20/04/2024 - Edição 540

Especial

A vitória do inconformismo

Publicado em 03/11/2016 12:00 -

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A crise política que se estende desde 2013 com o espocar de inúmeros escândalos de corrupção envolvendo praticamente todos os partidos do cenário nacional foi responsável também por fazer desta eleição a mais rejeitada pelo eleitor brasileiro desde a redemocratização.

O chamado "não voto" (abstenções, brancos e nulos) somou 32,5% do eleitorado no segundo turno. Foi o mais alto índice de votos de protesto nas disputas municipais. Somente as abstenções, que na primeira rodada eleitoral deste ano havia atingido 17,58%, saltou para 21,55% no pleito encerrado no domingo passado (30).

O resultado impõe, na avaliação de cientistas político, a necessidade de o País debater uma reforma política com redução de partidos, mais tempo de campanha e maior engajamento da sociedade na definição de programas eleitorais.

"O resultado dessa eleição é um sinal amarelo que se acende para todas as forças políticas. Tanto para a esquerda, que foi rechaçada, quanto para os liberais ou conservadores, que venceram mas não receberam um cheque em branco", avalia o professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP) William Nozaki.

Ele sugere que o alto desinteresse confirma a rejeição ao sistema eleitoral. “A crise de representação se consolida nesta eleição, porque o eleitor escolheu não participar do processo eleitoral”, afirma.

Já o cientista político Rafael Araújo, professor da PUC-SP e da FESP-SP, avalia que a alta pulverização partidária, com o crescimento de legendas como o PRB (de 85 para 105 prefeituras, computando o Rio de Janeiro) e o PHS (de 16 para 37, incluindo Belo Horizonte), demonstra que a população confirma a crise política "como um problema e não reconhece no voto uma solução".

"A classe política precisa criar novos vínculos com a população", pondera Araújo. Segundo ele, os eleitores precisam entender que votar não pode ser apenas uma obrigação. "A população precisa amadurecer e entender como funciona a burocracia e o processo jurídico de Estado", ressalta "Nesta eleição, ela se isentou e disse: 'preciso que alguém tome conta de mim’."

Os resultados reforçam a mensagem de descontentamento da população com seus governantes, em quem perderam a confiança. Três anos depois das manifestações de 2013, quando se intensificou a insatisfação política no país, o discurso do "não me representa" parece ter se traduzido pelas urnas.

"Quando quase 30% da população não vota [somando brancos, nulos e abstenções], chega-se a um patamar grave", diz o cientista político Marco Antonio Carvalho Teixeira, professor da FGV/EAESP.

Em sua avaliação, exige-se de vencedores e derrotados uma "reflexão profunda".

"Senão, vamos passar a ter governos eleitos em nome de parcela pequena da sociedade. A democracia depende da legitimidade. Se as pessoas se recusam a participar, o processo fica enfraquecido”, argumenta Teixeira.

Distanciamento

Para Nozaki, a crise de representação que ceifou o mandato de Dilma alterou a lógica do "não voto", antes restrito a setores da classe média de centros urbanos. A dissidência eleitoral ganha terreno, agora, na periferia e no interior do País, escancarando a falta de representatividade. “Os partidos têm de reinventar programas e canais de diálogo com a sociedade”, sugere.

Não à toa, a rejeição aos candidatos foi bastante expressiva entre os cariocas. No Rio de Janeiro, 46,93% do eleitorado optou pela abstenção, branco ou nulo. O senador Marcelo Crivella (PRB) foi eleito com 1,7 milhão de votos, contra mais de 2 milhões de abstenções, brancos e nulos.

Em Porto Alegre, o ‘não voto’ ganhou até jingle, o “Anula Lá”. A paródia sobre a música de campanha presidencial de Lula em 1989, que recebeu apoio do PT e do PSOL, foi um dos fatores que levaram a capital gaúcha a registrar 44,29% de abstenções, brancos e nulos.

Nelson Marchezan Júnior (PSDB) foi eleito com 60,5% dos votos no domingo, mas 383.751 eleitores (44,29% do total) optaram pelo 'não voto'. Enquanto Alexandre Kalil (PHS) foi eleito com uma diferença inferior a 114 mil votos.

Em São Paulo, o prefeito eleito João Doria (PSDB) venceu no primeiro turno. O tucano, porém, obteve 11.117 votos a menos que o total de abstenções, brancos e nulos.

Araújo interpreta os números como resultado de dois movimentos: a despolitização facilitada pelo discurso anticorrupção e a minirreforma eleitoral tocada pelo ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB).

Especialista na relação entre mídia e política, o professor da PUC aponta que a construção de um discurso segundo o qual o período do PT no comando o País foi o mais corrupto tem impacto nos índices tão elevados de rejeição ao modelo político. “É complexo para o eleitor compreender que ter mais apuração policial não é o mesmo que ter mais corrupção. Mas foi isso que levou a população à rua para tirar foto com a polícia e depois se recursar a participar da eleição”, diz Araújo.

Já a redução do tempo de campanha de 90 para 45 dias, após a minirreforma de Cunha, favoreceu a rejeição aos candidatos ao reduzir o tempo de debate e apresentação de propostas, avalia Araújo. “A reforma pode ter sido feita como um cálculo para manter as pessoas afastadas de um envolvimento com o processo eleitoral”, afirma.

Nozaki também credita à minirreforma parte da esvaziada participação do eleitorado. “O clima já estava marcado por certa aversão ao processo eleitoral e o tempo curto (de campanha) contribuiu para jogar água no moinho da despolitização”, diz.

Outros fatores

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Gilmar Mendes, afirmou que os altos índices de abstenção e de votos nulos registrados representam uma “espécie de distanciamento entre o eleitor e os políticos”.

“Percebe-se que alguma coisa ocorre no que diz respeito a esse estranhamento ou a esse distanciamento entre o eleitor e os políticos que eventualmente o representam. Alguma coisa traduz a ausência ou também na opção pelo voto nulo, especialmente no segundo turno”, disse o ministro.

Mendes ponderou que não se deve supervalorizar o número de ausentes, já que “impropriedades” podem ser encontradas na contagem dos eleitores. “Onde tem biometria, temos índice menor de abstenção. Pessoas que mudam de cidade sem mudar o domicílio eleitoral, isso acaba contaminando os dados”, afirmou.

De acordo com o ministro, o cadastro da Justiça Eleitoral não exclui eleitores que faleceram desde maio deste ano. “Não está atualizado”, explicou Mendes.

Para o presidente do TSE, é equivocada a avaliação de que o elevado índice de abstenções se deve ao fato de o voto ser obrigatório. “Não há dificuldade para se fazer justificativa. A multa que se aplica é quase simbólica, está em R$ 3”, afirmou.

Para ele, tornar o voto facultativo no país seria como “checar se tem gasolina no tanque acendendo o fósforo”. O ministro usou como exemplo o Chile, onde o voto deixou de ser obrigatório e que registrou elevadas taxas de abstenção nas últimas eleições.

Uma leitura bem à esquerda

Camila Jourdan, doutora em Filosofia e professora na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) faz uma análise da descrença que leva ao voto nulo sob a ótica do anarquismo. Ela estava entre os 23 ativistas presos às vésperas da final da Copa do Mundo de 2014, no curso das tentativas de criminalização das Jornadas de Junho. Acusada por possíveis futuros atentados que nunca aconteceram, com base em um inquérito que também incriminava o filósofo russo Mikhail Bakunin (1814-1876), Camila considera que mais importante do que os movimentos que pregam o voto nulo são aqueles que incentivam as pessoas a lutar e a se organizar.

“Os anarquistas defendem o “não voto’ ou o voto nulo como ação política refletida, é uma consideração sobre a impossibilidade da via institucional trazer as mudanças que buscamos e, ao mesmo tempo, sobre o equívoco envolvido no peso que se coloca nesta disputa. Porque a eleição canaliza as vias de ações políticas concretas e faz parecer que a participação política democrática se resume a votar. Esta canalização é extremamente nociva”, afirma.

Jourdan reforma seu argumento apontando o processo político das últimas décadas no país, quando chegada de um partido de esquerda ao poder não fortaleceu a esquerda, mas a fez recuar nos espaços de luta concreta e organização. “Foi isso que ocorreu com o MST, por exemplo, que recuou a luta no campo com o PT ocupando a presidência. Foi isso que ocorreu também recentemente com as greves da educação em 2016, que foram entregues para que os partidos que aparelham os sindicatos pudessem se dedicar melhor à campanha eleitoral. E estou dizendo isso para citar dois exemplos apenas”.

Para a filósofa, o que ocorre nas eleições é uma inversão dos meios pelos fins, ganhar a disputa se torna um fim em si, e, com isso, se perde aquilo que é de fato importante. “Para alcançar o poder, pela disputa, o partido, o candidato de esquerda, se transforma naquilo mesmo que pretendia combater, não por um problema de princípios particularmente deste ou daquele, mas uma questão estrutural. O PSOL de hoje é o PT de amanhã. E esta história eleitoral se repetirá assim indefinidamente”, afirma.

Segundo a análise de Jourdan, há uma impossibilidade intrínseca na relação entre os objetivos da esquerda e o jogo da política partidária. “Os partidos canalizam um nicho de mercado, eleição é mercado, é sociedade de consumo dominando a atuação política e tornando-a controlável, vendível. Vence quem é vendível, e o que é vendível já está dentro da lógica dominante. O discurso eleitoral tem que ser um discurso de apaziguamento de classes porque se trata de ganhar a opinião pública, com todo o senso comum manipulado pelo discurso dominante. Eleição não é formadora, não é educativa, não é ‘trabalho de base’, o político não educa o eleitorado, ele quer ganhá-lo com todos os seus preconceitos, quer convencê-lo, quer se vender como um produto no mercado. Para isso, ele vai necessariamente recuar. O medo de perder voto faz com que os candidatos sejam nivelados com poucas diferenças, o que difere é só uma imagem superficial, jamais a prática concreta que é determinada por outros fatores. O próprio discurso vai sendo esvaziado, até que os todos os candidatos se parecem, porque eles querem agradar ao mesmo público. Devem, portanto, parecer inócuos e, acima de tudo, para governar, precisam fazer alianças e responder aos que realmente controlam as instituições, não ao povo”.

Reforma

O presidente da República, Michel Temer, afirmou que o alto índice de abstenção foi um recado da população à classe política.

"Não se pode relativizar [a decepção da população] com o partido A ou B. É uma mensagem que se dá à classe política brasileira para que ela reformule costumes inadequados. Vejam o candidato em São Paulo que se elegeu no primeiro turno e falava que era gestor, não político", disse Temer, se referindo ao novo prefeito eleito da capital paulista, João Doria (PSDB).

Temer disse ainda que os números de votos em branco, nulos e de abstenções tornam a reforma política "indispensável" no país.

O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), concorda. Ele avisou que a Casa vai começar a votar a primeira etapa de uma nova proposta de reforma política na próxima terça-feira (8).

Renan e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), tem se reunido com os líderes partidários das duas casas legislativas para identificar pontos das diversas propostas de reforma política em tramitação no Legislativo que são consensuais entre deputados e senadores para priorizá-los.

“Depois da sinalização da sociedade, nós não temos como não fazer uma reforma política profunda, que mude verdadeiramente o sistema político e eleitoral, sob pena de a política se desgastar cada vez mais. A ideia é votarmos a primeira etapa da reforma – o fim da coligação proporcional e a cláusula de barreira – e combinarmos a partir de amanhã as outras medidas que serão votadas”, afirmou o peemedebista.

Na pauta do Senado, tramita uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), de autoria dos senadores Ricardo Ferraço (PSDB-ES) e Aécio Neves (PSDB-MG), que prevê o fim das coligações proporcionais para eleições na Câmara dos Deputados e a criação de cláusulas de desempenho para que partidos políticos tenham funcionamento parlamentar no Congresso.

Para o senador Agripino Maia (DEM-RN), a reunião desta quarta é importante para medir a “disposição” dos parlamentares em aprovar mudanças no sistema político-eleitoral. “Não adianta você aprovar uma reforma política no Senado e não haver disposição de deputados para discutir a proposta. Por exemplo, o fim das coligações proporcionais dificilmente será aprovado na Câmara”, ressaltou.

As coligações proporcionais permitem que candidatos se elejam deputados com as sobras dos votos de concorrentes de partidos diferentes, mas unidos na disputa.

Para o líder do PT no Senado, Humberto Costa, se aprovado, o fim das coligações proporcionais vai fortalecer os partidos. “Com o fim das coligações, o voto vai ser dar por partido. As pessoas vão escolher os seus candidatos, mas o voto passa a ser um voto partidário. Você não vai mais votar em um candidato e eleger um candidato de outro partido”, argumentou o petista.

Cláusula de barreira

A PEC da reforma política em tramitação no Senado prevê que um partido que não atingir resultados eleitorais mínimos perderá o funcionamento parlamentar.

Isso significa, por exemplo, que a legenda seria obrigada a ter uma estrutura menor na Câmara, sem direito a cargos de liderança, deputados em comissões permanentes e cargos na Mesa Diretora. Além disso, os partidos perderiam direito ao fundo partidário e ao tempo gratuito de televisão e rádio

Os requisitos que a PEC exige dos partidos a partir da eleição de 2018 são:

– obter pelo menos 2% dos votos válidos para deputado federal em todo o país

– conseguir 2% dos votos para deputado federal em, no mínimo, 14 unidades da federação

Hoje, das 27 legendas que existem atualmente na Câmara, apenas 13 passariam incólumes com a cláusula de barreira. Entre as que teriam atividade restringida estão PC do B, Rede, PSOL e PPS e PROS.

A PEC prevê ainda que, a partir das eleições de 2022, a taxa mínima de votos apurados nacionalmente seja de 3%. Com isso, PSC e SD também entrariam na lista dos que ficariam sem funcionamento parlamentar.

Um dos autores da PEC, Aécio Neves explicou que a proposta prevê a possibilidade da criação de federações partidárias como uma saída para as siglas que não atenderem aos requisitos mínimos de desempenho eleitoral.

Na federação partidária, partidos com semelhanças ideológicas podem se unir e funcionar no Congresso como um bloco. Ou seja, as siglas se juntam, elegem um líder, e assumem as mesmas posições com relações a projetos em avaliação das Casas legislativas. Pela proposta, a federação partidária deverá permanecer pelos quatro anos da legislatura.

“A nossa ideia é que a federação de partidos funcione temporariamente. Nas próximas eleições, aqueles partidos que não alcancem um quociente mínimo de votos possam funcionar em aliança, a partir de uma federação de partidos com os quais tenham uma afinidade programática e ideológica”, explicou o tucano.


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