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Artigo da Semana

O que Darcy Ribeiro diria para a CPMI Funai/Incra?

Publicado em 14/07/2016 12:00 -

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A CPMI da Funai e do Incra foi instalada em abril de 2015, por requerimento assinado pelos deputados Alceu Moreira, Deputado Federal Alceu Moreira (PMDB-RS), Luis Carlos Heinze (PP-RS), Nilson Leitão (PSDB-MT), Valdir Colatto (PMDB-SC), Marcos Montes (PSD-MG), integrantes da bancada ruralista no Congresso Nacional, também conhecida como bancada do boi. Ela pretende, conforme se pode ler na sua ementa “investigar a atuação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) na demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombos.”

Entretanto, aquela história de que “pelo andar da carruagem já se sabe quem vem dentro” acordou as lideranças indígenas, alguns movimentos populares e ONGs de defesa dos direitos humanos aos povos nativos e aos sem-terra para propósitos ocultos daquela Comissão. As primeiras diligências do seu trabalho e a tomada dos primeiros depoimentos foram revelando uma visível posição contrária aos direitos originários do povo indígena e um manifesto reforço dos entraves opostos à reforma agrária, independentemente das disposições constitucionais sobre as obrigações da União em garantir esses direitos e realizar essa reforma.

A resistência contrária começa a dar sinais difíceis de serem subtraídos do conhecimento público. A ocupação massiva do espaço Dante Barone, da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, onde a Comissão iria se reunir em fins de maio deste ano, feita ao som de vaias e portanto cartazes reveladores de um passado político nada abonador de vários dos parlamentares que a integram, abortou a própria reunião, e só se escandalizou com isso quem não consegue comparar o poder da opressão latifundiária sobre as/os manifestantes com as injustiças históricas que essas/es sofrem.

É que as reais intenções da Comissão não são mais ignoradas por ninguém. Trata-se de uma inciativa paralela, entre outras, para empoderar e agilizar a tramitação de projetos de lei de interesse de latifundiários, no sentido de reduzir o mais possível o território brasileiro de quilombolas e índias/os, bem como o destinado a reforma agrária. Serve de exemplo disso, a pretensão de transformar em lei a PEC 215, que transfere para o Poder Legislativo a competência não só para decidir sobre futuras delimitações de áreas indígena indígenas, quilombolas e unidades de conservação, até para rever as que já foram homologadas.

Na realidade, o que está em jogo nessa Comissão não é o Incra e a Funai que, aliás, conhecem as suas limitações. É o olho gordo da disputa por terra, a usurpação até do que sobra para o povo indígena e o povo pobre sem-terra. O requerimento de instalação da CPMI, arrola vários conflitos criados entre indígenas e pequenos agricultores, por força de delimitações feitas mais por motivos ideológicos do que juridicamente legitimados. Lembra estudos como os de Darcy Ribeiro e Mercio Gomes para sustentar suas críticas contra as delimitações.

Se vivo fosse, seria muito oportuno conhecer-se a opinião de Darcy Ribeiro sobre o que está acontecendo. No prefácio assinado justamente para um livro de Mercio Pereira Gomes, “Os índios e o Brasil”, ele responsabiliza três grandes pragas como causadoras do progressivo morticínio da população indígena brasileira: “as pestes européias de extremada virulência que grassavam de tribo a tribo, em cadeias de contaminação generalizada”; o genocídio que, embora reduzido nas últimas décadas, “continua assassinando líderes indígenas, e os assassinos permanecem sempre impunes, o que demonstra a conivência da sociedade nacional com os massacradores de índios;” e, para fechar definitivamente o cerco das injustiças necessárias para aniquilar de vez o povo indígena “o extermínio cultural, o etnocídio, induzido tanto pela burocracia oficial protecionista, como pela ação missionária.”

As primeiras ações apontam uma posição contrária aos direitos originários do povo indígena e um manifesto reforço dos entraves opostos à reforma agrária, independentemente das disposições constitucionais sobre as obrigações da União em garantir esses direitos e realizar essa reforma.

Sobre a última que, a pretexto de salvar as almas dos índios, “facilitava o extermínio de seus corpos e a espoliação de suas terras”, Darcy observou – ainda bem – “uma mudança de atitude das missões religiosas, principalmente das católicas, que passaram a avaliar, para tentar evitar, os danos terríveis que o etnocídio por elas provocado causavam aos povos que pretendiam proteger a partir de uma ação em que o missionário se definia como agente civilizador.” À luz desse diagnóstico de muito improvável, para não se dizer impossível refutação, Darcy Ribeiro levaria à consideração da CPMI Funai/Incra, uma grave advertência sobre suas prioridades. Pediria juntada ao processo de tramitação dessa Comissão o trabalho assinado por Renato Santana, publicado na edição de 3 deste julho no site Dom Total sob a manchete: “Suicídio de índios vira pandemia no Brasil.”

O que mais surpreende, nos números que certificam essa verdade trágica, é a idade das vítimas: “O suicídio entre crianças e jovens indígenas no Brasil foi classificado como pandemia por pesquisa do Programa de Estudos sobre Violência da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flacso). Divulgado nessa quinta-feira, 30, o relatório ‘Violência Letal Contra as Crianças e Adolescentes do Brasil’ aponta que, em ao menos um município, 100% do total de suicídios entre indígenas ocorreu na faixa dos 10 e 19 anos. Dos 17 municípios com número igual ou superior a 10 mil crianças e jovens – critério para o levantamento –, com alta densidade populacional indígena, 327 indígenas acima dos 20 anos se suicidaram entre 2009 e 2013. Desse total, 163 crianças e adolescentes tiraram a própria vida – quase a metade do número final e a maioria em relação às demais faixas etárias reunidas.”

Dados dessa ordem mostram como as prioridades escolhidas como objeto da investigação da CPMI, praticamente todo ele orientado para desacreditar, desmoralizar e até inviabilizar as políticas públicas pelas quais Incra e Funai são responsáveis, mostram como são poderosas as raízes da nossa história colonial e escravista. Não bastou dizimar as populações nativas de parte do mundo, hoje Brasil, o branco rico e invasor quer mais: se índias/os e sem-terras estão atrapalhando, que sejam eliminadas/os como os anuários da CPT engrossam a cada ano o número das/os assassinadas/os nesse massacre, agora acrescido dessa outra forma de matar: o suicídio de crianças e jovens.  Diante dessa realidade, o povo índio e o povo sem-terra desistem? Aí mora outra surpresa. Todo esse poderio privado e público armado contra eles, incrivelmente superior ao seu, ainda não conseguiu matar a sua esperança. Quando parecem vencidos definitivamente, ressurgem aqui e ali, organizados, cheios de brio e coragem, fazendo valer sua dignidade.

Querem o acesso à mãe terra como filhas/os, vivas/os e fortes, e não nos sete palmos onde a opressão latifundiária pretende sepultá-los, como João Cabral de Melo Neto conta em “Morte e vida Severina.”  Se até suas filhas e seus filhos estão se matando, é porque esse mundo e essa sociedade, lhes negam a própria vida. Esse é um motivo a mais para que seus pais e mães não desistam de construir um outro mundo e uma nova vida, bem diferentes dos que inspiram essa Comissão, encantados pela vida e não assombrados pela morte.

Jacques Távora Alfonsin – Mestre em Direito pela Unisinos, advogado e assessor jurídico de movimentos populares.


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