25/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

O problema da sabedoria popular

Publicado em 04/11/2016 12:00 - Rodrigo Amém

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Antigamente, havia um romantismo a respeito da figura do louco. Ninguém mexia com maluco, ninguém tentava prender ou sedar maluco. Eles viviam livres e as pessoas os tratavam com uma certa deferência. Era quase como se fosse criaturas místicas. Algumas pessoas ouviam os loucos como se os deuses se manifestassem através de suas ladainhas sem sentido. Hoje, não é mais assim. Louco é doente. Camisa de força, manicômio. Mas a humanidade não abre mão de seu misticismo assim, de primeira. Era preciso eleger um novo arauto dos deuses. Em tempos de iluminismo, de revoluções tecnológicas e descobertas científicas, a sociedade acabou atribuindo esse papel ao povo. Surgiu a famosa "sabedoria popular" e afirmações como "a voz do povo é a voz de Deus".

E as pérolas dessa sabedoria agora são passadas de pai para filho sem muito escrutínio ou reflexão. E, na maior parte das vezes, são conselhos inócuos, ainda que redondamente equivocados. Só por diversão, vamos considerar algumas dessas máximas populares:

Um raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar.

Claro que cai. Na verdade, é quase inevitável. Pode levar menos de dez minutos em uma mesma tempestade ou milhares de anos. Mas, se um raio caiu alí, tudo indica que vai ocorrer de novo. O raio não muda em nada a carga elétrica do local ou da tempestade. Pergunte a Roy Cleveland Sullivan. Bem, não pergunte (ele morreu em 1983). Mas o fato é que este guarda florestal americano foi atingido por raios sete vezes entre 1942 e 1977. E sobreviveu!

Quer chegar a algum lugar? Mire na Lua. Quando você menos esperar, estará entre as estrelas.

Bem, vamos começar com a astronomia da questão. A distância da terra até a lua é de, aproximadamente, 390 mil km. A estrela mais próxima do nosso planetinha é (adivinha?) o Sol:149.600.000 km. Ou seja, se você mirou a lua e chegou no Sol, seu GPS está seriamente desregulado e você está (literalmente) frito.

Você também pode perfeitamente acabar à deriva no meio do frio vácuo espacial. Ser consumido pelas chamas numa reentrada atmosférica. Mesmo se deixarmos a imprecisão científica da analogia de lado, é difícil concordar com a recomendação de que ambição e sucesso são inseparáveis. E em termos de planejamento, é mais prudente mirar naquilo que você realmente quer atingir. Quer chegar à Lua? Mire na Lua. Quer chegar nas estrelas? O caminho é outro. Prepare-se objetivamente para conquistar suas metas e terá mais chances de sucesso.

Isso tem uma chance em um milhão de dar certo

Uma chance em um milhão é uma ótima probabilidade. Sabe qual a chance de um pedaço de avião cair na sua cabeça no meio da rua? 1 em 10 milhões. De ser atingido por um raio? 1 em 670 mil. E olha o que aconteceu com o Roy Sullivan!

Um milhão parece um número grande para quem ganha salário mínimo, mas no campo das probabilidades, não é algo tão gigantesco assim. Um evento que acontece a cada milhão de segundos se repete a cada duas semanas. Se alguém disser que você "é um em um milhão", não se impressione com a cantada barata. É o mesmo que dizer que existem seis mil pessoas no mundo exatamente como você. Seria possível repopular todo o município de Corguinho só com os seus sósias.

Sonhe como se você fosse viver para sempre. Viva como se fosse morrer amanhã.

Ninguém vive para sempre. Então, sonhar com a vida eterna é perda de tempo que, já estabelecemos, não é um recurso renovável. Viver como se fosse morrer amanhã é extremamente insustentável. Ou você passará a maior parte do tempo de ressaca, no cheque especial ou vai acabar concretizando sua morte prematura e confirmando a máxima. Frase essa que, aliás, é atribuída a James Dean. O galã que morreu ao volante de um carro esporte em alta velocidade aos 24 anos de idade, antes de receber a primeira indicação póstuma ao Oscar de melhor ator. Aposto que ele teria preferido comparecer à cerimônia. Dean era quase uma criatura mística, conhecido e reverenciado em todo mundo. Nem por isso era um exemplo a ser seguido. Assim como a sabedoria popular.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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