25/04/2024 - Edição 540

True Colors

Quando o ódio matou mais 50 numa boate gay num sábado qualquer

Publicado em 10/06/2016 12:00 - Guilherme Cavalcante

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A boate Pulse Night Club, em Orlando, praticamente no quintal da Disney, é tida como um dos locais bastante badalados da comunidade LGBT daquela cidade. No último dia 11, centenas de pessoas saíram de suas casas para aproveitar o sábado, numa festa latina organizada pelo club. Um sábado comum, no qual as pessoas só queriam se divertir.

Mas, na manhã deste domingo (12), os jornais traziam a notícia da morte de 20 – depois 50 – pessoas num suposto ataque terrorista no local. Por volta das 2h da madrugada, o suspeito, Omar Mateen, um homem de 29 anos, abriu fogo matando dezenas de pessoas na Pulse e fez dezenas de reféns. Ele também foi abatido pela polícia. Outros 53 seguem no hospital entre a vida e a morte.

E não, desta vez não foi ataque terrorista 'clássico', como no Bataclã, em Paris. Foi um crime de ódio mais direcionado, daquele tipo de ódio que somos educados a ter. O próprio pai de Omar relatou à imprensa que o filho tinha repulsa a gays que manifestavam carinho publicamente e que o ataque não teve relação com religião. Foi crime de ódio, mesmo, daquele tipo que não deixará de acontecer tão cedo, porque nada se faz para conter esse tipo de atitude e de ideologia anti-diversidade. Nem nos EUA, muito menos no Brasil.

E quer saber? Do jeito que as coisas estão, atentados como esse, com homicídios em massa, continuarão acontecendo ad eternum. Não tem prazo para acabar. Pelo menos não enquanto pessoas desprezíveis como Donald Trump seguirem no favoritismo à presidência dos EUA, enquanto gente como Jair Bolsonaro – que prega a homofobia de forma institucional – for recebidas por multidões em aeroportos, como aconteceu nesta semana em Campo Grande. Não enquanto o fundamentalismo religioso continuar incitando multidões contra LGBTs e o Estado continuar fechando os olhos para o que acontece nos templos. Não enquanto não houver nenhum tipo de pena para quem ultrapassar os limites do bom senso e discriminar e violentar pessoas LGBT á lá vontè.

Não enquanto nossa sociedade não deixar de ser uma fábrica de agressores potenciais inconformados com a perda de alguns privilégios.

Na realidade, ataques como o da Pulse são só mais um upgrade do que aconteceu em 28 de junho de 1969, no Stonewall Inn, no Brooklin (NY), quando a polícia atacou gays, lésbicas e travestis que lá confraternizavam. Só que desta vez não houve levante, não teve batalha, foi na covardia mesmo. Ninguém joga uma pedra contra um cara armado com rifle e vendo seus amigos ensanguentados e agonizando no chão. O que aconteceu é que desta vez foram 50 de uma vez, diferente dos 50 (muito mais que isso, na verdade, só travestis a conta é de quase uma a cada dois dias) que morrem espalhados durante o ano vítimas de agressões semelhantes, porém isoladas.

Isso automaticamente me faz recordar de um episódio da série Queer As Folk, sucesso na década passada, que narrava a vida de um grupo de amigos gays, lésbicas e simpatizantes numa cidade chamada Pittsburg, no norte dos Estados Unidos. Num dos episódios das temporadas finais, um atentado terrorista motivado por ódio matou também dezenas de pessoas na boate fictícia Babylon, durante um show de Cindy Lauper, um dos maiores ícones LGBT.

 

Na série, deu para ver que aquilo mexeu com a comunidade local. Pessoas voltaram ao armário, digamos assim. Ficaram reclusas e assustadas por muito tempo. Não saíram de casa, não confraternizavam mais. Tinham medo latente do mundo que não lhes comportava e do que as pessoas seriam capazes.

 

É o que deverá acontecer também em Orlando. E nos EUA. Enfim, nas cidades de quem leu qualquer notícia sobre esse atentado… Afinal, será que nem por uma fração de segundo vamos temer o inesperado (que no final das contas é mais que esperado)? Será que não vamos questionar que nossa exposição, nossa sensação de liberdade e de acolhimento não passam de ilusão? Quem quer pagar pra ver? Atentados terroristas são isso, mesmo: um aviso do que pode acontecer para quem andar fora da linha. 

Só que 'andar fora da linha', no nosso caso, é uma necessidade. É uma condição de existência, sem a qual somos como qualquer um. Andar na linha, portanto, é voltar para o escuro do armário. É um destino triste, já que contra armas e violência desse porte nós não conseguimos reagir com pedras, como em 1969. O 'Orgulho' não nos blinda.

O que nos resta de esperança são justamente as ideias que vão de encontro aos projetos de lei que o conservadorismo tenta a todo tempo aprovar: leis da mordaça, proibição de aborto, lei da cristofobia… É por isso que precisamos do kit anti-homofobia, da desconstrução de gênero em sala de aula, de conteúdo pró-diversidade voltado à crianças, das representações na TV, no cinema, na publicidade.

Do contrário, só resta o armário, mesmo, para quem quiser viver.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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