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Voto dos mais idosos dá fôlego a xenofobia na Europa

Publicado em 24/06/2016 12:00 -

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O Reino Unido mergulhou num cenário de incerteza e turbulência tão logo foi encerrada a contagem dos 17,4 milhões de votos que garantiram o histórico rompimento do Reino Unido com a União Europeia (UE).

O "Brexit", fusão das palavras em inglês "saída" e "britânica", venceu com 52% dos votos dos britânicos que participaram do plebiscito, mas deixou o país sem liderança para conduzir o processo de retirada do bloco e assustou o mercado financeiro a ponto de derrubar bolsas em diferentes continentes e provocar a desvalorização recorde da libra em relação ao dólar em décadas.

Ainda na manhã de sexrta-feira (24), David Cameron, que comandou a campanha pela permanência no bloco, anunciou que renunciará ao cargo de premiê. Cameron, contudo, não fixou uma data para deixar o número 10 da rua Downing, residência e escritório oficial do primeiro-ministro britânico. Deixou não apenas o Partido Conservador britânico mas também o Reino Unido sem saber quando começa o processo e também quem será o responsável por negociar os termos Brexit em nome dos britânicos.

"O Reino Unido precisa de uma nova liderança. Como primeiro-ministro vou fazer tudo que posso para segurar o navio durante as próximas semanas e meses. Mas eu não acho que seria certo para mim ser o capitão que orienta nosso país para seu próximo destino", afirmou, com a voz embargada, citando o encontro dos conservadores em outubro como uma possível data para a troca de comando.

Além de perder o premiê e de oficializar uma disputa interna no Partido Conservador, o Reino Unido ouviu nesta quarta integrantes do principal partido de oposição, o Trabalhista, verbalizarem a vontade de trocar de líder, viu a Escócia e a Irlanda do Norte ameaçarem dar um passo rumo à independência e assistiu ao populismo xenófobo festejar o resultado do plebiscito em toda Europa.

Tamanha turbulência foi classificada pelo jornal "Financial Times" de "crise constitucional" de grande escala.

Para agravar ainda mais o cenário de incerteza, há muitas dúvidas sobre quando começa e como será o processo de saída do bloco.

O Parlamento britânico precisa referendar o resultado do plebiscito e o Conselho Europeu, com sede na Bélgica, deve ser formalmente notificado para dar início às negociações previstas para durar pelo menos dois anos.

"O que acontece a seguir é a grande pergunta, que ninguém ainda pode responder", observa o professor de política Tim Bale, da Universidade Queen Mary, em Londres.

Uma eventual tentativa do Parlamento de rejeitar o resultado do plebiscito seria tão improvável quanto suicida, mas nada impede que os deputados atrasem o processo.

"O Parlamento, que, afinal, contém uma grande quantidade de parlamentares pró-UE poderia tornar as coisas mais complicadas e é por isso que o novo primeiro ministro vai querer uma eleição antecipada", diz Bale.

Não há, contudo, um novo primeiro-ministro. A renúncia de Cameron abriu a disputa no partido, que está rachado. Os dois principais nomes que surgem automaticamente são do ex-prefeito de Londres, Boris Johnson, e da ministra Theresa May – esta com as chances reduzidas por ter apoiado a permanência no bloco europeu.

Johnson, que abraçou a campanha para sair do bloco, afirmou nesta sexta que não há pressa para dar início ao processo de retirada da UE. Nesta sexta, ele ainda comemorava a vitória falando em "oportunidade gloriosa" para o Reino Unido.

Apesar de ter grande apoio na base do Partido Conservador, ele ainda precisa costurar suporte entre os parlamentares, que têm a palavra final na escolha do líder, que automaticamente vira primeiro-ministro.

"Boris Johnson está com força, é muito difícil ver alguém capaz de pará-lo. Claro que, às vezes, quem sai na frente pode tropeçar –e um líder mais jovem com um background mais 'comum' poderia nos surpreender, mas eu duvido", completa o professor Bale.

A disputa entre os conservadores não é a única que o Reino Unido vai precisar encarar. A liderança de Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista também está sendo questionada, apesar de ele garantir que não renuncia.

Voto dos mais velhos

O voto a favor de permanecer na União Europeia não vinha apenas da Escócia, Irlanda do Norte e Londres, mas também dos jovens: era maioritário entre os menores de 50 anos, especialmente entre os que não fizeram ainda 25 anos. No entanto, a maioria dos mais velhos apostaram por deixar o bloco europeu.

Os ingleses mais jovens são os que mais tempo terão que viver com uma decisão que, em sua maioria, não estão de acordo. Segundo uma pesquisa da empresa de investigação de mercado YouGov, 64% dos britânicos de entre 18 e 24 anos prefeririam ficar na UE. Tendo em vista a esperança de vida e que este processo não parece ser facilmente reversível, esses cidadãos passarão o resto de sua vida, quase 70 anos, fora dela.

Xenofobia

Se existem ganhadores claros da vitória do não britânico à União Europeia são os partidos da extrema direita europeia. A eclosão do ceticismo europeu britânico ocorre em um momento de profundo desencanto e renovados sentimentos nacionalistas no Velho Continente que as forças xenófobas souberam explorar com eficiência.

O júbilo dos radicais se traduziu desde o começo da manhã de sexta-feira em exigências concretas. “A Liberdade venceu”, publicou no Twitter Marine Le Pen, presidenta da Frente Nacional francesa. “Como peço há anos, agora é preciso convocar um plebiscito na França e nos outros países da UE”. O holandês Geert Wilders pediu a mesma coisa, o político de cabeleira oxigenada que lidera as pesquisas de seu país com um projeto político abertamente anti-imigração. “Queremos ser donos de nosso próprio país, de nosso dinheiro, nossas fronteiras e nossa política imigratória”, disse em um comunicado. “Nós holandeses precisamos ter a oportunidade de expressar nossa opinião sobre nossa permanência na UE o quanto antes”, acrescentou agitando o fantasma do chamado Nexit, uma hipotética saída da Holanda do bloco comunitário que hoje se mostra mais possível do que nunca. Os dois países são membros fundadores da União.

Na Itália, Matteo Salvini, da Liga Norte, felicitou “os cidadãos livres” que não sucumbiram “à chantagem, às mentiras e às ameaças”.

Wilders é junto com Le Pen a grande referência dos partidos xenófobos bem-sucedidos na Europa continental e que mostram uma crescente coordenação e assertividade, conscientes de que o vento sopra a seu favor. O Brexit é o grande suporte a seu ideal, cuja espinha dorsal é composta pela xenofobia, o recuo identitário, o binômio povo-elite e o protecionismo econômico. Ou seja, a recusa de tudo o que venha de fora de suas fronteiras, com as políticas europeias na cabeceira. A crise econômica, os refugiados, o islã… vale tudo para transformar Bruxelas no perfeito bode expiatório. O Brexit é o ponto de inflexão que esperam há anos e agora acreditam que será o início do fim do projeto europeu. São respaldados por milhões de eleitores aborrecidos com a UE.

Os holandeses expressaram claramente sua ira no começo do ano, no plebiscito contra o acordo de associação da UE com a Ucrânia vencido por larga margem pelos contrários à União. Em 2005, os holandeses já refutaram o projeto de Constituição Europeia, depois rebaixado no formato do Tratado de Lisboa. “Se eu me tornar primeiro-ministro, ocorrerá um plebiscito para deixar a UE”. As eleições estão previstas para o começo de 2017 e Wilders arranca como franco favorito nas pesquisas. O boicote dos outros partidos prejudica, entretanto, suas possibilidades de Governo.

Seis dias antes do plebiscito, os críticos à UE realizaram uma reunião em Viena, batizada de “a primavera dos patriotas”. Era um respaldo aos partidários do Brexit, mas também para demonstrar seu crescente poderio pan-europeu como membros de um grupo na Eurocâmara, de onde destroem por dentro o projeto comunitário. Lá, Le Pen – que será o principal nome da Frente Nacional nas eleições presidenciais em 2017 – defendeu uma Europa por conta própria, que cumpra os desejos e exigência de cada país membro.

O líder da também bem-sucedida ultradireita austríaca, Heinz Christian Strache, enfatizou a democracia direta e a conveniência de se consultar a população sobre seu futuro, tal como os britânicos acabaram de fazer. Disse que a Suíça é seu modelo. Seu partido, o FPÖ, acaba de perder as eleições presidenciais por muito pouco e agora disputa o resultado nos tribunais. O cansaço dos austríacos com o bipartidarismo e a busca de uma identidade que acreditam que corre o risco de se diluir com a chegada de 90.000 asilados ao país, impulsionaram os radicais no país centro-europeu.

O timing do Brexit, como dizem os britânicos para se referir ao momento dos fatos, não poderia ser melhor para os populistas de direita. Sabem que o caldo de cultura é propício para seus interesses e acreditam que os partidos tradicionais e Bruxelas serão incapazes de reagir a tempo e de acordo com as regras. Sentem que seu momento chegou.


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