16/04/2024 - Edição 540

Especial

Há mérito na meritocracia?

Publicado em 14/07/2016 12:00 -

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Meritocracia – predomínio numa sociedade, organização, grupo, ocupação etc. daqueles que têm mais méritos (os mais trabalhadores, mais dedicados, mais bem dotados intelectualmente etc.).

 

A meritocracia é um dos principais sistemas de hierarquização social da sociedade moderna. Pode ser definida como um conjunto de valores que postula que as posições sociais dos indivíduos na sociedade devem ser resultado do mérito de cada um, ou seja, das suas realizações individuais. Para seus defensores, implantar a meritocracia significa estabelecer metas ambiciosas para os funcionários, cobrar resultados e recompensar a realização. Espera-se, com isso, vencer a acomodação, reconhecer aqueles que de fato trabalham e fomentar um esforço coletivo para aumentar o desempenho.

Mas, não é tão simples.

O economista americano Robert H. Frank, professor da Universidade Cornell, é um dos que discorda desta visão. No livro Success and Luck: Good Fortune and the Myth of Meritocracy (“Sucesso e Sorte: A Boa Sorte e o Mito da Meritocracia”), lançado nos Estados Unidos em abril – e em fase de tradução para o português – ele põe a meritocracia em xeque e afirma que o sistema deixa as pessoas menos generosas.

Para Frank, é preciso debater o abismo entre realidades tão distintas, como as que confrontam aqueles que são oriundos de famílias mais privilegiadas, que possibilitam desde o berço aos seus rebentos educação e saúde de boa qualidade, acesso à cultura e a informação, daqueles que, menos privilegiados, não podem oferecer aos seus as mesmas condições que, apesar de não garantir o sucesso, possibilitam que alguns saiam na frente de outros na corrida pelo sucesso.

Quando trabalhou como voluntário no Nepal, Frank contratou como cozinheiro um jovem de um vilarejo do Butão. “Ele continua sendo uma das pessoas mais trabalhadoras e talentosas que eu já conheci”, escreve Frank. Mesmo assim, continua, o pequeno salário que recebia como cozinheiro talvez tenha sido o mais alto em toda a sua carreira. “Se ele tivesse crescido em outras condições ou em um país mais rico, teria alcançado maior prosperidade e sucesso material? Há muita gente talentosa e trabalhadora no mundo que não chega lá simplesmente por não ter sorte”, reflete.

Discussões e questionamentos semelhantes ganharam destaque nas redes sociais brasileiras no fim de maio. Diante da notícia de que o filho do presidente interino Michel Temer, Michel Miguel Elias Temer Lulia Filho, mais conhecido como Michelzinho, tem em seu nome, aos 7 anos, mais de R$ 2 milhões em bens.

É mais ou menos essa a provocação principal no livro de Frank, que defende que, para obter sucesso, tão fundamental quanto ter talento e se esforçar é ter sorte — e aí está incluso tudo o que foge ao nosso controle, como nascer em uma família rica, frequentar boas escolas ou simplesmente nascer em um país desenvolvido.

Vantagem na largada

Na opinião de Frank, isso é particularmente evidente (e tem consequências piores) em países onde a desigualdade social é maior — caso do Brasil, que costuma aparecer entre os 20 piores colocados em listas que medem a concentração de renda.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o salário dos 10% mais ricos é quase 30 vezes maior que o dos 10% mais pobres.

Uma comparação que ajuda a entender o ponto de quem critica a meritocracia como sistema de seleção e também por que ela tem relação com a desigualdade é que o mercado de trabalho funciona como uma competição para a qual o participante começa a se preparar desde a infância.

As pessoas acumulam capital humano, termo usado por economistas para denominar o conjunto de capacidades, competências e atributos de personalidade que favorecem a produção de trabalho. Para isso, contam com três recursos: os privados, os públicos e seus próprios talentos — daí a importância da educação.

Como os recursos públicos e, principalmente, os privados não são os mesmos para todos, ao observar somente o final da corrida, o sistema privilegia poucos.

Sem igualdade, meritocracia é piada

Considerado um dos maiores especialistas brasileiros em políticas públicas, o economista-chefe do Instituto Ayrton Senna e professor no Insper, Ricardo Paes de Barros, é um crítico da meritocracia.

“Sem resolver a desigualdade de oportunidades, ficar falando em meritocracia é piada. Como discutir o mérito de quem chegou em primeiro lugar em uma corrida onde as pessoas saíram em tempos diferentes e a distâncias diferentes?”, afirma Paes de Barros.

Para o economista, especialista em desigualdade social, se, no passado, ações e procedimentos reforçavam a desigualdade e a discriminação que existiam até na escola, hoje é preciso discriminar estes alunos de outra forma, positivamente, dando a eles toda atenção extra necessária.

Segundo ele, a sociedade considera natural a existência de “educação de pobre e educação de rico”, algo que precisa ser combatido. “Você está naturalizando o fato de que uma criança pobre pode aprender menos, e uma criança rica tem que aprender mais. É o conformismo, o naturalismo”, diz.

“Temos que sair de ações que discriminavam negativamente, não para ser neutro, mas para discriminar positivamente (…) A escola tem que ser um lugar onde a gente reduz desigualdade e trata de maneira diferente pessoas que precisam mais. Pegar os que entram em desvantagem e tentar eliminar essa desvantagem, porque o objetivo final da escola não é lavar as mãos e deixar que a desigualdade seja reproduzida. O objetivo da escola é eliminar essa desigualdade inicial e fazer com que todo mundo saia igual, e aí sim ser meritocrático”, explica.

Para o economista, contudo, falta muito para isso acontecer. “Ainda não conseguimos nem que o aluno médio aprenda; pedir para a escola dar muito mais atenção para o aluno que vem de uma família complicada e chega na escola todo dia deprimido, com sono, com fome, a escola tem pouca energia sobrando para dar atenção para ele. Acho que falta muito para a escola brasileira conseguir incorporar esse aluno mais pobre”, lamenta.

Discurso ignora a desigualdade

O esforço é algo extremamente importante no tipo de sociedade em que vivemos, e a meritocracia tem se tornado um conceito defendido por muitos. Mas é preciso questionar a ideia de que tudo o que as pessoas conseguem ou têm decorre de tal esforço. É comum veículos de imprensa divulgarem casos de pessoas que conseguiram "subir na vida" devido a um grande empenho pessoal. Esses casos podem nos levar a pensar que, se alguém não consegue um bom emprego ou não passa no vestibular de uma universidade de prestígio, é porque não se esforçou o suficiente. Mas será que isso é verdade?

Até a Idade Média, o nascimento determinava o lugar social de cada pessoa. Um filho de nobre tinha posições sociais (como cargos na estrutura do Estado ou títulos de nobreza) garantidas pelo simples fato de ter nascido em uma família nobre. O filho de um trabalhador do campo jamais conseguiria tais títulos ou cargos. A ascensão social era algo que nem estava no imaginário das pessoas.

Com o fim desse sistema social, a ascensão da burguesia e o surgimento da democracia moderna, garantiu-se legalmente o direito de qualquer um, independente da posição social de seus familiares, poder obter um status elevado. Uma filha de um trabalhador rural pode, por direito, chegar a ser Presidente da República, juíza ou professora universitária. Desta noção consolidou-se a crença de que, para ascender socialmente, basta que nos esforcemos.

Há, porém, fortes evidências científicas, detectadas por meio de pesquisas, como as do sociólogo francês Pierre Bourdieu, que permitem questionar esse pensamento tão arraigado entre nós. No tipo de sociedade em que vivemos, qualquer pessoa pode, teoricamente, alcançar qualquer posição social. Mas, na prática, o peso da origem social ainda é muito mais determinante do que gostaríamos de acreditar.

“Para começar, nas sociedades democráticas não há posições vantajosas em número suficiente para todos. Se a totalidade dos indivíduos recorressem à mesma quantidade de esforço pessoal, não haveria como cumprir a máxima do ‘se esforce e então conseguirá o que deseja’. Portanto, esse pensamento expressa uma profecia que jamais poderia ser cumprida”, afirma Vanda Mendes Ribeiro, Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp).

Crianças de famílias mais pobres ou de posições sociais menos vantajosas têm menor rendimento nos estudos, reprovam mais e possuem índices de abandono escolar maiores. Isso independe do quanto se esforcem. Devido aos avanços das pesquisas no campo social, já sabemos que até mesmo as expectativas dos jovens com relação às suas profissões futuras são influenciadas pelo nível socioeconômico da família. Ter ou não acesso desde cedo à educação infantil, por exemplo, exerce grande impacto na trajetória escolar das crianças.

“O peso das origens do nascimento sobre as posições sociais que os indivíduos alcançam é muito forte. Isso é verdadeiro para todos os países ditos democráticos, e ainda mais determinante naqueles em que o Estado age pouco para coibir o acúmulo de privilégios. No Brasil, por exemplo, se você é de família rica terá mais chances de frequentar a educação infantil, tenderá a ser alfabetizado sem grandes dificuldades, será menos reprovado durante a educação básica, terá uma escola com aulas todos os dias e que acompanhe o ensino e a aprendizagem de cada estudante. Mas o mesmo não ocorre com aqueles alunos que estão em escolas de regiões periféricas”, reflete Ribeiro.

Sabe-se também que as redes de contatos, o conhecimento acumulado ao longo da vida e a capacidade de falar outras línguas são importantes para se galgar uma posição vantajosa na vida adulta. Mesmo que o filho de um industrial não tenha estudado tanto quanto o filho de uma faxineira, por exemplo, sem dúvida ele terá mais portas abertas para oportunidades interessantes.

A repercussão disso na escola pode ser terrível, e perpetuar as desigualdades. Diante da injustiça de ser tratado como incapaz, alguns especialistas como François Dubet afirmam que, com o tempo, alunos que "fracassam" tendem a tornar-se inertes ao ambiente escolar. Eles podem abandonar mentalmente os estudos, ou tornar-se indisciplinados ou mesmo violentos.

“Para manter o senso comum de que o esforço é o que justifica o alcance de posições vantajosas, teríamos que negar todo um corpo de estudos acadêmicos que evidenciam o peso das origens sobre as escolhas e as possibilidades de um indivíduo!”, aponta a pesquisadora.

Ao invés de recusar estas evidências, pensadores têm se dedicado a propor estratégias para uma escola mais justa, como a adoção de outros critérios que não o meritocrático na educação básica. Uma dessas propostas, que tem sido muito discutida recentemente, é o princípio de que todas as crianças devem aprender o que o Estado define como necessário nessa etapa da escolaridade. A educação básica seria, desse modo, um momento de acumular conhecimentos, de dotar a todos das mesmas condições de base, de nivelar o que foi muito diferente desde o nascimento, deixando o critério meritocrático para ser utilizado apenas posteriormente, a partir do ensino superior.

“É evidente que não podemos abandonar completamente o mérito, pois isso nos levaria de volta a uma sociedade com a determinação total do nascimento, da posição social original dos indivíduos. Devemos garantir que os adultos sejam livres para fazer uso de seus esforços para transitar socialmente, abrindo possibilidades para a mobilidade social de todo e qualquer um. Mas não podemos fazer uso de um discurso de meritocracia que justifica e reproduz as desigualdades, muitas vezes diminuindo aqueles com posições sociais menos valorizadas, fazendo vista grossa às desigualdades estruturais do pais”, argumenta Ribeiro

É preciso que ampliar a capacidade das instituições gerarem igualdade de oportunidades. Isso é extremamente necessário na Educação Básica, um momento da vida em que a sociedade determina que todos temos os mesmos direitos educacionais. O período da escolaridade obrigatória não combina com a ideia de que os resultados de aprendizagem e a trajetória escolar devam depender do esforço individual. Deve, sim, depender do esforço institucional, do Estado. Quando todos os jovens, ao deixarem a Educação Básica, tiverem galgado um patamar considerado adequado, aí então será mais justo falar em mérito para tratar do acesso às suas futuras oportunidades.

Contraponto

No Brasil, segundo a antropóloga Lívia Barbosa, pesquisadora da PUC-RJ, a meritocracia tornou-se um critério apenas eventualmente aplicado, em permanente disputa com o fisiologismo e as cotas políticas.

Para ela, não há no Brasil uma demanda coletiva pela meritocracia, seja na esfera pública, seja nas empresas privadas. Segundo a antropóloga, uma análise da história brasileira revela que a introdução de critérios relacionados à meritocracia ocorreu em diversos momentos, porém sempre de cima para baixo, sem nunca permear de maneira consistente o tecido social. Assim, passou a conviver com valores e práticas existentes, frequentemente de forma ambígua e paradoxal. “Queremos os resultados materiais da eficiência, da produtividade, da competitividade, mas não queremos seus custos pessoais. Queremos a igualdade, mas aceitamos múltiplas lógicas hierárquicas quando elas nos beneficiam”, afirma.

“Não existe aqui (no Brasil) uma ideologia meritocrática fortemente estabelecida na sociedade, mas sim sistemas e discursos meritocráticos. Entre nós existe, do ponto de vista do sistema cultural, a ideia de que cobrar resultados e ainda por cima mensurá-los, é uma atitude profundamente autoritária. Avaliar serviço, público então, é muito mais complicado. Existe nas representações coletivas brasileiras uma relação grande entre competição, cobrança de resultados e desempenho como procedimentos e processos autoritários, e não como processos funcionais ou de hierarquizar pessoas no interior de um todo para fins específicos”, argumenta Lívia.

Para a pesquisadora, os brasileiros se veem diminuídos na sua dignidade quando são cobradas e/ou avaliadas. Uma das consequências disto é que a responsabilidade pelos resultados de cada um é sempre neutralizada ou desculpada a partir do contexto em que cada um de atuou. O objetivo seria minorar pela justificação de desempenho, qualquer mácula ao sentimento de dignidade pessoal. Consequentemente muito pouca responsabilidade individual é atribuída a cada um, do ponto de vista institucional.

“A sociedade brasileira, culturalmente, rejeita a avaliação. Ela é vista como algo negativo, como uma ruptura de um universo amigável, homogêneo e saudável, no qual a competição, vista como um mecanismo social profundamente negativo, encontra-se ausente”, afirma a pesquisadora.

Barbosa diz, ainda, que a falta de um sistema meritocrático no Brasil contribui para que as pessoas não busquem um melhor aproveitamento dos seus talentos. Segundo sua análise, no Brasil o eixo da responsabilidade individual sobre as realizações pessoais é quase inexistente. É centrado nas condições de trabalho ou no mundo a sua volta. “Você tem muito pouca responsabilidade sobre o que você faz. Então as pessoas têm uma margem imensa para justificar porque não fazem o que deveriam fazer. Ou seja, aparecem sempre espaços para justificar porque não foi feito o que deveria”.

A pesquisadora argumenta que há no Brasil uma ideia de que a pobreza não tem relação alguma com o esforço pessoal, é apenas resultado das desigualdades. “A pobreza no Brasil não tem culpa. O pobre nos EUA se sente envergonhado por ser pobre, porque parte do seu fracasso é visto como responsabilidade dele. No Brasil é da sociedade, você não tem nenhuma responsabilidade por sair daquela posição. O estado tem que chegar até você e dar condições para você se mexer. E se finalmente você tem todas estas condições e ainda assim não se mexe, bem é o seguinte: este é o seu estilo. Este é um argumento que ouvi inúmeras vezes na administração pública: este é o meu ritmo, este é o meu jeito, para que eu vou correr? Quem quer fazer geralmente faz, independentemente de qualquer situação. Na universidade não há premiação para o bom professor em nenhum aspecto, mas aqueles que fazem pesquisa, orientam alunos, fazem porque querem fazer, não porque a universidade lhes gratifica em nada disto”, sustenta.

Lívia completa sua análise afirmando que nada no Brasil pode implicar em cobrança e em hierarquia, porque estes são fatores associados com autoritarismo, por isto é muito difícil administrar do ponto de vista público.

Economista e ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco concorda. “Parece haver algo de muito suspeito no reino das políticas públicas quando o talento, o das empresas e também o das pessoas, deixa de ser reconhecido e recompensado”, afirma.

Para ele, está surgindo uma nova cultura no Brasil que utiliza os dogmas da inclusão e da igualdade em detrimento de qualquer distinção pelo mérito; premiações e bonificações têm sido crescentemente tratadas como formas neoliberais de discriminação.

“Tudo se passa como se a velha cultura do privilégio tivesse absorvido o politicamente correto, com temperos de populismo, e criado uma neoideologia cujo princípio fundador seria o seguinte: como todos os homens e mulheres são iguais, qualquer diferença de desempenho escolar ou profissional configura a presença de desigualdade prévia ao exame que caberia ao Estado corrigir ou compensar”, sustenta Franco.

Desenhando para entender

De modo simples e quase didático, o ilustrador australiano Toby Morris consegue desconstruir esse conceito. Por meio de duas histórias distintas, em um quadrinho intitulado “On a Plate” (em português, De Bandeja), Morris resume bem a condição a que muitos estão submetidos e expõe os privilégios que os defensores da meritocracia carregam consigo e não enxergam. Confira a versão com a tradução livre feita pelo Catavento.


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