16/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Vivemos um processo de fechamento seletivo de fronteiras no mundo

Publicado em 18/08/2016 12:00 -

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O mundo vive hoje um processo de “desfronteirização”, fenômeno que se expressa, entre outras coisas, pelo fechamento de fronteiras entre países, muitas vezes materializado pela construção de muros. Já há estimativas prevendo que, até o final da década de 2020, o mundo terá dez vezes mais muros do que tem hoje, na menor das hipóteses. E esses fechamentos têm um corte seletivo, como mostra o trabalho de pesquisadores internacionais: dentro dos muros está cerca de 75% da riqueza mundial e 20% da população. Fora do muro é o contrário: 20% da riqueza mundial e 80% da população. Esses muros passam a definir, portanto, os marcos de ricos condomínios fechados e têm o objetivo de não deixar os pobres entrar. A avaliação é dos pesquisadores Tito Carlos Machado de Oliveira, Coordenador do Centro de Análise do Espaço Fronteiriço, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), e Adriana Dorfman, professora do Departamento de Geografia, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

 

O que define, exatamente, uma área de fronteira? Quais são as suas principais características?

Tito Carlos Machado de Oliveira: O conceito de fronteira tem uma dimensão, hoje, completamente diferente do que tinha até algum tempo atrás, quando era sinônimo de barrar, restringir e fechar. De um tempo para cá, a fronteira passa a ser vista como um ambiente de interação, de inter-relação. Apesar da dimensão de barrar e restringir estar ainda muito presente na cabeça dos governantes, nós tivemos um período extremamente rico na história das fronteiras a partir da Segunda Guerra Mundial até muito recentemente, no início dos anos 2000. Esse foi um período de grande expansão das fronteiras. Do ponto de vista teórico, vários estudiosos chegaram a afirmar que as fronteiras estavam se diluindo e que a tendência era, em um período breve, elas deixarem de existir.

Na verdade, essa era uma visão propositiva relacionada ao livre fluxo do capital. As pessoas estavam querendo abertura de fronteiras no mundo porque existia um processo de circulação do capital que tinha interesse em derrubar as imposições colocadas pelas fronteiras. Se olharmos o mapa da América Latina veremos um processo de ocupação muito intenso das fronteiras neste período. No Brasil, uma grande quantidade de cidades nasceu nestas áreas de fronteira. Também houve um crescimento expressivo da quantidade de assentamentos de trabalhadores rurais de 1986 até 2006. Tivemos um período de 20 anos onde mais de 80% dos assentamentos foram colocados em regiões de fronteira. Foi um período muito rico, que abraçou essa ideia de dissolução das fronteiras, relacionada, sempre lembrando, ao processo de expansão do capital.

Esse cenário começou a mudar significativamente a partir da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, por conta dos desdobramentos dos atentados de 11 de setembro. A partir daí, tivemos um freio muito grande dessa expansão na direção das fronteiras. Antes, para o capital, todo ambiente de fronteira tinha uma perspectiva de abertura e de livre circulação de mercadorias. A partir daí, são estabelecidos alguns corredores para essa circulação. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, onde eu vivo e trabalho, há um corredor bem definido entre São Paulo e Santa Cruz de la Sierra, por onde circulam algo entre 6 e 7 milhões de dólares por dia, mas de 100 milhões de dólares por mês. Isso não é qualquer coisa. Em compensação, regiões que eram extremamente dinâmicas, como, por exemplo, Bela Vista e Mundo Novo, foram recrudescendo. O capital foi escolhendo determinados caminhos de circulação e não mais todos os lugares.

Corredores por onde ele poderia fluir mais facilmente…

Tito Carlos Machado de Oliveira: Exatamente…

Adriana Dorfman: Nós temos um exemplo no Rio Grande do Sul, que é a ponte construída em São Borja e que tem tudo a ver com o Mercosul e com a integração da indústria automobilística do Brasil e da Argentina. É uma ponte que tem um fluxo gigantesco, mas que não é um fluxo barato. Ele é rápido e competente, mas é caro. Todo o trânsito aduaneiro, incluindo controle sanitário, é feito em torno de meio dia. É um espaço isolado. Não há uma barraquinha de cachorro quente que seja. É exclusivamente para o capital. Outros trânsitos de produtos menos valorizados, com menos capital corporativo agregado, ocorrerão por Itaqui e por outros lugares próximos e não pelo corredor específico da ponte de São Borja. Aqui no Rio Grande do Sul, cabe destacar, a fronteira sempre foi um lugar de encontro, nunca foi um espaço de completo isolamento.

De um ponto de vista muito abrangente, uma das principais características com os quais a gente trabalha o conceito de fronteira é a ideia de descontinuidade. Temos um espaço, uma economia, uma cultura, pensados como continuidade, que, no meio do caminho sofre uma descontinuidade. Isso aí é a fronteira. Pode ser um controle, que é a expressão de um Estado, que marca claramente que, de um lado é uma coisa e do outro lado é outra coisa. Temos dois fenômenos diferentes aí: um é o processo de expansão e outro é o de descontinuidade.

Há um momento no qual a gente representa a fronteira como um limite entre países. Tivemos todo esse movimento da globalização referido pelo professor Tito, que propagou a diluição das fronteiras. Mas o recrudescimento de tensões geopolíticas reforçou os mecanismos de controle de migrações internacionais, com a instalação de maquinários super sofisticados em regiões de fronteira. A fronteira dos Estados Unidos com o México é um exemplo disso. Aquilo não é um lugar, mas uma máquina gigantesca de seleção com tecnologia muito sofisticada. Ao mesmo tempo, é um local que garante um fluxo muito rápido para o capital e suas mercadorias, embora este também tenha seus mecanismos de controle.

Bem menos rígidos que os utilizados para o controle do trânsito de pessoas…

Adriana Dorfman: Controlado, aí, não quer dizer impedido. Temos outros fluxos operando neste espaço que não são contabilizados, como o de contrabando e de drogas. É importante assinalar que esses fluxos ilegais aparecem na fronteira, mas não são uma exclusividade dela. Como na área de fronteira ele é controlado acaba aparecendo. Em outras áreas, onde o controle é muito menor ou não existe, esses fluxos ilegais acabam não aparecendo. A fronteira é caracterizada também como um espaço onde o Estado deve se mostrar e se fazer presente, ainda que nem sempre esteja.

Há uma certa ideia no senso comum que vê essas regiões de fronteira como áreas meio fora da lei, de faroeste. Essa visão faz jus à realidade dessas regiões ou é uma simplificação distorcida?

Tito Carlos Machado de Oliveira: Na verdade, não faz muito jus, não. Se olharmos o caso do Brasil, veremos que temos fronteiras com cidades e habitadas por pessoas que vivem ali no cotidiano e fronteiras desabitadas. Estas últimas são reguladas por marcos burocráticos, estabelecidos por dois ou mais países. Quando a fronteira é habitada, esses marcos burocráticos perdem um pouco o sentido. Em geral, nestes lugares, temos um conjunto de pessoas que moram de um lado da fronteira e outro conjunto de pessoas que moram do outro lado. Dificilmente temos habitação somente de um lado da fronteira. Historicamente, o processo de ocupação populacional de um lado de uma fronteira leva à ocupação do outro lado também.

Existe uma palavra mágica para todas as cidades que é “complementariedade”. Nós não conseguimos viver sozinhos e estabelecemos relações complementares com outras pessoas. Do mesmo modo, não existem cidades autônomas, elas se complementam com outras cidades. Na fronteira, essa complementariedade entre cidades vai se dar sob um contexto de legislações diferentes, de culturas, costumes e línguas diferentes. Isso provoca um ambiente extremamente diferente.

O que se observa ao longo do tempo, nestas situações, é que as pessoas de um lado vão tentar se comunicar com as pessoas do outro lado, a partir de sua visão de mundo e das regras com as quais convive. Da mesma forma, do outro lado para cá. O resultado disso é uma série de conflitos, ambiguidades e deslizamentos, dando forma a um ambiente bastante diferente. É por isso que a fronteira é legal e rica, com uma simbiose muito grande de costumes, valores e comportamentos, mas, ao mesmo tempo, é um ambiente que te convida cotidianamente à transgressão.

Um senador paraguaio fez um discurso recentemente, em Pedro Juan Caballero, dizendo que os que são honestos na fronteira são mais honestos que os honestos de outros lugares porque eles são convidados todos os dias à contravenção. Então, se o sujeito é honesto é porque ele é honesto mesmo, brincou. A frase dele foi: os nossos honestos são mais honestos que outros honestos.

Adriana Dorfman: A fronteira é um faroeste? Sim e não. O faroeste americano era uma fronteira de expansão onde o outro não existia. Isso está no imaginário das pessoas. Mas a fronteira também é um lugar de oportunidade, onde convivem pessoas de origens diferentes. Aqui no Rio Grande do Sul, quando ainda havia escravidão no Brasil, a fronteira com o Uruguai era um corredor para a liberdade, pois do outro lado não havia escravidão. Quando vivíamos sob ditadura no Brasil e ainda não havia ditadura no Uruguai, da mesma forma. Isso representa um problema para quem controlar. Neste aspecto, a fronteira é um espaço de liberdade e criação, repleto de riqueza e diversidade. No caso do Rio Grande do Sul, esse traço do fronteiriço está colocado na nossa identidade regional. O Estado inteiro se vê como fronteiriço. A pessoa pode morar em Porto Alegre, mas a identidade com o Uruguai e o Pampa é muito forte. Já o Mato Grosso não tem tanta identidade com o Paraguai ou com a Bolívia. E, em outros lugares, como São Paulo, a fronteira é vista como uma área problemática, por onde entram armas e drogas.

Até que ponto essa fama de ser território de entrada de armas e drogas corresponde à verdade? As fronteiras no Brasil hoje são mesmo portas de entrada destes produtos?

Tito Carlos Machado de Oliveira: A partir de 2002 e 2003, a fronteira passou a ser culpada de muitas coisas. Mais recentemente, o país começou a ser pautado por figuras como o Carlos Datena. O Jornal Nacional, há oito anos, não tinha um bloco sobre violência. Hoje é o maior bloco do Jornal Nacional, por conta da pauta do Datena que pressiona a concorrência. E há algumas pautas do Datena que são apresentadas como sendo exclusivamente um problema de fronteira, como a questão da droga. Para ele, a droga entra pela fronteira, que está desprotegida, e acabou o assunto. Isso é um absurdo. Se você vai hoje de Corumbá para Campo Grande, um trecho de 450 quilômetros, passa por seis postos de vigilância. Onde é que está a fronteira desprotegida?

Não adianta você construir muros. Eles dificultam, mas não impedem a travessia. Olha o que está acontecendo nos Estados Unidos ou na fronteira Israel-Palestina. As armas que o Datena fala que vem pela fronteira não vem pela fronteira. Eu sei disso porque trabalho com as fronteiras do Brasil com a Bolívia e com o Paraguai e a quantidade de prisões por tráfico de armas é muito pequena. Essa arma que aparece no Rio de Janeiro chega no Brasil em containers. Apenas 1,8% dos containers são vigiados. Aquele mundo de coisas que são vendidas na rua 25 de maio, em São Paulo, não vem da fronteira, mas sim de containers.

Adriana Dorfman: A vigilância dos containers se divide em cores, verde, amarela e vermelha. Só os de linha vermelha são vigiados. Nos demais não se chega nem perto porque se pressupõe que a fonte de origem é idônea

Tito Carlos Machado de Oliveira: Há um pesquisador paraguaio, chamado Reinaldo Pena, que fez um trabalho muito interessante para o Banco Central do Paraguai. Ele fez uma descoberta muito importante para nós. O caminhão que sai do porto de Paranaguá com selo paraguaio não pode ser fiscalizado. Ele é vigiado simplesmente pelo peso e não pode ser aberto. No meio do caminho, ele para em algum lugar, onde tiram toda a sua mercadoria, colocam o mesmo peso em areia, lacram de novo com um selo falso e ele segue para o Paraguai. Então, o grosso do problema não está na fronteira. Aquela onde de ficar prendendo camelô na fronteira é só para fazer um espetáculo.

Então, temos um conjunto de coisas malditas associadas à fronteira: contrabando, tráfico, violência, etc. Mas quando você chega na fronteira, encontra um ambiente extremamente dinâmico e criativo. A maioria das pessoas gosta de viver ali. Em geral, são lugares mais cosmopolitas e tolerantes. São lugares riquíssimos para serem estudados.

Segundo essa descrição, essas regiões são, de certo modo, laboratórios da integração buscada na Europa, na América Latina e em outros continentes…

Tito Carlos Machado de Oliveira: Sim, elas são um elemento chave para se entender o processo de integração. Quem quiser saber como desenhar um projeto de integração na América Latina tem que ir para essas áreas de fronteira. É lá que estão as respostas para o processo de integração. A fronteira está exposta a três fatores importantes na América Latina. Ela está subsumida a uma ordem mundial que define um processo de refronteirização ou de desfronteirização. Nós estamos vivendo um momento de desfronteirização. Já há algumas estimativas prevendo que, até o final da década de 2020, o mundo terá dez vezes mais muros do que tem hoje, na menor das hipóteses.

A tendência hoje é de desfronteirizar, de fechamento seletivo dessas áreas de fronteira. Ao mesmo tempo, a nossa fronteira é submetida a uma conformação latino-americana. Além disso, toda a fronteira habitada, está sob a égide de um processo de fronteirização, que estabelece a funcionalidade dessas regiões. Por fim, outra característica importante é que o nexo conjuntura tem maior força que o nexo estrutural. Uma mudança no câmbio, como está ocorrendo agora, muda totalmente o fluxo nestas áreas de fronteira. A conjugação desses elementos faz com que existam muitas vantagens e desvantagens na fronteira. A grande desvantagem é que é extremamente difícil implantar políticas públicas. Pior ainda: como cada fronteira é diferente da outra, como é que se consegue implantar as mesmas políticas públicas em diferentes regiões? Seria preciso criar uma para cada fronteira? É muito complicado.

Desfronteirizar é sinônimo de fechamento?

Adriana Dorfman: Aí depende. Há uma cartografia muito interessante elaborada por uma pesquisadora canadense chamada Elisabeth Vallet e por um pesquisador chamado Stéphane Rosière sobre os muros que existem hoje. Esses mapas mostram que, hoje, dentro dos muros está cerca de 75% da riqueza mundial e 20% da população. Fora do muro é o contrário: 20% da riqueza mundial e 80% da população. Ou seja, é um condomínio fechado. É uma tentativa de não deixar entrar os pobres para dentro desse condomínio fechado.

Há uma proliferação de muros sendo construídos em vários países dentro da Europa hoje para tentar deter a passagem de refugiados. Essa nova realidade representa uma ameaça para o projeto da integração europeia?

Adriana Dorfman: O que os europeus fizeram foi construir uma fronteira externa. O norte da África hoje é uma fronteira da Europa. Há vários postos de controle de documentação, de concessão ou não de vistos, que não estão na entrada da Europa, mas sim em postos avançados. É como se construíssemos fora do Brasil lugares de controle para que eles fizessem o trabalho sujo. A mesma coisa ocorre na relação do México com os Estados Unidos. Quem controla a grande migração que há da América Central para os Estados Unidos é o México. Quem faz o papel de conter e segurar o fluxo de pessoas é o México.

Tito Carlos Machado de Oliveira: É bom a gente lembrar que a migração no passado foi algo muito bem vindo, pois estava associada a um projeto de desenvolvimento do capital. Hoje, essa associação é totalmente diferente. A migração é relacionada à chegada da miséria e à necessidade de sustentar essas pessoas. O processo migratório hoje está ocorrendo nas piores condições, portanto. Mas há outra questão aí. A Alemanha é o país que defende mais a regularização dos refugiados que estão chegando muito pela questão demográfica. A sua população está começando a decrescer e o país vai precisar de braços para trabalhar.

Voltando à realidade brasileira, qual é a situação geral da população que vive em nossas regiões de fronteira, em termos de vigência de direitos?

Adriana Dorfman: Existem algumas pessoas que se beneficiam e muita gente que, pela falta de documentação, fica mais fragilizadas. A proposta do documento fronteiriço, que já está em vigor mas não teve uma acolhida muito grande, é muito relevante por garantir que um trabalhador que está trabalhando em outro país tenha reconhecidos seus direitos. Caso contrário, uma população que já é fragilizada e explorada, vai para outro país e tem menos direitos ainda. Se um boliviano, que sai do seu país e vai trabalhar em São Paulo, não for legalizado, será duplamente explorado.


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