28/03/2024 - Edição 540

Entrevista

Militarização é um processo herdado desde a colônia

Publicado em 07/12/2016 12:00 -

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O aprofundamento da discussão acerca da segurança pública deve passar, necessariamente, pelo papel e a natureza do sistema policial do Brasil. Nos últimos anos, sobretudo por conta do recrudescimento da violência nas ações, o tema da desmilitarização das corporações cresceu em importância.

O professor Sérgio Adorno é referência no debate sobre violência e segurança. Na visão do pesquisador, está ultrapassado o modelo militarizado de formar policiais como profissionais preparados para a guerra, “cujos inimigos têm que ser liquidados para que a promessa de paz prospere”. Essa concepção “não consegue enfrentar os novos padrões emergentes de crime e de economias ilegais, em torno de atividades como o tráfico de drogas e outras modalidades”.

Uma eventual desmilitarização das forças policiais demandaria, ao menos, duas gerações, projeta Adorno. No entanto, na sua visão, seria “imperativo que fortes correntes de opinião se formem e se mantenham ao longo do tempo, capazes de influenciar os legisladores, os tomadores de decisões e, sobretudo, enfrentar os poderosos lobbies das corporações profissionais”.

A militarização está presente no aparato policial do Estado desde o período colonial, atravessou o Império e se consolidou na República, “mediante programas de treinamento que valorizavam a hierarquia, a cadeia de comando, as ordens rígidas de cima para baixo, a disciplina militar”. Como o debate acerca da mudança da natureza dessas corporações é muito difícil, em parte devido à tradição, Adorno propõe a seguinte questão: “Quanto os processos de transição e de consolidação da democracia, reconhecidamente não concluídos, provocaram impacto nas organizações policiais?”.

O pesquisador salienta que casos de corrupção ou de crimes cometidos por policiais, por conta da repercussão, podem sugerir “que toda a organização está impregnada de corrupção ou condutas ‘desviantes’ de modo inexorável”. No entanto, não crê que seja assim. Ele ressalva que o “problema não é então acabar com policiais e com suas agências, todavia promover uma reforma institucional radical, ao longo de um tempo razoável, capaz de torná-las compatíveis com o estado democrático de direito e com suas tarefas constitucionais de garantir segurança pública para maior número”.

Devido à fragilidade do controle, são muito preocupantes as mortes de “jovens pobres, negros, sobretudo como formas de vingança pessoal de alguns policiais”. Esses casos, conforme o professor, deveriam mobilizar as autoridades constituídas para acabar com esses ciclos. “O sistema de justiça criminal é muito leniente para com os crimes, especialmente homicídios, cometidos por policiais, seja em serviço, seja fora de serviço.”

 

Quando a desmilitarização da polícia começou a ser pautada no Brasil e por quê?

Não sei precisar a data com exatidão. Propostas de reforma da polícia podem ser identificadas desde as primeiras décadas do século 20. Desde fins dos anos 1970, com o crescimento dos crimes, em especial os violentos, cada vez mais ganharam força correntes de opinião pública e afirmações, algumas das quais lastreadas em estudos, segundo as quais a polícia, sobretudo a Militar, é parte dos desafios propostos pelo controle legal da violência. Muitos consideram que o modelo militarizado, baseado na guerra contra o inimigo — neste caso, o delinquente — tem alimentado o ciclo de mais e mais violência que desconhece limites ou constrangimentos legais. Assim, tudo indica que esse modelo militarizado forma profissionais preparados para a guerra, cujos inimigos têm que ser liquidados para que a promessa de paz prospere. É uma concepção ultrapassada que não consegue enfrentar os novos padrões emergentes de crime e de economias ilegais, em torno de atividades como o tráfico de drogas e outras modalidades.

Muitos consideram que o modelo militarizado, baseado na guerra contra o inimigo — neste caso, o delinquente — tem alimentado o ciclo de mais e mais violência que desconhece limites ou constrangimentos legais.

A desmilitarização da polícia acarretaria em uma profunda e ampla mudança na sociedade brasileira. Que outros fatos da recente história do país provocaram transformação de envergadura similar?

É certo que a desmilitarização é um processo complexo. Instituí-la por decreto somente agravará os problemas, suscitando reações corporativas e institucionais de difícil solução. A militarização é um processo herdado desde a colônia, se manteve durante o Império e se solidificou com a República, mediante programas de treinamento que valorizavam a hierarquia, a cadeia de comando, as ordens rígidas de cima para baixo, a disciplina militar. Durante a República, missões estrangeiras, como a Francesa, buscaram reforçar esses traços da organização. Gerações e gerações de policiais, do soldado ao oficialato, foram treinados para obedecer e cumprir ordens. Portanto, estamos diante de uma cultura corporativa e institucional enraizada, pouco permeável às influências externas e resistente às mudanças. A desmilitarização é um processo que deve cobrir, ao menos, duas gerações e, por conseguinte, um processo a ser planejado, coordenado e monitorado em seus possíveis resultados. Não saberia dizer que outros fatos provocaram, na história deste país, transformação de tal envergadura. Trata-se de uma questão comparativa que envolve julgamento de valores. O que se deveria perguntar é o quanto os processos de transição e de consolidação da democracia, reconhecidamente não concluídos, provocaram impacto nas organizações policiais e o quanto são responsáveis pelo fato de a proposta de desmilitarização ter ganho força e ter persistido por três décadas no debate público. 

O grau de violência verificado na conduta dos policiais militares decorre dos elevados índices de insegurança e de violência da sociedade brasileira? Ou a causa reside, sobretudo, na maneira como as forças de segurança se constituíram?

Por um lado, decorre das características do modelo militarizado de formação dos profissionais que atuam nessas agências de contenção do crime e da violência; por outro lado, deve-se ao comportamento dos cidadãos de modo geral. É forçoso reconhecer que parcela dos cidadãos manifesta opiniões contrárias à militarização, responsabilizando-a em grande medida pelo fracasso no controle legal e democrático do crime e da violência. Muitos inclusive se organizam em movimentos sociais, organizações não governamentais, se expressam através da mídia impressa eletrônica e estudam os problemas decorrentes nas universidades e centros de pesquisa. Há também aqueles que se opõem à desmilitarização, por razões as mais diversas, inclusive porque mantêm vínculos com as organizações policiais. Porém, a grande maioria permanece em silêncio, o qual pode ser interpretado como aquiescência ao modelo militarizado. Para estes, antes assim do que o caos. Portanto, essas duas forças, embora originárias de fontes distintas, acabam convergindo para um mesmo ponto, isto é, o apoio a essa organização tradicional. Não conseguem estabelecer nexos entre a persistência desse modelo ultrapassado e o agravamento dos problemas de insegurança.  

A ideia é não cair em teorias conspiratórias, mas faz sentido pensar que os policiais, tanto civis quanto militares, obedecem a códigos e ordens que necessariamente não sejam oficiais?

Há diferenças de formação e desempenho muito flagrantes entre policiais militares e civis, no tocante à carreira, à formação, à disciplina, à cadeia de comando etc. Cada uma dessas agências obedece aos regulamentos próprios e aos códigos, inclusive éticos, que regulam os fins, as ações, o desempenho profissional e corporativo. De todo modo, a interpretação subjetiva desses códigos e regulamentos é um fato — aliás, esse traço não é exclusivo das organizações policiais, mas de muitas outras instituições, como as universidades, por exemplo.

Na Polícia Militar, parece haver maior controle sobre os desvios de conduta motivados por interpretações subjetivas que subvertem a própria razão de ser da instituição, quando, também por exemplo, um policial se envolve em corrupção, em atividades ilegais ou coisas do gênero. É difícil, contudo, mensurar a extensão dessas condutas. Em alguns momentos, por efeito inclusive de repercussão pública de casos exemplares, dá-se a impressão que toda a organização está impregnada de corrupção ou condutas "desviantes" de modo inexorável. Não creio que seja assim. Porém, creio que um número determinado de casos, não raro cometidos pelos mesmos policiais, tem por efeito produzir imagens, disseminadas coletivamente, segundo as quais todas as organizações policiais estão comprometidas com o crime. O problema não é então acabar com policiais e com suas agências, todavia promover uma reforma institucional radical, ao longo de um tempo razoável, capaz de torná-las compatíveis com o estado democrático de direito e com suas tarefas constitucionais de garantir segurança pública para maior número.    

A justiça criminal é leniente para com homicídios cometidos por policiais. Não se trata aqui de desvalorizar a vida de policiais em favor dos criminosos ou supostos criminosos. Independentemente de sua condição social e jurídica, todos têm direito a ter suas vidas preservadas, assim como devem ser rigorosamente punidos, segundo as leis penais vigentes, os autores de crimes, em especial aqueles que envolvem desfechos fatais.

O Estado perdeu o controle das polícias?

Acho essa afirmação muito forte. No final dos anos 1960 e ao longo dos anos 1970, a existência de escuderias de policiais constituídas para matar "inimigos", tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, sugerem que, mesmo durante a ditadura, o controle sobre parcelas da polícia era muito precário. No decorrer de décadas, esse problema somente cresceu e se tornou mais grave, com o envolvimento de policiais — civis e militares — com cidadãos civis, sobretudo nos bairros que compõem a chamada periferia das regiões metropolitanas, na constituição de esquadrões da morte. Quando policiais saem matando, até mesmo sem o conhecimento de seus superiores, é claro que há perdas de controle sobre parcelas desses policiais. Contudo, isso não significa que o Estado tenha perdido o controle de suas polícias. Ainda assim, os problemas que vivenciamos no cotidiano com mortes de jovens pobres, negros, sobretudo como formas de vingança pessoal de alguns policiais, são muito preocupantes e deveriam atrair toda a atenção das autoridades constituídas para interromper esses ciclos.

Por que a polícia brasileira mata tanto?

Além da convergência de forças — o modelo militarizado e a aquiescência de grande parte da população, distribuída em todas as classes sociais —, é preciso considerar a impunidade. O sistema de justiça criminal é muito leniente para com os crimes, especialmente homicídios, cometidos por policiais, seja em serviço, seja fora de serviço. Embora careçam de coleções de dados estatísticos confiáveis, o estoque de estudos científicos disponíveis indica que as taxas de impunidade são elevadas, o que contrasta, não raro, com o rigor com que um agressor, cuja vítima seja um policial, é tratado no sistema de justiça criminal. Não se trata aqui de desvalorizar a vida de policiais em favor dos criminosos ou supostos criminosos. Independentemente de sua condição social e jurídica, todos têm direito a ter suas vidas preservadas, assim como devem ser rigorosamente punidos, segundo as leis penais vigentes, os autores de crimes, em especial aqueles que envolvem desfechos fatais. 

No Massacre do Carandiru, em 1992, mais de 300 policiais militares de São Paulo invadiram o pavilhão onde a rebelião começou, portando metralhadoras e bombas. No final, havia 22 policiais feridos, sem gravidade. Por outro lado, 111 presidiários acabaram mortos em menos de 20 minutos. Conforme a perícia, entre os 102 baleados, havia uma média de cinco tiros por corpo, sendo que nove em cada dez homens foram alvejados no pescoço e na cabeça, o que indica que o autor do disparo pretendia matar. Esse episódio é uma prova cabal do despreparo e da truculência da Polícia Militar de São Paulo?

Acho difícil falar em despreparo, porém certamente em preparo que se vale da truculência e da violência. Muito já foi dito no caso Carandiru. O desfecho jurídico do caso está caminhando para um escândalo no cumprimento das funções públicas. Há várias questões que precisam ser respondidas: por que não foram feitas perícias com qualidade técnica que permitissem uma avaliação precisa da intencionalidade dos agentes em conter a suposta rebelião? O argumento segundo o qual não foi possível individualizar a responsabilidade penal para cada um dos policiais que participaram da operação conduz a uma série de problemas. Se é assim, a Justiça nunca poderá julgar crimes praticados por esquadrões da morte. Isso é, na verdade, uma declaração da impossibilidade de fazer justiça. Muito grave. 

É preciso uma reforma institucional radical, ao longo de um tempo razoável, capaz de tornar as polícias compatíveis com o estado democrático de direito e com suas tarefas constitucionais de garantir segurança pública para maior número.

Creio que o modelo de justiça penal "liberal" — a cada um a pena segundo sua participação no ato criminoso — não se aplica sob qualquer espécie aos fatos como o massacre do Carandiru. Nos crimes de guerra, por exemplo, na Segunda Grande Guerra, o Tribunal de Nuremberg puniu todos aqueles que diretamente estavam na cadeia de comando das operações voltadas para a liquidação racial de judeus, ciganos, doentes mentais, homossexuais, comunistas. Todos vistos como inimigos do Terceiro Reich e obstáculo à supremacia racial branca e alemã. Nesse tribunal, sabia-se que não seria possível individualizar completamente os atos, porém punir atos que agridem e ofendem a consciência pública nestas sociedades construída à órbita da moderna civilização ocidental.   

Movimentos sociais consideram que a Polícia Militar não contribui para o fortalecimento da democracia. Em um desenho ideal, que papel caberia aos agentes de segurança em um regime democrático?

Por certo, seria preferível que sociedades democráticas prescindissem das organizações policiais. No entanto, isso é impossível em sociedades modernas, em sua etapa contemporânea, cada vez mais caracterizadas por diversidades de toda ordem, individualistas e sujeitas à subjetividade na interpretação das normas e regulamentos. O problema que se deve discutir é: qual o modelo de organização policial compatível com as sociedades democráticas? Como os cidadãos devem exercer accountability das ações policiais? Como se deve reduzir ao extremo as oportunidades do uso da força letal e do emprego arbitrário da força, por exemplo, nos protestos sociais, nas desocupações de prédios, na desobstrução de vias públicas? 

Por que problemas sociais são tratados como problemas de polícia?

Essa é uma longa história. Não há espaço aqui para dissertar sobre essa questão. Vale apenas lembrar: não apenas na sociedade brasileira, a história social da classe operária é indissociável da presença da polícia, vigiando espaços de aglomeração, exercendo controle moral de comportamentos, intervindo em brigas e conflitos interpessoais. Na origem na classe operária, está tanto a questão social quanto a questão policial.  

A desmilitarização da polícia é apontada como algo positivo para combater as arbitrariedades e os excessos cometidos pelos agentes de segurança do Estado, mas as perspectivas de que isso ocorra são mínimas, pelo menos atualmente. Sendo assim, o que pode ser feito para reverter o histórico de violência das corporações, mesmo que mantida a natureza militar?

É imperativo que fortes correntes de opinião se formem e se mantenham ao longo do tempo, capazes de influenciar os legisladores, os tomadores de decisões e, sobretudo, enfrentar os poderosos lobbies das corporações profissionais.


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