29/03/2024 - Edição 540

Especial

O idioma do cassetete

Publicado em 09/09/2016 12:00 -

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Em 2013, a repressão desmedida da Polícia Militar durante as Jornadas de Junho acendeu uma centelha de esperança de que, finalmente, a sociedade iria discutir a reforma da segurança pública no Brasil. Afinal, porrada e tiro na classe média costuma surtir algum efeito. Triste ilusão. O que se viu foi o inverso: mais treinamento para a repressão, mais bombas e até uma pretensa lei antiterrorismo que pode deixar tudo pior. 

A cena da PM de São Paulo encurralando e atacando indiscriminadamente os manifestantes contrários ao Governo Temer, na semana passada, foi escandalosa. A imagem escancara a truculência de uma instituição que, ao invés de garantir direitos, suprime-os e passa por cima da lei impedindo a livre manifestação.

Foram quatro horas de caminhada pacífica pelos cinco quilômetros que ligam a avenida Paulista ao Largo da Batata, em São Paulo, no protesto do domingo, dia 4. No trajeto, manifestantes enchiam os pulmões para gritar melodiosamente "que coincidência, não tem polícia, não tem violência". Mas houve violência. Quando a marcha já tinha acabado, a Polícia Militar usou bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha para dispersar a multidão já de saída. Oficialmente, a corporação afirma ter reagido a atos de vandalismo, ainda que jornalistas presentes no local não tenham testemunhado nenhum episódio relevante e que vídeos publicados nas redes sociais coloquem em xeque a versão. Mas se houve depredação, como reafirmou o governador Geraldo Alckmin (PSDB), não haveria outra forma de lidar com a situação sem expor a riscos os demais manifestantes (cerca de 100.000, segundo os organizadores, ou 30.000, segundo a polícia)?

A Polícia Militar diz que não. Argumenta que agiu para "preservar vidas" na estação Faria Lima de metrô, onde um princípio de tumulto por volta das 22h deu início à ação policial, segundo o comandante do policiamento da capital, Dimitrios Fyskatoris. Em entrevista coletiva, o comandante disse que "não reconhece nenhum excesso" da PM e afirmou que desde o início do protesto integrantes da tropa "foram alvo de pedradas, latas e garrafas" jogados pelos manifestantes —embora ele reconheça que nenhum policial tenha ficado ferido. “O fato é que tem depredação e ainda quer passar a história de que a polícia que é culpada”, disse o governador Geraldo Alckmin.

Não é bem assim

Entretanto, entidades da sociedade civil e especialistas discordam da versão oficial. Veem na ação um uso de força desproporcional e injustificável e acusam a corporação de agir com truculência, sob o respaldo do Governo estadual, agora alinhado com o Palácio do Planalto, o que coloca em risco um direito civil garantido pela Constituição, o de liberdade de expressão e de protesto.

"Tem se tornado uma espécie de protocolo de atuação da Polícia Militar, ratificada pelas autoridades, o emprego desproporcional da força para restringir o direito às manifestações, e isso não é de hoje. Ao invés de proteger, a Polícia Militar criou pânico e, mais que isso, torna-se um fator provocador de violência", disse Atila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional Brasil.

A organização não governamental já havia criticado a repressão policial, na semana passada, aos atos contra o impeachment de Dilma Rousseff, ainda mais marcados pelo clima tenso entre manifestantes e policiais e pela ação de grupos minoritários adeptos da tática black bloc, que pregam desobediência civil por meio de destruição do patrimônio. Agora, a Anistia Internacional e outras ONGs ligadas à defesa dos direitos humanos, como a Conectas e o Artigo 19, voltaram a denunciar o que chamam de "criminalização das manifestações". A cúpula policial paulista sofreu ainda outro revés, com a ordem da Justiça para soltar 26 manifestantes presos antes do ato em São Paulo por avaliar ter se tratado de uma "prisão irregular".

"A Polícia Militar desrespeitou suas próprias normas. Já não se pode mais falar em uso da força. O que vimos é o uso da violência. A polícia é violenta quando ela não se limita a dispersar a manifestação, passa a encurralar manifestantes, agredir jornalistas, encarar essas pessoas como inimigo. Mesmo que tenha vândalos no meio, é uma minoria que pode ser neutralizada isoladamente. O papel da polícia é justamente garantir que atos de violência não prejudiquem quem quer se manifestar pacificamente", disse o tenente-coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo Adilson Paes de Souza, que atuou por 30 anos na corporação e é mestre em direitos humanos.

"A polícia precisa ser técnica e precisa. Normas internacionais, e inclusive protocolos internos da própria PM, definem que a bala de borracha pode ser usada em casos excepcionalíssimos, para conter alguém que ameace a segurança de manifestantes, e não pode mirar o olho ou a cabeça (hipóteses em que essa arma pode ser letal). Portanto, o vandalismo não é licença para barbarizar", completa Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional na Faculdade de Direito da USP. 

A repressão policial às manifestações contrárias ao Governo Temer vem sendo alvo de questionamentos desde a semana passada. A Ouvidoria da PM chegou a pedir ao Ministério Público que investigasse a conduta dos policiais que atuaram no protesto do último dia 31, quando a manifestante Deborah Fabri, 19 anos, teve o olho esquerdo perfurado por um estilhaço de bomba. "Se uma jovem ficou cega é porque o artefato foi jogado para cima, não para baixo, como manda a norma da PM. Isso aponta um claro despreparo técnico e psicológico", completou Souza.

Já o coronel da reserva da PM José Vicente da Silva, ex-secretário nacional de Segurança Pública no Governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), defende a atuação da PM. Para Silva, a ação das autoridades tem sido "correta", de um modo geral, embora ele afirme que "fatos fora do padrão", como lançamento de bombas de gás em locais fechados como estações de metrô, devam ser analisados para "melhorar a performance policial em outros eventos e eventualmente até avaliar se alguém descumpriu as normas" da corporação. 

Após a defesa da Polícia Militar a respeito da ação de domingo, quando disse ter sido "obrigada a intervir com uso moderado da força / munição química", vídeos publicados nas redes sociais por manifestantes e veículos de comunicação colocaram em xeque a versão oficial das autoridades —como o divulgado pelo Democratize, que mostra um grupo de manifestantes ser atingido por spray de pimenta em um bar ao gritar contra uma viatura "não vai ter selfie", em referência à diferença de tratamento dado aos manifestantes de acordo com o alinhamento político do protesto.

Caso levado a OEA

Os manifestantes também criticam a diferença na atuação da PM nos protestos "Fora, Temer" em comparação com os protestos "Fora, Dilma", quando não houve episódios de violência policial. "Fica cada vez mais claro que a PM não quer conter atos de vandalismo, ela quer comunicar uma mensagem. E essa mensagem em geral coincide com o interesse da cúpula do Poder Executivo estadual e federal (contestada, claro, por parte da sociedade brasileira). A PM se presta a fazer o serviço sujo da política. Quem mais sofre é o elo fraco dessa rede, o policial que está nas ruas", diz Hübner Mendes, professor de direito constitucional na Faculdade de Direito da USP.

Todos os especialistas ouvidos pela reportagem lembram, porém, que a Polícia Militar responde a uma cadeia de comando, que tem como autoridade máxima o governador do Estado, que tem como dever constitucional garantir a segurança dos manifestantes, independentemente se a bandeira o desagrada. Por isso, a Anistia Internacional incentiva as pessoas que testemunharem casos de abuso policial a denunciar os fatos e a cobrar uma ação do Ministério Público Estadual, que no seu entender tem sido "omisso". Procurado pela reportagem, o Ministério Público informou que designou promotores para acompanhar os inquéritos que abordam os episódios.

Já o senador Lindbergh Farias (PT-RJ), que foi surpreendido pelas bombas de gás quando concedia uma entrevista durante o protesto, disse nesta segunda-feira vai denunciar a ação à Corte de (Interamericana) de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA). "Nós estamos preparando uma representação contra o Governo de São Paulo pelo que eles estão fazendo. Eles querem que as pessoas fiquem assustadas. Nós não vamos ficar", afirmou.

Intelectuais se manifestam

Diante da violência policial, um grupo de artistas e intelectuais escreveu uma carta aberta ao governador Geraldo Alckmin para exigir que as forças policiais do Estado “se conformem à ordem democrática”. Assinada por mais de 900 pessoas, a carta faz parte de um abaixo-assinado virtual hospedado na plataforma Change.org. O documento será enviado a Alckmin, ao vice-governador Marcio França (PSB) e às secretarias de Justiça e da Segurança Pública.

“As liberdades democráticas básicas requerem o respeito a direitos fundamentais, seja por parte do Estado, seja por outros cidadãos”, diz a primeira linha do texto. “O direito à expressão pública – e em espaços públicos – de interesses, ideias e valores não pode estar submetido ao arbítrio das autoridades policiais ou de seus chefes, ocupantes de cargos governamentais eletivos ou não”.

“O dono de um bar levou gás de pimenta na cara. Foi uma ação totalmente absurda e arbitrária”, diz o cientista político Cláudio Couto, professor da FGV-SP, um dos signatários da carta. “É a Polícia Militar repetindo o mesmo enredo de sempre, agredindo manifestantes sem justificativa alguma. Entendemos que isso é inaceitável”, continua professor.

A carta, que fala em “ação desproporcional e truculenta”, lembra que manifestantes – incluindo oito menores de idade – foram detidos pela PM mesmo antes de o protesto começar.

"Tais condutas das autoridades policiais retratam um padrão na atuação das forças de segurança paulistas, que se reproduz frequentemente no trato cotidiano com a população, nos índices de letalidade policial e na impunidade dos crimes cometidos por policiais, como as chacinas”, diz o texto. “Não bastasse a violação cotidiana dos direitos civis de cidadãos comuns, o uso desregrado da força em manifestações políticas coloca em risco não apenas a segurança individual das pessoas, mas atinge o cerne do próprio regime democrático”.

Estado policialesco

O escritor Milton Hatoum, que também assina a carta, afirma que hoje não é possível dizer que vivemos em uma democracia. “Eu não considero este regime democrático. A polícia reprimiu uma manifestação pacífica, eu estava lá. E que democracia é esta, que interrompe de forma vil o mandato de uma presidente? Nós sabemos das manobras, foram todas reveladas naquele telefonema do Romero Jucá [em conversa com Sérgio Machado]”.

Para Hatoum, a ação da polícia teve "o objetivo claro de desmoralizar o teor pacifico da manifestação". A escritora Noemi Jaffe concorda. "Estávamos em uma manifestação completamente pacífica, com famílias, cachorros e crianças. Então me parece que aquilo foi uma ação tática, feita exclusivamente para a imprensa, para que mostrassem cenas de suposto vandalismo", afirma Jaffe.

O escritor Ricardo Lísias lembra que a revolução digital já não permite que excessos sejam escondidos. "Estamos na era do WhatsApp, do celular.  Mas parece que o pessoal da segurança pública não percebeu. Os vídeos mostram que muitas vezes a repressão é totalmente gratuita." 

A carta endereçada a Alckmin pede, por fim, que o governo reconheça a “legitimidade das manifestações” sem se deixar levar por “orientações morais ou motivações político-partidárias”.

“Excessos no uso da força e ações arbitrárias poderão levar a uma escalada de violência sem precedentes, e é dever das corporações policiais e de seus chefes hierárquicos impedir que isso aconteça, sob o risco de comprometerem a convivência social pacífica, a ordem legal e os fundamentos do regime democrático”, encerra a carta.

Para Hatoum, se Alckmin tem "alguma ambição política", ele precisa "educar" seus secretários de segurança. "Mas, se eles pretendem governar sobre essa tensão, estaremos falando de um estado policialesco. E isso vai criar tensões sociais graves."

Cartilha arcaica

Não faltam exemplos para retratar o quanto o Brasil anda mal de polícia, seja a militar, seja a civil. Bombas, drogas e qualquer tipo de "prova" plantada na mochila de manifestantes, de tão banalizadas, tornaram-se mero detalhe em um País onde Amarildos simplesmente desaparecem e onde jovens pobres são metralhados sem razão dentro do próprio carro.

Até há pouco, ainda tínhamos os vergonhosos Autos de Resistência, que não eram, senão, uma licença para matar com a garantia da impunidade (embora ainda seja preciso avançar, já que o termo substitutivo nos boletins de ocorrência continua dando brecha à violência policial). 

Desde o fim da ditadura, as principais instituições do país foram reformadas. O país ganhou uma nova Constituição, um sistema de saúde universal, houve mudanças na educação, no Ministério Público e por aí vai. Já a polícia continua exatamente a mesma. 

Nada mudou no quarteis, onde PMs são ensinados a ver manifestantes não como cidadãos, mas como potenciais ameaças ao sistema, seguindo a cartilha da velha doutrina de segurança nacional.

Reformar a polícia é questão urgente. Desmilitarizar a PM é pouco. É preciso também voltar os olhos para a Polícia Civil, já que apenas 5% dos inquéritos de homicídios são concluídos no País segundo levantamento de 2013 da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp). Tamanha ineficiência é a prova cabal de que o atual modelo não funciona.

O Brasil, aliás, é o país recordista em número de assassinatos no mundo. São 56 mil por ano. E a atual estrutura de polícia diz muito sobre essa estatística horrorosa. Impressionante como a sétima economia do mundo, que tem aspirações de ser uma potência global, conviva com tamanho nível de violência e ache isso normal.

Apesar dos tiros de borracha e de tanto gás lacrimogêneo inalado, a reforma da polícia nunca foi pauta exclusiva de nenhuma grande manifestação. O tema é constante nos protestos, mas sempre acaba em segundo plano na narrativa da imprensa.

Uma reivindicação urgente é a independência da Corregedoria. Hoje, o órgão que investiga a conduta de policiais é subordinado ao Comando Geral da PM. Seis meses após junho de 2013, uma reportagem da BBC Brasil procurou saber quantos inquéritos de abuso policial durante os protestos haviam sido concluídos. A PM se negou a informar e só liberou o dado por meio da Lei de Acesso à Informação. Nenhuma investigação havia chegado ao fim.

Não surpreende que 70% da população não confie na polícia, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas. Mas enquanto uma minoria continuar tirando selfie com policial em dia de manifestação verde amarela, a mídia, o Ministério Público e quem estiver no governo continuarão coniventes. Até lá, a linguagem será sempre a do cassetete.

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