemas territoriais hoje com povos indígenas, gerando uma situação de violência importante. Mas repito, não creio que estejamos voltando às décadas de 60 ou 70. O que está acontecendo hoje na América Latina se dá em um cenário internacional totalmente distinto.

Não creio que haja espaço para golpes militares ao estilo do que aconteceu nas décadas de 60 e 70. As ameaças são novas. Uma das principais é a de um populismo autoritário que busca respostas fáceis para problemas complexos.

O senhor fez referência a alguns dos problemas que o Chile vive hoje. Como definiria a atual situação política e econômica em seu país?

Afirmo com muito pesar que o governo de Michelle Bachelet tem sido um grande desperdício. Foram mobilizadas grandes energias e grandes expectativas que não se cumprem, gerando muita frustração. Esse é o resumo do governo Bachelet que hoje está isolado. Com isso temos um cenário relativamente aberto para as eleições presidenciais de novembro próximo. Talvez o mais aberto da história. Ainda não se sabe, exatamente, quem serão os candidatos. Em todas as eleições anteriores, a essa altura, já se sabia quem seriam os candidatos. Neste cenário, eu diria que o futuro presidente do Chile sairá de uma lista de três nomes: o ex-presidente Sebastián Piñera, pela direita, Alejandro Guillier, um senador mais conhecido pelo seu trabalho como jornalista, e, em uma situação bem mais complexa, o ex-presidente Ricardo Lagos. Salvo uma surpresa muito grande, o futuro presidente do Chile sairá daí.

O Chile vive hoje uma séria crise política e institucional. Se essa crise de confiança e de legitimidade das instituições não for resolvida, o próximo presidente, seja ele quem for, vai fracassar. O atual quadro institucional torna impossível a realização de grandes reformas e sem essas reformas a economia continuará estagnada e a política seguirá se deteriorando.

Que reformas seriam estas?

A principal reforma que precisa acontecer no Chile é a da Constituição. O Brasil fez um processo constituinte em 1988. Nós aceitamos a Constituição de Pinochet que nos foi imposta, não a reformamos e estamos pagando muito caro por isso. Se uma profunda reforma constitucional não conseguiremos resolver os nossos problemas. O atual sistema de normas constitucionais, imposto pela ditadura, é injusto. Chega a ser vergonhoso que, depois de 25 anos de retorno à democracia, mantenhamos em sua essência a Constituição de Pinochet.

Há um debate hoje no Chile para a construção de uma nova articulação política no campo da esquerda. Como está esse debate?

A esquerda no Chile, hoje em dia, não é uma força homogênea. Nos anos 90, inspirados um pouco na experiência do PT, tentamos fazer um grande esforço para tornar o Partido Socialista a casa comum das esquerdas. Diferentemente do caso do PT, escolhemos um partido tradicional para tentar constituí-lo como a casa comum da esquerda. Fizemos isso porque esse partido tinha uma base moral, que é o exemplo de Salvador Allende. Sem esse exemplo, provavelmente teríamos optado por construir algo novo, como foi o caso do surgimento do PT. Não criamos algo novo, mas o Partido Socialista não se tornou a casa comum da esquerda e sim uma máquina eleitoral. O partido se dividiu e uma grande quantidade de dirigentes, eu inclusive, acabou saindo.

O que temos hoje, na esquerda chilena, é a proliferação de pequenos grupos que estão tentando se organizador. Estamos buscando construir uma convergência na esquerda. Se ela continuar dividida, não haverá solução para os problemas do Chile.

E qual a situação da direita, que apoiou a ditadura de Pinochet. Há no Chile, como vem acontecendo no Brasil e em outros países da região, o reaparecimento de uma direita mais extremista?

Nós enfrentamos um sério problema no Chile que é o fato de a ditadura não ter sido inteiramente derrotada. Ganhamos um plebiscito, mas as forças armadas saíram intactas. Alguns torturadores foram presos, mas os principais responsáveis civis, os grandes instigadores do golpe, jamais foram tocados. Vários deles estão vivos ainda. Há um mundo empresarial ligado a essa direita e eles sentem, de alguma forma, que são os construtores do Chile. É diferente do caso dos militares argentinos que foram derrotados nas Malvinas. O que temos no Chile é uma direita que segue sendo tributária de Pinochet. São pinochetistas, mas não se atrevem a mostrá-lo. No aniversário da morte de Pinochet, se reúnem em segredo em áreas afastadas. O sentimento pinochetista segue existindo. Em sua grande maioria, é uma direita constituída por dirigentes que colaboraram com a ditadura. E ganharam reforços. Dentro dos partidos mais pinochetistas, há uma nova geração que segue essa tradição. É uma direita muito arcaica. Então, o que temos hoje é, de um lado, essa direita arcaica e, de outro, uma esquerda dividida.

Acredito que vivemos uma situação muito delicada e preocupante para a democracia e para o futuro das forças populares. Estamos enfrentando uma ofensiva conservadora surpreendente e de grande envergadura.

O senhor mencionou a existência de problemas territoriais no Chile envolvendo comunidades indígenas, especialmente com os mapuches. Qual a situação atual desses conflitos?

Essa é uma novidade das últimas décadas. O Chile, de maneira vergonhosa, se jactava de ser um país sem índios e sem negros. Éramos os ingleses da América Latina. Falso. Há algo entre 10 e 15% de população indígena, que vive no sul do Chile e também na região metropolitana de Santiago. Essa população da região metropolitana era completamente invisível até bem pouco tempo. Trabalhadores de baixa qualificação que, basicamente, trabalhavam na indústria panificadora, apresentando altos índices de alcoolismo, sempre com a cabeça baixa e com pouca organização. Hoje o quadro é distinto. Há uma direção mapuche com alto nível de informação e educação. Há profissionais de várias áreas que estão construindo um forte movimento de contestação que, em alguns casos, deriva para a violência.

Eles não têm uma reivindicação de camponeses, mas sim uma reivindicação nacional. Afirmam que não são chilenos, mas sim mapuches e querem o reconhecimento de sua identidade. É uma situação muito delicada que tem gerado episódios de violência. Muitos brancos receberam do Estado chileno terras que estão localizadas em território ancestral dos mapuches. Creio que é preciso não apenas reconhecê-los constitucionalmente como um povo originário, como também reconhecer que somos, de alguma forma, um estado plurinacional. Isso teria implicações importantes como a representação direta no Parlamento. Se não avançarmos nesta direção, teremos um foco de violência permanente.

Consolidado o impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, uma das principais propostas do governo Temer é fazer uma reforma da Previdência que pode mudar radicalmente o sistema de aposentadorias no Brasil. Durante muitos anos, o modelo de Previdência chileno, construído durante a ditadura de Pinochet, foi apontado como exemplo a ser seguido em toda a região. Como foi essa experiência e qual é a realidade da Previdência no Chile?

Esse é um tema muito interessante. É impressionante como, não só no período da ditadura mas também na democracia, se vendeu o modelo chileno como a grande solução para os problemas previdenciários no mundo. E foi vendido com muito êxito. A melhor coisa, de longe, desse modelo chileno é o marketing. O inventor desse sistema, José Piñera, irmão do ex-presidente, viajou pelo mundo e ficou rico vendendo esse sistema que teve resultados desastrosos. O sistema de previdência chileno, hoje, está praticamente quebrado. Não cumpriu nenhuma de suas promessas. A taxa de substituição (relação entre o último salário recebido e a pensão) é inferior a 40% do último salário recebido. Se você ganhava 100, o sistema te oferece menos de 40 como aposentadoria. Cerca de um terço da população está fora do sistema.

Além disso, trata-se de um sistema machista que impede que as mulheres em situação de maior dificuldade econômica possam ter uma aposentadoria digna. Os custos de administração desse sistema são muito caros. Estima-se que cerca de 25% do que é arrecadado é destinado para pagar esses custos e o lucro das administradoras. É um sistema absolutamente injusto, não existindo uma vinculação entre a rentabilidade do fundo e o lucro das administradoras. Os fundos chegaram a perder entre 15 e 20% de rentabilidade sem que isso afetasse esse lucro. Hoje, no Chile, há consciência de que é preciso mudar esse sistema. Bachelet tentou uma mudança em 2005, mas que não chegou a ser uma reforma. Ela criou um pilar solidário, não-contributivo, agregando muita gente que estava fora do sistema. Isso foi bom, mas não resolveu os problemas centrais, o que só pode ocorrer se houver uma mudança na arquitetura do sistema que crie um componente solidário dentro do fundo.

As grandes mobilizações que ocorreram em 2016 já não foram mais pela educação, mas sim pela previdência. Essa questão deverá ser um tema central na próxima campanha presidencial.

Ele é um sistema essencialmente privado ainda?

É inteiramente privado com uma exceção: o sistema dos militares, que custa caríssimo, em torno de US$ 2,5 bilhões, beneficiando cerca de 100 mil pessoas. É um sistema mais caro do que o pilar solidário que beneficia os mais pobres.


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