18/04/2024 - Edição 540

Especial

Um futuro para o ativismo político

Publicado em 25/05/2016 12:00 -

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A reorganização que a administração de Geraldo Alckmin (PSDB) em São Paulo tentou impor aos estudantes das escolas públicas do Estado no ano passado foi o start para um movimento que se espalhou pelo Brasil: a ocupação de escolas por alunos, pais e professores. Para o filósofo Pablo Ortellado, este movimento é fruto de Junho de 2013, quando 12% da população brasileira se engajou em protestos pela defesa de direitos sociais e por uma crítica ao sistema de representação.

Os estudantes secundaristas são a expressão desse legado, uma expressão mais ou menos espontânea da organização direta, sem a mediação e sem o controle de organizações partidárias. Para Ortellado, este movimento aponta para o surgimento de uma nova geração de ativistas formada politicamente com a ideia de que é possível derrotar o poder do Estado quando ele ameaça os direitos sociais, de que essa luta pode ser feita fora das instituições.

“Isso poderá reforçar um novo componente da política dos movimentos sociais brasileiros nos próximos anos. O que estamos vendo, nos últimos anos, é o surgimento de novas forças políticas da sociedade civil, que não estão buscando ressonância nas instituições e nos partidos políticos. Isto é, estão tentando pressionar o sistema político desde fora e por isso, para eles, as ruas são tão importantes”, afirma o filósofo.

A gênese

Assim que a notícia da reorganização em São Paulo — que, entre outras coisas, fecharia mais de 100 escolas públicas — chegou aos estudantes eles decidiram pelas ocupações, numa tentativa a princípio desesperada de evitar o que consideravam ser ruim para eles.

Muitos falavam em não ter como pagar por condução para se deslocar para uma nova escola, outros explicavam que os pais, que tinham empregos com horários fixos, não poderiam levá-los para uma escola em outro município e que não haveria como lidar com o fato de agora cada filho estar em uma escola diferente.

Por meio das redes sociais e da comunicação imediata, os estudantes de várias escolas ocupadas conseguiram arquitetar estratégias de protestos e novas ocupações. No começo, eles pediam que a reorganização não fosse imposta e que pudessem participar de grupos capazes de avaliar a melhor forma de estruturar o sistema de ensino; os estudantes acreditam que podem ajudar com ideias e informações e, assim, colaborar para a melhoria do ensino público. Pediam tempo para participar do processo. Com o passar dos dias, e diante da violência da polícia, entenderam que deviam fazer mais: não era suficiente apenas lutar para que a reorganização deixasse de ser imposta goela abaixo. Era necessário mostrar as atuais condições das escolas e exigir melhores estruturas e tratamento.

Na Escola Caetano de Campos (na Aclimação), por exemplo, turmas com mais de 50 alunos se aglomeravam em salas de aula, apesar de outras salas estarem trancadas e ociosas há anos. Alegar que a reorganização do ensino em São Paulo seria necessária devido a existência de escolas ociosas não batia com esta realidade. Como pode estar ocioso um sistema que aglomera alunos em salas de aula, tem menos professores do que o ideal e faz pouco caso de espaços públicos?

As melhores escolas do mundo – sejam instituições privadas ou escolas públicas de países como a Finlândia – adotam o conceito de "educação por projetos". Em vez de socar conhecimento na cabeça de alunos desinteressados, instigam-nos para que executem projetos ambiciosos. No caminho, vão assimilando conteúdos do currículo. Pesquisas neurocientíficas comprovam que esse método propicia um aprendizado mais profundo e forma pessoas mais capazes de trabalhar em equipe e de lidar com as questões complexas do século 21. Também gera gente mais prática, que vai lá e faz, em vez de esperar que alguém faça, tipo o governo.

A tal reorganização proposta por Alckmin ia no sentido contrário desse conceito. Primeiro porque não envolveu os alunos na decisão – e a premissa da educação por projetos é colocar o aluno no centro e na origem de tudo. A única tentativa de persuasão do governo envolveu cassetetes e gás lacrimogênio. Segundo porque, ao fechar escolas, transferir centenas de milhares de alunos e diminuir o tempo que cada um passa em cada escola, ela aprofundava aquela que é uma das falhas mais graves da educação pública brasileira: a desconexão da escola com o mundo real em volta dela.

Rio Grande do Sul

O exemplo de autonomia dos secundaristas paulistas se espalhou pelo Brasil. Hoje, o movimento encontra-se particularmente fortalecido em Porto Alegre (RS), onde 150 escolas encontram-se ocupadas atualmente.

O movimento era planejado desde o início de abril por grêmios estudantis, sob o fio condutor da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) e apoio do Cpers/Sindicato, mais foi adiado em razão de conflito de interesses entre Ubes, Cpers e o grêmio estudantil da Escola Padre Reus, na zona sul da Capital, onde havia um acordo para iniciar o movimento no último dia 5. Enquanto as entidades queriam que a escola defendesse bandeiras estaduais da educação pública, como a valorização dos professores e o veto ao PL 44/16, que avaliam ser uma brecha para a privatização do ensino, os alunos preferiam debater os problemas da própria escola, como o sucateamento da biblioteca e da ala de informática.

Vendo a disputa na trincheira, outros grêmios estudantis, que aspiravam um movimento simultâneo, passaram a organizar movimentos independentes. E quem tomou a dianteira foi uma escola que mantinha certa distância das entidades: o Colégio Estadual Emílio Massot, no bairro Cidade Baixa. “Vínhamos pensando em uma ocupação desde o início do ano, não tínhamos por que esperar um movimento da Ubes ou qualquer outra entidade”, diz Marcos Anderson Mano, presidente do grêmio estudantil do Emílio Massot. 

Com 18 anos, Marcos é "filho" das manifestações pelo Passe Livre, que se espalharam pelo país em 2013. Sem filiação partidária ou adesão a coletivos universitários, soube pelas redes sociais das ocupações em São Paulo e começou a articular um movimento local com companheiros do grêmio. “Há anos a escola sofre com atraso de verbas e falta de monitores para as turmas da tarde e da noite. Como o governo do Estado não atendia nossa reivindicação, resolvemos ocupar”, diz.

Apropriação

Uma das características mais marcantes do movimento é o da apropriação da escola, a ideia de que a escola tem dono: os estudantes, pais, professores e demais funcionários. Na imensa maioria dos casos o que se viu foi estudantes limpando e pintando a escola, fazendo pequenas reformas, e trazendo palestras, oficinas e shows.

Durante a ocupação na Caetano de Campos, por exemplo, os alunos se organizaram para conseguir palestras e oficinas sobre racismo, feminismo, literatura, fotografia e uma aula sobre a América Latina dada por um professor da USP. E as demais escolas ocupadas seguiram no mesmo ritmo. Viver em comunidade acaba extraindo de nós o que temos de melhor.

Há todo um simbolismo dos estudantes de se apropriar da escola e transformá-la em um lugar melhor, a despeito do discurso dos Governos, que tentam justamente caracterizar o contrário, falando em depredação e vandalismo. Existe uma disputa política entre os estudantes e o poder constituído sobre o significado das ocupações dos secundaristas: se ela é de violação e de destruição da propriedade da escola ou, pelo contrário, se é a apropriação da escola pelos seus legítimos ocupantes.

Jovens que, ao se perceberem privados de uma educação minimamente decente, se revoltam e decidem dar um recado ao chefe do estado merecem aplausos. Qualquer arranjo social que iniba ou impeça que a capacidade criativa do ser humano se manifeste é imoral. Estruturas hierárquicas que façam uso de formas autoritárias de poder devem ser questionadas e combatidas, exatamente como esses jovens secundaristas fizeram.

Disse o escritor uruguaio Eduardo Galeano: “Somos o que fazemos, mas somos principalmente o que fazemos para mudar o que somos”. Portanto, esses jovens que ocuparam (e ainda ocupam) escolas Brasil afora já são mais do que muitos de nós, e certamente mais do que as administrações dos governos cujas ações questionaram. A batalha por melhores condições de ensino pode ser entendida como a batalha por liberdade, e a batalha por liberdade muitas vezes passa pela desobediência civil.

Teoria da Justiça

Poucos duelarão com a ideia de que o ensino público no Brasil precisa ser redefinido, mas a questão é o que fazer para melhorá-lo. E um plano de gestão que começa com o fechamento de quase cem escolas não pode ser o ideal — especialmente se a intenção for preparar o sistema de ensino público para seguir os moldes do americano: num primeiro momento ser terceirizado e depois privatizado.

Nas palavras do professor de Filosofia norte-americano John Rawls: “A distribuição natural de justiça (riqueza e poder) não é justa ou injusta; nem é injusto que uma pessoa nasça em uma posição particular dentro de uma sociedade. Esses são apenas fatos naturais. O que é justo ou injusto é a forma como instituições lidam com esses fatos”.

Os secundaristas resolveram lidar eles mesmos com a injustiça a que estavam sendo expostos, sem a intermediação de ninguém. Estes alunos, mesmo sem saber, vivenciaram comunidades com características anarquistas; e aqui é preciso entender o anarquismo para além do mascarado que atira pedra em vidro de concessionária. Conceitualmente, o anarquista é aquele para quem a liberdade não é uma abstração, mas o fundamento da vida humana. O anarquismo lida com maneiras de construir uma sociedade bem organizada e livre a partir da base, detectando e destruindo formas de dominação que não sejam legítimas — e era exatamente isso o que faziam aqueles jovens. Não havia um líder, ou lideranças, tudo era votado e acontecia por meio de trabalhos voluntários.

Para Ortellado, os estudantes envolvidos nas ocupações são mais autônomos do que autonomistas, no sentido de que são ideologicamente contrários a partidos. “Eles são uma expressão mais ou menos espontânea da organização direta, sem a mediação e sem o controle de organizações partidárias. Embora exista uma parte significativa desse movimento que está sob a influência da UNE (União Nacional dos Estudantes) e do PCdoB, tem outra parcela que está sob a influência dos grupos autonomistas, no sentido ideológico do termo. Porém, a maioria deles não é nem uma coisa nem outra; são apenas estudantes que estão se organizando autonomamente e tentando se manter à parte de organizações políticas, na defesa dos seus direitos”.

Liberdade implica responsabilidade

Liberdade é o direito ao pleno e completo desenvolvimento do poder material, intelectual e moral de cada homem e mulher. Liberdade não é baderna, mas um conceito que implica também responsabilidade porque, dadas as condições ideais, cabe ao ser humano atingir o maior nível de desenvolvimento possível, e cabe à sociedade usá-lo como fim e não como meio.

No entanto, é também importante e legítimo que prejudicados e excluídos lutem pelo que acham justo, e o único barulho que incomoda o poder estabelecido é o das ruas. “Se um homem age de forma puramente mecânica”, disse o linguista, anarquista e filósofo norte-americano Noam Chomsky, “reagindo a ordens externas e instruções em vez de agir determinado por seus próprios interesses, energias e poderes, podemos até admirar o que ele faz, mas desprezaremos o que ele é”.

Para o anarquismo, toda e qualquer forma de autoridade, dominação e hierarquia, a estrutura autoritária, precisa se provar justificável e legítima. Não sendo (como quase nenhuma o é), deve ser destruída. O estado não pode definir o que é legítimo, embora possa definir o que é legal e fiscalizar essa legalidade. “Mas poder não significa justiça”, disse certa vez Chomsky em debate com o filósofo francês Michel Foucault. “Poder também não significa correção, portanto o estado pode definir alguma coisa como desobediência civil e estar errado a respeito disso.”

Espelho norte-americano

Num mundo ideal, no qual cada cidadão seria livre para exercer seu talento e criatividade, o estado talvez devesse nos fornecer saúde, transporte e ensino gratuitos e de qualidade. Não vivemos nesse mundo e há quem batalhe para que o estado saia do jogo e para que as regras do “livre mercado” invadam os setores de saúde, transporte e ensino. Porém, se a intenção é transformar o ensino público brasileiro em coisa semelhante ao norte-americano, é bom conhecê-lo melhor — e saber que desde a era Ronald Reagan o sistema tem cada vez menos intervenção federal e mais “livre” mercado.

Para ter uma ideia do que acontece por lá recomendamos dois documentários: Fed Up (2014) e Torre de Marfim (2015). Fed Up mostra como, em 1981, Reagan cortou quase US$ 2 bilhões em investimentos no setor da educação pública. Sem verba, as escolas fecharam seus refeitórios e recorreram à indústria do alimento para poder dar comida aos alunos. O resultado: em 2006, 80% das escolas públicas tinham contrato de exclusividade com alguma empresa de refrigerantes e mais de 50% delas tinham contratos com empresas de fast food, como McDonald’s e Pizza Hut. As escolas servem hoje a seus alunos refeições compostas de batatas fritas, pizza, hambúrguer e de toda a sorte de refrigerante e sucos açucarados.

Não por acaso, existem hoje nos Estados Unidos dezenas de milhares de crianças com diabetes tipo B, um tipo que antes só era encontrado em adultos, e uma epidemia com a qual muitos médicos não sabem como lidar. Em 2010, quando o governo tentou intervir e mudar um pouco o cenário, tirando da pizza o rótulo de “refeição”, a indústria alimentícia recorreu alegando que seria prejudicada. Ficou combinado que pizza poderia ser considerada uma refeição desde que tivesse molho de tomate — porque, afinal, o tomate é um legume. O mesmo vale para a batata frita, que entrou para a lista de “legumes” a fim de que as escolas pudessem oferecer batata frita aos alunos preenchendo sua cota de “legumes” em uma refeição. Sei que soa absurdo, mas é apenas a realidade do atual cenário norte-americano.

Torre de Marfim (2015) trata da falência do ensino superior nos Estados Unidos e pergunta: as universidades valem o que custam? A dívida estudantil americana é de US$ 1,2 trilhão, ou R$ 4 trilhões. Essa é a quantidade de dinheiro que alunos que terminam o ensino médio precisaram emprestar dos bancos para se matricular e pagar anuidade nas universidades dos Estados Unidos, muitas delas “públicas”, mas vivendo sob a experiência da gestão terceirizada e administradas como corporações. Atualmente, o universitário norte-americano entra no mercado de trabalho devendo, em média, US$ 35 mil aos bancos.

O que um cenário como esse faz com a criatividade? Mata pela raiz. Um jovem que começa a vida devendo milhares de dólares a uma instituição financeira terá de recorrer a empregos que reforçam o sistema em vez de se entregar a outros que possam confrontá-lo, e qualquer sonho de se tornar um cientista, um acadêmico ou de trabalhar em projetos sociais terá de dar lugar a realidades que o tornem capaz de suprir a dívida contratada.

Nova disciplina

No livro Homenagem à Catalunha, George Orwell conta como se encantou com a revolução anarquista espanhola de 1936 e lutou — ao lado de anarquistas e de marxistas antistalinistas — entrincheirado nas montanhas da Catalunha. É um período histórico do qual há poucos registros, mas o livro de Orwell é lindo e detalhado.

Aliás, Orwell, também autor de A Revolução dos Bichos, tão usado como propaganda anticomunista, tinha escrito uma introdução que foi tirada da edição final porque dizia que, embora o livro tratasse de estados totalitários, era possível encontrar na Inglaterra “livre” daquela época os mesmos traços de opressão e doutrinação a ideias consideradas populares. O que ele explicava é que, no caso da Inglaterra, essa doutrinação não necessitava do uso da força.

Chomsky ajuda a entender Orwell quando diz que em sociedades chamadas de democráticas e dominadas pelo poder concentrado do capital privado o doutrinamento das massas não faz uso da força, mas ele está lá, atuante, sendo exercido pela propaganda e pelo sistema educacional que, desde cedo, ensina o que podemos ou não pensar, dizer ou fazer. A revolucionária Rosa Luxemburgo (1871-1919) disse: “Apenas eliminando os hábitos de obediência e servidão até a última raiz a classe trabalhadora poderá entender uma nova forma de disciplina que se levantará do livre consenso”.

Novos ativistas

O movimento de ocupação das escolas está suscitando a emergência de uma nova geração de ativistas que, mesmo sem se darem conta, tem em sua formação estes conceitos libertários. Os estudantes que ocuparam e que ainda estão ocupando as escolas são muito jovens, têm entre 13 e 17 anos. Nas ocupações do ano passado, o grupo organizador de ativistas, em cada escola, tinha entre 30 e 50 pessoas. Considerando que foram 200 escolas ocupadas, há algo em torno de seis a dez mil ativistas que foram formados nesse ciclo.

“Essas são pessoas que foram formadas politicamente com a ideia de que é possível derrotar o poder do Estado quando ele ameaça os direitos sociais, de que essa luta pode ser feita fora das instituições. Isso poderá reforçar um novo componente da política dos movimentos sociais brasileiros nos próximos anos, porque no futuro um número grande de ativistas desta nova geração passará a compor os movimentos sociais brasileiros, reforçando essa nova perspectiva que já estava presente nos movimentos anteriores, mas que ganhará a adesão de muita gente”, afirma Pablo Ortellado.

O que estamos vendo, nos últimos anos, é o surgimento de novas forças políticas na sociedade civil, que não estão buscando ressonância nas instituições e nos partidos políticos. Isto é, estão tentando pressionar o sistema político desde fora e por isso, para eles, as ruas são tão importantes.

E as ruas têm sido, desde o final dos anos 1990, ocupadas quase que exclusivamente por grupos de jovens. São eles que levantaram as reivindicações pela redução das tarifas de transporte, as reivindicações do novo feminismo, do movimento contra o extermínio dos negros na periferia, o movimento pela legalização da maconha, pela adoção de políticas a favor das bicicletas, em defesa de espaços urbanos, como o Parque Augusta em São Paulo e o Cais José Estelita, no Recife. São movimentos formados praticamente apenas por jovens que estão na faixa etária do final da adolescência até os 30 anos.

Críticos acusam o anarquismo de ser uma filosofia utópica. Contudo, antes de tudo, ele não tem a pretensão de ser um fim: quer apenas apontar um caminho para a liberdade e para a igualdade, uma tentativa da qual os estudantes secundaristas fizeram uso, até sem saber. Não temos como conhecer que tipos de sociedades funcionam ou não, a não ser que as testemos. Entre a utopia anarquista e a distopia que vivemos hoje, quem não ficaria com a primeira opção?


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