29/03/2024 - Edição 540

Especial

PEC 241

Publicado em 14/10/2016 12:00 -

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A Câmara dos Deputados passou em primeira votação, no último dia 10, a proposta de emenda constitucional que cria uma teto para os gastos públicos, a PEC 241, que congela as despesas do Governo Federal, com cifras corrigidas pela inflação, por até 20 anos. Após um banquete oferecido a deputados pelo presidente na véspera, 366 votaram a favor da chamada PEC 241, 58 acima do necessário.

Aniversariante de outubro, a Constituição de 1988 faz do Brasil um Estado de bem-estar social. Saúde gratuita para todos, educação pública como um dever dos governantes, assistência social aos necessitados. Uma realidade longe de ser alcançada e que, em uma primeira votação, os deputados acabam de deixar vinte anos mais distante.

Para tornar o texto mais palatável aos parlamentares, receosos da impopularidade da medida, o relator, Darcício Perondi (PMDB-RS), havia feito uma alteração: no caso específico de saúde e educação, o congelamento começará só em 2018, último ano de mandato de Michel Temer. Com isso, espera-se que a população não sinta muito os efeitos em escolas e hospitais a tempo de punir seus representantes nas urnas na eleição de 2018. A propósito: na campanha de 2014, Temer doou 50 mil reais à candidatura de Perondi.

Para ser aprovada de vez na Câmara, a medida ainda precisa passar por uma segunda votação, o que deve ocorrer nos próximos dias. Depois segue para o Senado, onde também será submetida a duas apreciações em plenário. O governo espera liquidar todo esse processo ainda neste ano.

O que eles pretendem com a PEC?

Com as contas no vermelho, o presidente Michel Temer vê na medida, considerada umas das maiores mudanças fiscais em décadas, uma saída para sinalizar a contenção do rombo nas contas públicas e tentar superar a crise econômica. O mecanismo enfrenta severas críticas da nova oposição, liderada pelo PT, pelo PSOL e pelo PCdoB, mas também de especialistas, que veem na fórmula um freio no investimento em saúde e educação previstos na Constituição.

A PEC tem como objetivo frear a trajetória de crescimento dos gastos públicos e tenta equilibrar as contas públicas. A ideia é fixar por até 20 anos, podendo ser revisado depois dos primeiros dez anos, um limite para as despesas: será o gasto realizado no ano anterior corrigido pela inflação (na prática, em termos reais – na comparação do que o dinheiro é capaz de comprar em dado momento – fica praticamente congelado). Se entrar em vigor em 2017, portanto, o Orçamento disponível para gastos será o mesmo de 2016, acrescido da inflação daquele ano. A medida irá valer para os três Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário.

O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, diz que "não há possibilidade de prosseguir economicamente no Brasil gastando muito mais do que a sociedade pode pagar. Este não é um plano meramente fiscal." Para a equipe econômica, mesmo sem atacar frontalmente outros problemas crônicos das contas, como a Previdência, o mecanismo vai ajudar "a recuperar a confiança do mercado, a gerar emprego e renda" ao mesmo tempo em que conterá os gastos públicos, que estão crescendo ano a ano, sem serem acompanhados pela arrecadação de impostos. Para uma parte dos especialistas, pela primeira vez o Governo está atacando os gastos, e não apenas pensando em aumentar as receitas. O Governo Temer não cogita, no momento, lançar mão de outras estratégias, como aumento de impostos ou mesmo uma reforma tributária, para ajudar a sanar o problema do aumento de gasto público no tempo.

Em nota técnica divulgada em 7 de outubro o órgão máximo do Ministério Público Federal afirmou que a PEC é inconstitucional. De acordo com o documento, "as alterações por ela pretendidas são flagrantemente inconstitucionais, por ofenderem a independência e a autonomia dos Poderes Legislativo e Judiciário e por ofenderem a autonomia do Ministério Público e demais instituições constitucionais do Sistema de Justiça […] e, por consequência, o princípio constitucional da separação dos poderes, o que justifica seu arquivamento".

A crítica vem pela criação de regras de gastos para os demais Poderes. Na nota, a procuradoria argumenta que, caso aprovada, a PEC irá prejudicar a “atuação estatal no combate às demandas de que necessita a sociedade, entre as quais: o combate à corrupção; o combate ao crime; a atuação na tutela coletiva; e a defesa do interesse público". A Secretaria de Comunicação Social da Presidência rebateu a PGR, afirmando que na proposta não existe “qualquer tratamento discriminatório que possa configurar violação ao princípio da separação dos poderes".

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), reconheceu que a PEC provocará perdas para áreas da administração pública. "Há risco de setores mais vulneráveis e menos representados politicamente perderem a disputa por recursos escassos. Porém, está não é uma questão constitucional, mas política", afirmou.

Reforma capenga

Do ponto de vista de atacar o problema do aumento anual dos gastos públicos, uma das principais críticas é que uma conta importante ficou de fora do pacote de congelamento: os gastos com a Previdência. É um segmento que abocanha mais de 40% dos gastos públicos obrigatórios. Logo, a PEC colocaria freios em pouco mais de 50% do Orçamento, enquanto que o restante ficaria fora dos limites impostos – só a regra sobre o salário mínimo tem consequências na questão da Previdência. A Fazenda afirmou, de todo modo, que a questão da Previdência será tratada de forma separada mais à frente. "Se não aprovar mudanças na Previdência, um gasto que cresce acima da inflação todos os anos, vai ter de cortar de outras áreas, como saúde e educação", diz Márcio Holland, ex-secretário de política econômica da Fazenda. "Nesse sentido, a PEC deixa para a sociedade, por meio do Congresso, escolher com o que quer gastar", complementa.

Outros especialistas dizem que, na prática, o texto determina uma diminuição de investimento em áreas como saúde e educação, para as quais há regras constitucionais. Os críticos argumentam que, na melhor das hipóteses, o teto cria um horizonte de tempo grande demais (ao menos dez anos) para tomar decisões sobre toda a forma de gasto do Estado brasileiro, ainda mais para um Governo que chegou ao poder sem ratificação de seu programa nas urnas. Eles dizem ainda que, mesmo que a economia volte a crescer, o Estado já vai ter decidido congelar a aplicação de recursos em setores considerados críticos e que já não atendem a população como deveriam e muito menos no nível dos países desenvolvidos. Se a economia crescer, e o teto seguir corrigido apenas de acordo com a inflação, na prática, montante investido nestas áreas vai ser menor em termos de porcentagem do PIB (toda a riqueza produzida pelo país). O investimento em educação pública é tido como um dos motores para diminuir a desigualdade brasileira.

Impacto sobre os mais pobres

Os críticos afirmam que a PEC irá colocar limites em gastos que historicamente crescem todos os anos em um ritmo acima da inflação, como educação e saúde. Além disso, gastos com programas sociais também podem ser afetados pelo congelamento. Segundo especialistas e entidades setoriais, esta medida prejudicaria o alcance e a qualidade dos serviços públicos oferecidos. Especialistas apontam problemas para cumprir mecanismos já em vigor, como os investimentos do Plano Nacional de Educação (PNE). Aprovado em 2014, o PNE tem metas de universalização da educação e cria um plano de carreira para professores da rede pública, uma das categorias mais mal pagas do país.

"A população brasileira está envelhecendo. Deixar de investir na educação nos patamares necessários, como identificados no PNE, nos vinte anos de vigência da emenda proposta – tempo de dois PNEs -, é condenar as gerações que serão a população economicamente ativa daqui vinte anos, a terem uma baixa qualificação", disse o consultor legislativo da Câmara dos Deputados, Paulo Sena, ao site Anped, que reúne especialistas em educação.

Já o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, afirmou que mais importante do que o valor despendido com áreas como saúde, educação e segurança, é a qualidade desses gastos. "Dados da educação e da saúde hoje mostram que a alocação de recursos não é o problema. É preciso melhorar a qualidade do serviço prestado à população", disse. "Teremos muito trabalho. O principal deles será o de mostrar que a saúde e educação não terão cortes, como a oposição tenta fazer a população acreditar", afirmou a líder do Governo no Congresso, a senadora Rose de Freitas (PMDB-ES).

Golpe na Saúde e na Educação

Saúde e educação, segundo pesquisas, são duas das áreas mais problemáticas e demandadas pela população. No fim de 2015, o Ibope pesquisou as prioridades dos brasileiros para 2016. A saúde liderava o ranking. Melhorar a qualidade da educação vinha em quinto. Os dois setores precisariam, portanto, de mais dinheiro, com reajustes de verba acima da inflação.

O orçamento das duas áreas é da ordem de 100 bilhões de reais por ano. Um valor atingido graças a aumentos reais. Em 2002, a saúde tinha cerca de 55 bilhões anuais e a educação, perto de 30 bilhões de reais. Nesse mesmo período, o País ganhou 30 milhões de habitantes e atingiu uma população de 200 milhões.

Dois pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, a farmacêutica Fabiola Sulpino Vieira e o economista Rodrigo Pucci Sá e Benevides, ambos especialistas em saúde coletiva, fizeram as contas e concluíram: o gasto público per capita com saúde no Brasil é um dos menores entre países que possuem sistema universal do tipo SUS e mesmo em uma comparação com vizinhos sem modelo semelhante.

Em 2013, o setor público brasileiro investiu 591 dólares por habitante. O Reino Unido, inspiração do SUS, 2,7 mil dólares e a França, outra nação com sistema universal, 3,3 mil. Argentina e Chile, onde não há direito universal à saúde, aplicaram 1,1 mil e 795 dólares, respectivamente.

Segundo uma nota divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no fim de setembro, a perda acumulada em 20 anos para a saúde seria de 654 bilhões de reais, em um cenário de crescimento do PIB de 2% ao ano. De acordo com uma projeção realizada por consultores legislativos da Câmara, a perda acumulada até 2025 seria de 331 bilhões de reais.

José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde do governo Lula, afirma que a PEC é uma "condenação de morte" para milhares de brasileiros. “Estamos falando de fechamento de leitos hospitalares, de encerramento de serviços de saúde, de demissões de profissionais, de redução do acesso, de aumento da demora no atendimento.”

Temporão lembra ainda que apenas 48% das despesas totais com saúde são públicas, enquanto o restante corresponde a gastos do setor privado. “No Brasil, o governo gasta pouco e o ônus do financiamento recai sobre as famílias. A PEC 241 só agrava essa situação. Para ter um parâmetro de comparação, na Inglaterra, que também tem um sistema de saúde universal, 85% do gasto total é público.”

Educação em baixa

O avanço da educação no século XXI, escasso para as necessidades dos brasileiros e da economia, não se repetirá, com o congelamento de verba. As matrículas em universidades pularam de 3 milhões para 7 milhões entre 2001 e 2013, embaladas pela criação instituições federais (18) e de bolsas (Prouni).

No ensino profissional, as inscrições em estabelecimentos federais subiram de 315 mil em 2001 para 784 mil em 2014. O orçamento da rede de escolas técnicas saltou de 850 milhões de reais em 2003 para 10 bilhões em 2015, descontada a inflação. Dados, todos, do Ministério da Educação.

No fim de 2015, um consultor do Senado, o doutor em economia Marcos Mendes, analisou o orçamento federal da educação nos dez anos entre 2004 e 2014. Concluiu que a área “foi bastante privilegiada”, a despontar como campeã de alta de investimento quando se olha o valor direcionado a ela no total das receitas do governo, “um saldo nada desprezível de 130%”. Se o congelamento já existisse, a expansão teria sido à metade, estima o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, o Diap.

Consultores da Câmara estimaram em agosto que a área perderá 45 bilhões de reais até 2025 com o limite do aumento de gastos. Para o filósofo Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação do governo Dilma, a proposta inviabiliza o cumprimento da meta de universalizar o atendimento das crianças e adolescentes até 2020, como prevê o Plano Nacional de Educação.

“Com a manutenção dos gastos no atual nível, como propõe a PEC 241, não será possível nem sequer incluir todos os brasileiros com 4 a 17 anos na escola, muito menos com professores competentes e bem formados. O investimento seria insuficiente. ”

Qual o impacto da PEC no salário mínimo?

A proposta também inclui um mecanismo que pode levar ao congelamento do valor do salário mínimo, que seria reajustado apenas segundo a inflação. O texto prevê que, se o Estado não cumprir o teto de gastos da PEC, fica vetado a dar aumento acima da inflação com impacto nas despesas obrigatórias. Como o salário mínimo está vinculado atualmente a benefícios da Previdência, o aumento real ficaria proibido.

O Governo tem dito que na prática nada deve mudar até 2019, data formal em que fica valendo a regra atual para o cálculo deste valor, soma a inflação à variação (percentual de crescimento real) do PIB de dois anos antes. A regra em vigor possibilitou aumento real (acima da inflação), um fator que ajudou a reduzir o nível de desigualdade dos últimos anos.

A população mais pobre, que depende do sistema público de saúde e educação, tende a ser mais prejudicada com o congelamento dos gastos do Governo do que as classes mais abastadas. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), por exemplo, divulgou carta aberta criticando a PEC. No documento a entidade afirma que a proposta pode sucatear o Sistema Único de Saúde (SUS), utilizado principalmente pela população de baixa renda que não dispõe de plano de saúde.

Além disso, de acordo com o texto da proposta, o reajuste do salário mínimo só poderá ser feito com base na inflação – e não pela fórmula antiga que somava a inflação ao percentual de crescimento do PIB. Isso atingirá diretamente o bolso de quem tem o seu ganho atrelado ao mínimo.

Desastre na Ciência

A aprovação da PEC será “desastrosa” para o desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil, segundo o presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Luiz Davidovich. Pesquisadores temem que o resultado seja um congelamento do orçamento dedicado hoje ao setor, considerado extremamente baixo.

“Se continuarmos na situação atual por mais 20 anos será mortal; vamos voltar ao status de colônia extrativista”, disse Davidovich. “Na verdade, não digo nem 20 anos. Se for cinco, já será extremamente complicado.”

O orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (hoje chamado MCTIC, após fusão com a pasta das Comunicações) encolheu consideravelmente nos últimos anos. Em valores corrigidos pela inflação, é quase 30% menor do que dez anos atrás, e aproximadamente metade do que era em 2010. “Estamos partindo de um patamar muito baixo”, diz Davidovich, físico da Universidade Federal do Rio (UFRJ). “Vamos ficar estacionados numa situação que já é muito ruim.”

“É um cenário trágico para a ciência”, diz a presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Helena Nader. Ela teme uma fuga em massa de cérebros para o exterior, caso a situação de perpetue dessa forma. “O que estamos dizendo para os nosso jovens cientistas é: se você tem condições de ir embora do Brasil, vá; porque aqui a ciência não é valorizada.”

“Vamos voltar à realidade da década de 1990, quando a única saída para ciência, tecnologia e inovação no Brasil era o aeroporto”, diz o bioquímico Jerson Lima da Silva, professor da UFRJ e diretor científico da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

Segundo ele, o sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação vinha crescendo e funcionando bem desde o início dos anos 2000, até que os investimentos começaram a encolher em 2011. “O sistema só não entrou em falência total até agora porque tem uma certa inércia”, avalia.

Flexibilidade

Segundo o MCTIC, a PEC 241 não representa um “congelamento” de investimentos, pois não impõe um limite máximo às despesas de nenhum setor em particular. Trata-se de um teto universal para todo o orçamento federal. Ou seja, o governo terá flexibilidade para distribuir recursos como achar melhor entre uma área e outra.

“Nada impede que o Poder Executivo ou o Poder Legislativo fixe despesas para a ciência acima do exercício anterior, desde que outras despesas sejam ajustadas para acomodar tal elevação ao limite total do conjunto de gastos”, afirma a pasta.

As expectativas da comunidade científica com relação a isso, porém, são pouco otimistas, já que o setor tem pouco peso político nas decisões de Brasília. “A PEC coloca uma série de incógnitas, mas dá para adivinhar o que vai acontecer”, prevê Davidovich. “A competição por recursos será muito dura.”

O orçamento do MCTIC este ano é de R$ 4,6 bilhões, dos quais cerca de R$ 500 milhões estão contingenciados (indisponíveis). O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) enviado pelo governo federal ao Congresso no início de setembro prevê um aumento da ordem de 20% nos recursos para ciência, tecnologia e inovação em 2017. Ainda assim, considerada a inflação deste ano, o valor continua sendo bem menor do que dez anos atrás.

“À medida que houver crescimento econômico, haverá crescimento do orçamento”, disse o ministro do MCTIC, Gilberto Kassab. Ele garante que o governo está sensível às preocupações dos cientistas e à necessidade de aumentar investimentos no setor. “Sem a PEC 241 a preocupação seria muito maior. Com certeza a situação será melhor.”

O PLOA 2017, segundo Kassab, já foi planejado prevendo a aprovação da PEC. “Iniciamos uma recuperação que pretendemos seja gradual e perene da verba destinada à área científica em anos anteriores. Acreditamos que esse objetivo poderá ser atingido nos próximos anos porque a PEC 241, além de controlar a crise fiscal, seguramente dará mais confiança à iniciativa privada e aos investidores”, diz a pasta.

“Você acha que o mundo vai ficar esperando o Brasil? Vamos andar 20 anos para trás”, diz Nader. Ela propõe que as áreas de Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação sejam isentas do teto imposto pela PEC, por serem estratégicas para o desenvolvimento do país.


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