29/03/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Para onde irão os médicos do Brasil?

Publicado em 04/10/2016 12:00 -

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O número de médicos crescerá em grande velocidade no Brasil – dos atuais 430 mil para 600 mil na próxima década –, resultado da abertura de dezenas de novos cursos de medicina, sobretudo privados, após a aplicação da Lei Mais Médicos, de 2013.

Embora a decisão pela multiplicação de escolas médicas não tenha sido acompanhada de um plano de garantia da qualidade dos cursos e da democratização do acesso à graduação em medicina, pode-se considerar que resta definitiva a expressiva ampliação do contingente de médicos no País. Afinal, depois de autorizado, em função dos interesses envolvidos, nenhum curso de medicina, mesmo mal avaliado, fecha as portas no Brasil.

Esforços adicionais de pesquisa serão necessários para acompanhar se o aumento global da quantidade de médicos no País irá satisfazer as demandas do sistema de saúde e as reais necessidades da população.

Um dos instrumentos, dentre outros, que podem contribuir para tal finalidade é a Demografia Médica, estudo sobre a população de médicos que conduzimos junto ao Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, em parceria com outras instituições como UFRJ e UERJ.

Na demografia médica consideramos fatores como idade, sexo, anos de formado e especialização, mas também trabalhamos com informações sobre fixação e mobilidade territorial, remuneração, vínculos, carga horária, produção, comportamentos, escolhas e práticas dos médicos.

Somam-se às políticas e à organização do sistema de saúde brasileiro, incluindo o financiamento, a formação de recursos humanos, os equipamentos, a oferta, o acesso e a utilização dos serviços, assim como as condições de saúde e de vida da população, que repercutem na disponibilidade, inserção e atuação dos médicos.

Em nossos levantamentos recentes buscamos reunir dados de diferentes instituições envolvidas nos processos de ensino, registro profissional e contratação ou financiamento dos médicos e de suas atividades, assim como vamos às fontes primárias por meio de inquéritos e surveys com médicos.

Ao analisar a participação dos médicos nos setores público e privado da saúde, a Demografia Médica acrescenta outra dimensão da distribuição de médicos, a desigualdade público-privada, para além das disparidades também ressaltadas: geográfica, de gênero, por especialidades e devido à diversidade de atuação.

A distribuição de médicos é marcada por desigualdades regionais, estaduais e entre as capitais e interiores. Por exemplo, as 39 cidades brasileiras com mais de 500 mil habitantes concentram 30% da população e 60% de todos os médicos do País.

A interiorização da graduação de medicina, para cidades e regiões onde não existem ou há poucas escolas médicas, ainda não se revelou um fator indutor da fixação de médicos nessas localidades. Os municípios do interior que abrigam cursos de medicina assistem à migração dos profissionais formados para as capitais e cidades de grande porte.

O número de médicos especialistas no Brasil, distribuídos em 53 especialidades, está aumentando após políticas de expansão dos programas e vagas de residência médica, mas as desigualdades na distribuição de especialistas no País segue o padrão da concentração geográfica de médicos em geral.

O Estado de São Paulo, por exemplo, tem mais de 80 mil médicos com títulos em especialidades, o equivalente à soma de todos os especialistas das regiões Nordeste, Centro Oeste e Norte.

Desde 2010, mais da metade dos novos médicos são mulheres, em proporção crescente que consolida tendência de feminização da profissão, ainda a ser melhor estudada. No entanto, a remuneração total das mulheres médicas é menor que a dos homens e a presença feminina varia fortemente de acordo com a especialidade, o que aponta para desigualdades de gênero na medicina.

No sistema de saúde brasileiro, o público e o privado coexistem no financiamento, na gestão, na infraestrutura e nos recursos humanos. E, de acordo com escolhas pessoais, condições de trabalho ou de remuneração, os médicos movimentam-se entre a variedade de instituições, empregadores e formatos públicos e privados de prestação e recebimento por serviços.

Há diversidade e sobreposições de modalidades, formatos, locais e cenários de prática da medicina no Brasil. Não se pode simplesmente contrastar os médicos entre aqueles que estão no setor público ou privado; no consultório ou no vínculo assalariado; na atuação hospitalar, ambulatorial, em cuidados primários ou em plantões.

Isso porque, ainda que existam perfis de dedicação exclusiva, são, em sua maioria, os mesmos médicos que transitam livremente e de forma dinâmica ao longo da carreira nessas múltiplas possibilidades de exercício profissional.

São características da profissão médica no Brasil a multiplicidade de vínculos de trabalho (quase metade dos médicos tem três ou mais empregos), as longas jornadas (dois terços trabalham mais de 40 horas semanais), a realização de plantões (45% atuam em pelo menos um por semana) e os rendimentos mais elevados, se comparados a outras profissões.

Mesmo assim, constata-se que cerca da metade dos médicos brasileiros atua tanto no setor público quanto no setor privado. Aproximadamente três de cada dez profissionais trabalham apenas no setor privado, onde são maioria os homens, especialistas, com maior idade e com rendimentos mais elevados.

Com a tendência de encolhimento do SUS e de privatização do sistema de saúde brasileiro, mesmo o aumento do contingente global de médicos via abertura massiva de cursos de medicina, pode não ter o efeito esperado de levar médicos a locais e serviços públicos hoje desprovidos desses profissionais. Ao contrário, pode fazer aumentar as desigualdades no acesso da população a médicos e serviços de saúde no Brasil.

Já dois de cada dez médicos atuam exclusivamente no sistema público de saúde, onde predominam as mulheres, os mais jovens, os sem especialidade, muitos ainda cursando Residência Médica, e aqueles com rendimentos mais baixos.

A presença dos médicos nas unidades básicas de saúde e estratégia saúde da família (23% dos que atuam no setor público estão nessas estruturas, enquanto 51% trabalham em hospitais) pode não ser suficiente para a efetivação da atenção primária conforme preconizada, como porta de entrada ordenadora do sistema de saúde.

Pior ainda é a situação dos serviços de atenção ambulatorial e especializada do SUS, onde atuam menos de 5% dos médicos brasileiros, escassez que contribui para as famigeradas filas de espera em consultas, exames e cirurgias eletivas.

É praticamente a mesma a quantidade de médicos a serviço do público e do privado, tanto no grupo de dedicação exclusiva a um dos setores quanto no grupo que atua paralelamente nos dois setores.

A população coberta exclusivamente pelo SUS, no entanto, é três vezes maior do que a população que recorre à rede privada por ter plano de saúde, mas que também usa o SUS nas inúmeras exclusões praticadas e barreiras impostas pelo segmento suplementar.

A concentração de médicos a favor das estruturas privadas é fenômeno já apontado por estudos anteriores da Demografia Médica, que analisou os postos de trabalho ocupados por médicos nos estabelecimentos públicos e privados, em série histórica – 2002, 2005 e 2009 – da pesquisa Assistência Médico-Sanitária (AMS), do IBGE.

Ao analisar dados também do IBGE, da última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), concluímos que, no País, três a cada quatro brasileiros realizaram consulta médica no ano anterior à entrevista. Essa proporção foi maior entre quem tem plano de saúde (88,2%) do que entre aqueles que não têm plano (69,2%). Após análises ajustadas por sexo, idade e escolaridade, indivíduos com planos de saúde, comparados à população sem plano, tiveram, no Brasil como um todo, uma chance quase três vezes maior de consultar o médico no último ano, com diferença ainda mais expressiva nas regiões Norte e Nordeste.

A mudança desse cenário, com melhora na distribuição de médicos entre os setores público e privado, dependeria de decisões políticas capazes de gerar transformações no sistema de saúde brasileiro, hoje marcado, de um lado, pela perpetuação do subfinanciamento público, o que ameaça a sustentabilidade do SUS, e, de outro, por políticas e incentivos ao crescimento do mercado de planos e seguros de saúde e à ampliação da rede hospitalar privada.

Em meio à crise política e recessão, o novo regime fiscal pretendido na Proposta de Emenda à Constituição nº 241/2016 (PEC 241), se aprovado pelo Congresso Nacional, vai significar o congelamento por até 20 anos do piso do gasto federal com saúde, com desvinculação das despesas com ações e serviços públicos de saúde antes atreladas à receita corrente líquida. Haverá redução do gasto público per capita, pois governos estarão desobrigados da destinação de mais recursos para o SUS, mesmo em cenário futuro de crescimento econômico.

Além da retração da rede assistencial pública, com diminuição de leitos, equipamentos e atendimentos à população em Estados e municípios, percebe-se a disseminação da gestão terceirizada, que fragmenta redes locais, contrata pessoal em vínculos precários, promove a disputa predatória e a alta rotatividade de médicos, afastando a possibilidade de criação de planos de carreira atrativos para a fixação desses profissionais no SUS.

A restrição orçamentária acirrará o desmonte do SUS, ao tempo em que é formulada a proposta de planos privados “acessíveis”, um passo a mais para a segmentação da assistência e para a ampliação da medicina privada mercantil e estratificada.

Nota-se, ainda, uma “fuga” ou retorno de parte dos profissionais que trabalham em consultório (60% dos médicos brasileiros) para o exercício mais liberal da medicina, com preferência pelo atendimento de pacientes particulares que pagam diretamente pelos serviços, deixando cada vez mais de atender clientes de planos de saúde, em função das relações conflituosas com as empresas do setor suplementar.

Com a tendência de encolhimento do SUS e de privatização do sistema de saúde brasileiro como opção política em ascensão, mesmo o aumento do contingente global de médicos via abertura massiva de cursos de medicina, pode não ter o efeito esperado de levar médicos a locais e serviços públicos hoje desprovidos desses profissionais. Ao contrário, pode fazer aumentar as desigualdades no acesso da população a médicos e serviços de saúde no Brasil.

Mário Scheffer é professor do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (DMP/FM/USP) e vice-presidente da Abrasco. Coordenador da pesquisa Demografia Médica no Brasil 2015


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