23/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Invasões Bárbaras

Publicado em 14/10/2016 12:00 - Rodrigo Amém

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Se eu tivesse que resumir todo o meu mimimi nesta coluna nos últimos anos, acho que a essência seria esta: a sociedade se desenvolveu rápido demais e nosso cérebro primata não evoluiu na mesma velocidade. Essa premissa justifica uma parte considerável dos conflitos do homem contemporâneo.

Passamos a maior parte da nossa existência neste planeta organizados em pequenas tribos, formadas quase que essencialmente por gente da nossa família, compartilhando os nossos valores e cultura. Quando outros humanos apareciam, não era boa coisa.

Desenvolvemos essa fobia evolucionária ao "outro" e tudo aquilo que eles representam. Mas alguém inventou a agricultura, e logo foi preciso negociar parte da sua lavoura com outras tribos. E outro fulano inventou o arco e flecha e pactos de cooperação militar precisaram ser estabelecidos. As tribos acabaram crescendo e se misturando. Viraram cidades, estados e nações. Mas a mente humana continua presa no vilarejo pré-histórico.

E parte das manifestações religiosas explora esse hiato entre civilização e evolução biológica. Seus teólogos falam em "povo escolhido". Falam em música "do mundo". Falam de "Nós, os salvos". Os governos também investem nesse discurso de desconfiança, prontamente maquiado de patriotismo. Não há discussão política, nos dias de hoje, que não nasça da crítica à posição alheia.

A sociedade se desenvolveu rápido demais e nosso cérebro primata não evoluiu na mesma velocidade.

O império romano, já em franca decadência, inventou um nome para esse conflito Estado x Tribos: invasões bárbaras. Para Júlio César e companhia, bárbaro era todo mundo que não era romano. E, se não era romano, era selvagem. E, selvagem em território romano, estava invadindo. Ainda que fosse uma tentativa de reconquista de um território tomado por Roma, o império contra-atacaria e muito sangue era derramado. Essa estratégia de marketing fez tanto sucesso que ainda hoje falamos nas "barbaridades" cometidas pelos "outros".

Em idos de 2002, ventos otimistas da globalização ainda sopravam nas salas de cinema ao redor do mundo. O filme Invasões Bárbaras, de Denys Arcand dava sequência ao filme O Declínio do Império Americano. A história de um professor universitário que descobre um câncer e tenta fazer as pazes com sua família antes da morte. A temática é o ressentimento em relação à cultura global em detrimento aos valores da família tradicional. Mas os bárbaros eram os tradicionalistas que ousavam questionar a união planetária e o fim das fronteiras.

Quase quinze anos mais tarde, o otimismo com o fim das fronteiras não é o mesmo. O candidato republicano ao governo dos EUA, muito pelo contrário, fez da construção de muros e do preconceito a sua plataforma de governo. No Brasil e na Europa, a extrema direita ganham força a cada eleição prometendo o fim da diversidade cultural. Garantindo o retorno a uma impossível comunidade tribalista onde o "outro" não tem direitos.

Se eu pudesse usar uma segunda frase para condensar meu mimimi nos últimos anos, seria essa: a ignorância faz da História uma gigantesca roda de hamster. Quer saber o que vem pela frente? Olhe para trás.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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