29/03/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

E, na cultura do machismo, todo corpo feminino será castigado

Publicado em 04/04/2014 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Que corpo é este que tanto incomoda a ponto de um número significativo da população achar que, quando exposto, mereça ser atacado, molestado, violentado? Esse corpo, que já se insurgiu contra o controle, a violência e a opressão, realizando, ao lado da revolução tecnológica, a revolução mais importante do século XX, conforme anunciou o historiador inglês Eric Hobsbawn, aparece novamente como símbolo do pecado e, como tal, merece ser castigado, lembrando práticas perversas da Idade Média.

Mais uma vez é o corpo feminino que aparece, nos indicadores sociais, como alvo da violência machista e misógina. Inicialmente, segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), divulgada no último dia 27 de março, 65% das pessoas entrevistadas acreditam que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas" e, para 58,5%,  "se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros". Nesta sexta-feira, 4, depois de mulheres e homens abraçarem nas redes sociais uma campanha impactante contra a violência sexual, o IPEA disse que errou e que o percentual correto da pesquisa apontaria que 26% concordam, total ou parcialmente, que roupa curta justifica ataque a mulher. Um percentual também significativo.

Com esse resultado, fica evidente que a nossa sociedade está impregnada da cultura machista. Ao permitir o ataque contra as mulheres, aceita o estupro, crime considerado hediondo pela legislação brasileira, e ainda atribui às vítimas a responsabilidade pelo abuso sofrido. E a justificativa para a aceitação do crime é feita com argumentos bizarros, como se o comprimento da roupa fosse uma senha, um convite, uma autorização para que o outro pudesse praticar a violência sexual. É assim que se produz, reproduz e fortalece a cultura do estupro, absolvendo o estuprador, responsabilizando as vítimas e tirando da mulher a liberdade e a autonomia sobre o seu corpo – autonomia e liberdade que não é negada ao homem, o qual pode transitar livremente com seu dorso, pernas, peitos e costas nus pela cidade, sem ser molestado.

A cultura do estupro é filha da cultura machista que perpetua a dominação masculina, a relação assimétrica de poder entre homens e mulheres.

Isso legitima os dados da 7ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, da Secretaria de Segurança Pública, do Ministério da Justiça: em 2012, foram 50.617 casos de estupro no Brasil, um aumento de 18,17% em relação a 2011. O número de estupros registrados foi maior que o de homicídios dolosos (quando há intenção de matar).

A cultura do estupro é filha da cultura machista que perpetua a dominação masculina, a relação assimétrica de poder entre homens e mulheres. Essa mentalidade é engendrada e reproduzida por diferentes instituições e é inculcada por instrumentos de poder e biopoder, fazendo com que o sistema exerça o controle do corpo e da sexualidade da mulher, exercendo dominação, repressão e domesticação do feminino. O corpo feminino é alvo de múltiplos controles não é de agora. Controle da imagem, da beleza, do comportamento, da identidade, da estética, dos desejos, da sexualidade, da reprodução. Sua base de fundamentação se dá por meio dos discursos das igrejas, das escolas, da medicina, dos juristas, da mídia. E essa cultura se desenvolve no meio de uma trama muito bem engendrada por relações de micropoderes que atinge a todos. Por isso, não é de se estranhar que as mulheres compuseram a maioria do universo pesquisado pelo IPEA, e grande parte compactuou com o resultado da pesquisa.

Romper com essa lógica que alimenta a face mais perversa da violência contra as mulheres exige que comecemos, desde já, a educar nossos meninos a não estuprar e a não violentar as mulheres. O corpo exposto não está à disposição dos desejos masculinos. Também devemos dizer às nossas meninas que o seu corpo pertence somente a elas, devemos encorajá-las para rejeitar qualquer tipo de violência. É fundamental que haja mudança no comportamento da família para que não acobertem os casos de abusos intrafamiliares. Também é imperativo que atuemos com força na mudança cultural e educacional nas escolas, na mídia e na polícia, assumindo o compromisso com os direitos das mulheres, com a igualdade entre os gêneros e a desconstrução do machismo, da misoginia. Precisamos nos livrar dessa cultura machista impregnada na nossa mente, no nosso corpo e na nossa carne. Ninguém merece ser atacado, estuprado, violentado, independentemente do tamanho da roupa. Nenhum corpo merece ser castigado, seja ele feminino, masculino, transgênero, gay ou lésbico.

Nanci Silva – Jornalista e feminista


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *