25/04/2024 - Edição 540

Entrevista

A ocupação de escolas é o filho mais legítimo de Junho de 2013

Publicado em 25/05/2016 12:00 -

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Em Junho de 2013 12% da população brasileira se engajou em protestos pela defesa de direitos sociais e por uma crítica ao sistema de representação. Mais recentemente, a ação dos estudantes secundaristas na ocupação de escolas é a expressão desse legado. Esta é a análise do filósofo Pablo Ortelado. Nesta entrevista, ele destaca o caráter autônomo destas manifestações e sua desvinculação dos partidos políticos e seus métodos tradicionais de mobilização. Para Ortellado, estes jovens comporão uma nova geração de ativistas políticos e sociais.

 

Como analisar as ocupações das escolas em vários estados do país? Qual é o significado dessas ocupações?

As ocupações atuais são desdobramentos das ocupações do ano passado, que foi uma das estratégias usadas pelo movimento dos secundaristas para se organizar contra o fechamento das escolas em São Paulo. Essa foi uma das várias “armas” utilizadas pelo Movimento de Estudantes Secundaristas, que ganhou muita proeminência porque foi muito eficaz. Quando o governo do Estado de São Paulo anunciou a chamada “reorganização escolar”, que consistia no fechamento de 200 escolas, os estudantes fizeram uma série de mobilizações: primeiro fizeram atos nas escolas, depois fizeram atos nos bairros, atos centralizados na cidade, ocupações das escolas e, por fim, o trancamento de vias importantes. Portanto, houve um conjunto amplo de táticas utilizadas pelo Movimento dos Secundaristas, mas a que ficou conhecida como “símbolo do movimento” foi a ocupação de escolas. As ocupações viraram um símbolo dos estudantes por uma série de motivos, especialmente porque havia uma afirmação do espaço escolar, que estava sendo ameaçado de ser fechado.

Os estudantes se apropriaram do espaço da escola e realizaram uma série de atividades, como palestras, oficinas, fizeram pequenas reformas nas escolas, e essa apropriação direta gerou uma grande simpatia da comunidade, não só da comunidade escolar – pais e professores -, mas também da sociedade em geral. Acredito que esse sucesso fez com que o governador de São Paulo [Geraldo Alckmin] suspendesse temporariamente, no ano passado, o fechamento das escolas e demitisse o Secretário de Educação. Essa forma de manifestação foi adotada também nas escolas técnicas de São Paulo, sobretudo para reivindicar alimentação escolar, que estava ausente ou perdendo qualidade.

Essas manifestações dos estudantes têm alguma relação com Junho de 2013?

Acredito que essas ocupações são o filho mais legítimo das manifestações de Junho de 2013, porque na gênese dessas ocupações vemos a agitação de grupos que estavam ligados ao MPL (Movimento Passe Livre). Além dessa conexão direta, as ocupações das escolas são a principal encarnação do espírito de Junho de 2013. Além da luta contra a redução da tarifa, Junho de 2013 foi uma grande mobilização da sociedade brasileira, criticando a representação política e defendendo direitos sociais, como direito ao transporte, educação e saúde, e os secundaristas são a encarnação desse legado.

Em Junho de 2013 aconteceu um engajamento muito grande da população – 12% da população participou efetivamente dos protestos. Isso gerou um compromisso muito grande da sociedade brasileira com estas duas pautas: a defesa dos direitos sociais e a crítica do sistema de representação. Nesse sentido, a ação dos secundaristas é a expressão desse legado, é a crítica da ação dos partidos políticos num momento em que o Brasil está vivendo uma polarização política em torno do impeachment.

Os protestos contra a presidente Dilma também vieram no rastro de junho de 2013?

De certa maneira são um desdobramento disso. Não é à toa que os dois grupos que lideraram os protestos contra a presidente aludiam a esse legado: um se chama Vem Pra Rua, e o outro, MBL (Movimento Brasil Livre), deliberadamente para confundir com MPL (Movimento Passe Livre). Mas eles estão trabalhando somente um dos legados de Junho, que é a crítica do sistema de representação, enfatizando a corrupção e mobilizando esse legado com propósitos políticos de fazer uma reforma liberal do Estado brasileiro. Já os secundaristas estão trabalhando este duplo legado: seguem criticando o sistema de representação, e não estão fazendo isso por meio da ação de partidos políticos, mas por meio da luta direta, sem intermediação de partidos; e, ao mesmo tempo, estão defendendo essa pauta de ampliação, consolidação e defesa dos direitos sociais.

Está surgindo uma nova geração de ativistas: os estudantes que ocuparam as escolas são muito jovens. São formados politicamente com a ideia de que é possível derrotar o poder do Estado quando ele ameaça os direitos sociais, de que essa luta pode ser feita fora das instituições. Isso poderá gerar reforçar um novo componente da política dos movimentos sociais brasileiros nos próximos anos.

Você afirma que os jovens não têm influência partidária. Contudo, é possível identificar alguma influência teórica no modo como eles se organizam?

Não consigo vislumbrar nada. Eles são mais autônomos do que autonomistas, no sentido de que são ideologicamente contrários a partidos; eles são uma expressão mais ou menos espontânea da organização direta, sem a mediação e sem o controle de organizações partidárias. Embora exista uma parte significativa desse movimento que está sob a influência da UNE (União Nacional dos Estudantes), do PCdoB, tem outra parcela que está sob a influência dos grupos autonomistas, no sentido ideológico do termo. Porém, a maioria deles não é nem uma coisa nem outra; são apenas estudantes que estão se organizando autonomamente e tentando se manter à parte de organizações políticas, na defesa dos seus direitos.

É possível traçar o perfil dos estudantes secundaristas que estão ocupando as escolas? Há unanimidade entre os estudantes na adesão às ocupações?

Seguramente há divergências. O governo de São Paulo tem se utilizado dessa divergência que existe no meio estudantil. Como o governo do Estado teme que uma repressão direta aos estudantes traga um ônus político muito grande, o governo e a Secretaria de Educação têm estimulado os estudantes divergentes a agir contra os seus colegas, e isso tem acontecido bastante. Na verdade, essa tem sido uma estratégia que vem sendo utilizada desde o ano passado pelas direções das escolas, aparentemente por meio de uma coordenação da Secretaria de Educação. Nem todas as escolas apoiam as ocupações, e mesmo nas escolas que são ocupadas há alunos que não apoiam a ocupação, mas isso é natural em qualquer movimento social; é difícil conseguir uma unanimidade.

Qual tem sido o comportamento dos estudantes que ocupam as escolas?

Essa é uma das características mais marcantes desse movimento: ele é uma apropriação da escola, embora seja uma crítica ao sistema escolar. O que vimos no ciclo passado – este ainda está em curso e não dá para avaliar direito porque as ocupações não foram tão duradouras – foi um cuidado com a escola: estudantes limpando e pintando a escola, fazendo pequenas reformas, e trazendo palestras, oficinas e shows para a escola. Portanto, tem todo esse simbolismo dos estudantes de se apropriar da escola e transformá-la em um lugar melhor, a despeito do discurso do governo do Estado, que tenta justamente caracterizar o contrário, falando em depredação e vandalismo. Existe uma disputa política entre os estudantes e o governo sobre o significado das ocupações dos secundaristas: se ela é de violação e de destruição da propriedade da escola ou, pelo contrário, se é a apropriação da escola pelos seus legítimos ocupantes.

Os estudantes paulistas utilizaram o manual "Como ocupar um colégio?", elaborado pelos estudantes chilenos, como documento que orientou e ainda orienta as ocupações. Qual é a proposta do manual?

Ele serviu de orientação, sim, e foi da leitura deste manual que nasceu a ideia de ocupar as escolas. Na verdade, as ocupações foram influenciadas por dois elementos: o documentário do Carlos Pronzato, sobre a Revolta dos Pinguins, que é um documentário mostrando a ocupação das escolas pelos estudantes chilenos, que circulou antes de as escolas daqui serem ocupadas, na época dos protestos de rua; e pelo coletivo autonomista “Mal Educado”, que traduziu e distribuiu o manual de ocupação, que tinha sido produzido pelos estudantes chilenos e adaptados pelos estudantes argentinos, o qual mostrava como fazer a ocupação, como entrar na escola, como se organizar em comissões. Esse manual serviu de inspiração para as ocupações, que pareciam muito exóticas num primeiro momento. O fato de os estudantes verem que isto já tinha sido feito em grande escala em outros países serviu de inspiração e de motivação, pelo menos para as duas primeiras escolas que foram ocupadas no ano passado. Depois da ocupação das duas primeiras escolas, em São Paulo, as outras se sentiram mais autorizadas, de tal modo que 200 escolas foram ocupadas no ano passado. Neste ano, o que estamos vendo é que a ocupação está centrada nas escolas técnicas, que são bem menos numerosas.

Em Junho de 2013, 12% da população participou efetivamente dos protestos na defesa de direitos sociais e por uma crítica ao sistema de representação. Os estudantes secundaristas são a expressão desse legado, uma expressão mais ou menos espontânea da organização direta, sem a mediação e sem o controle de organizações partidárias.

O que vislumbra em relação à continuidade desse movimento estudantil?

Essa tática da ocupação de escolas se tornou um símbolo e está se expandindo: ocorreram ocupações em Goiás contra a transferência do controle das escolas para organizações sociais; mobilizações no Rio de Janeiro contra as más condições das escolas, porque houve um corte de recursos enorme; também houve ocupações no Ceará e no Pará. Portanto, é um processo que está se tornando comum.

Como está sendo a relação dos estudantes com a polícia?

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo tem agido de maneira muito bruta e o governo tem sempre optado por se relacionar com os estudantes mais pela força policial do que “politicamente”. Embora o ato dos estudantes seja um ato político, a resposta do governo não tem sido política, tem sido uma resposta predominantemente policial. A única resposta política que o governo de São Paulo deu para as ocupações foi o ato final de suspensão temporária da medida de fechar as escolas.

Quais são os desdobramentos políticos dessas ocupações no sentido de os governos atenderem as demandas dos estudantes?

Esse movimento tem demandas muito concretas e conseguiu uma vitória com a abertura da CPI da Merenda na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Além disso, algumas escolas que não recebiam merenda passaram a receber, e o governo também prometeu construir refeitórios em várias escolas; portanto, os ganhos concretos daquelas reivindicações já estão acontecendo.

Mas, além disso, está acontecendo a emergência de uma nova geração de ativistas: os estudantes que estão ocupando as escolas são meninos muito jovens, que têm entre 13 e 17 anos. Nas ocupações do ano passado, o grupo organizador de ativistas, em cada escola, tinha entre 30 e 50 pessoas. Considerando que foram 200 escolas ocupadas, então tivemos algo como seis ou dez mil ativistas que foram formados nesse ciclo. Essas são pessoas que foram formadas politicamente com a ideia de que é possível derrotar o poder do Estado quando ele ameaça os direitos sociais, de que essa luta pode ser feita fora das instituições. Isso poderá reforçar um novo componente da política dos movimentos sociais brasileiros nos próximos anos, porque no futuro um número grande de ativistas da nova geração passará a compor os movimentos sociais brasileiros, reforçando essa nova perspectiva que já estava presente nos movimentos anteriores, mas que ganhará a adesão de muita gente.

O que estamos vendo, nos últimos anos, é o surgimento de novas forças políticas da sociedade civil, que não estão buscando ressonância nas instituições e nos partidos políticos. Isto é, estão tentando pressionar o sistema político desde fora e por isso, para eles, as ruas são tão importantes.

Até Junho de 2013 alguns analistas comentavam que havia uma apatia generalizada, especialmente entre os jovens, em relação à política. Hoje, com as últimas manifestações, alguns analistas sinalizam a existência de um discurso fascista em relação à política.

Não concordo com esse discurso, basta ver as manifestações de rua, que há 20 anos são dominadas por jovens. Houve uma interrupção dessas manifestações durante a crise política em torno do mandato da presidente Dilma, com o surgimento de movimentos pró e contra o impeachment, mas esse foi um evento excepcional nos últimos anos, que contou com a participação, nas ruas, de pessoas na faixa etária de 40 a 60 anos.

Mas as ruas são, desde o final dos anos 1990, praticamente apenas ocupadas por grupos de jovens. São eles que estão levantando as reivindicações pela redução das tarifas de transporte, as reivindicações do novo feminismo, do movimento contra o extermínio dos negros na periferia, o movimento pela legalização da maconha, pela adoção de políticas a favor das bicicletas, em defesa de espaços urbanos, como o Parque Augusta em São Paulo e o Cais José Estelita, no Recife. Estou falando de movimentos que são formados praticamente apenas de jovens que estão na faixa etária do final da adolescência até os 30 anos.

O que estamos vendo, nos últimos anos, é o surgimento de novas forças políticas da sociedade civil, que não estão buscando ressonância nas instituições e nos partidos políticos. Isto é, estão tentando pressionar o sistema político desde fora e por isso, para eles, as ruas são tão importantes.

Após o final do processo de impeachment haverá continuidade dessas manifestações dos jovens e um esvaziamento das manifestações pró e contra o impeachment?

Esses são dois processos paralelos: acredito que as mobilizações dos jovens independem do que está acontecendo politicamente ou da situação do governo Dilma, pois esses são processos mais antigos e até mais profundos do que essa polarização política. Claro que a polarização e a disputa em torno do impeachment terminarão afetando politicamente o resto do país, mas é um fenômeno muito imprevisível, porque não sabemos quais serão os desdobramentos da Lava Jato, quem será afetado, como o governo Temer reagirá a isso, não sabemos como ficará a situação da crise econômica, se ela será aprofundada ou se o governo Temer conseguirá controlá-la. Também não sabemos qual será a capacidade política do governo Temer de aprovar as reformas que estão na agenda dele, reformas que mexem com direitos trabalhistas, como Reforma da Previdência, e a desvinculação de recursos sociais do orçamento público.

Todas essas questões são muito imprevisíveis e devem determinar o grau de polaridade no país e de agitação política de outros movimentos, que não são os movimentos dos jovens, como o movimento sindical, os movimentos que giram em torno do Partido dos Trabalhadores (PT), que têm outra dinâmica. É muito difícil prever o que acontecerá. Mas imagino que, independente do que acontecer nesses setores, essa tendência de organização autônoma dos grupos de jovens seguirá seu curso.


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