19/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Democracia: a via para a superação das desigualdades

Publicado em 12/05/2016 12:00 -

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“A democracia pode produzir pacificamente mudanças significativas na desigualdade econômica e social, se focarmos nossa análise na base e no meio da pirâmide social, não apenas no topo da distribuição”, diz a cientista política Marta Arretche, organizadora do livro Trajetórias das desigualdades – como o Brasil mudou nos últimos anos (São Paulo: Unesp, 2015). Segundo a professora da Universidade de São Paulo, a transição do governo ditatorial para a democracia nos anos 1980 é uma demonstração desse processo, que possibilitou a inclusão dos outsiders às políticas sociais e “foi o principal mecanismo de redução das desigualdades do regime democrático contemporâneo”. Na entrevista a seguir, ela fala sobre a atual situação da desigualdade no país.

 

Em seu livro a senhora afirma que a desigualdade é um fenômeno complexo que tem múltiplas dimensões. Poderia falar um pouco sobre essa ideia? De que modo esse ponto de vista pode contribuir no entendimento de contextos socioeconômicos permeados por assimetrias, conforme é a realidade brasileira?

A renda ocupa lugar privilegiado nos estudos sobre desigualdade. Entretanto, a desigualdade entre indivíduos não se resume a esta dimensão. Há razões normativas e positivas para examinar múltiplas dimensões da desigualdade. No plano normativo, o ideal de redução das desigualdades não está limitado à renda. Embora a renda seja condição essencial para uma vida decente, dissociar o acesso a serviços públicos da renda dos domicílios, em particular saúde e educação, é um objetivo aceito até mesmo pelas abordagens cujo horizonte normativo está limitado à igualdade de oportunidades.

No campo dos estudos empíricos, por sua vez, há sólidas evidências acerca das relações recíprocas entre renda e acesso a serviços. Não raro, ambos estão positivamente associados. A desigualdade resulta de um mecanismo de acumulação de vantagens pelo qual há indivíduos que têm acesso a todos os serviços públicos essenciais, ao passo que os outsiders acumulam desvantagens. Sob tais condições, a desigualdade total é de fato ainda maior do que aquela observada com base exclusivamente nos indicadores de renda, posto que resulta de um mecanismo de fusão de vantagens, derivado da superposição de diferentes dimensões do bem-estar nos mesmos indivíduos.

Pesquisas revelam que as desigualdades têm se acentuado nos países desenvolvidos, ao passo que essas assimetrias estão diminuindo em países em desenvolvimento, como o Brasil. O que esse dado representa para o contexto socioeconômico mundial e para os estudos sobre a questão da desigualdade?

Concordo com sua afirmação, mas ela precisa ser posta em perspectiva. Os países desenvolvidos lograram reduzir bastante as desigualdades no período posterior ao pós-Guerra, de modo que nos anos 1970 combinavam bem-estar e limitada desigualdade. Assim, em cerca de quatro décadas, estes países viveram um período sustentado de queda das desigualdades. Isto quer dizer que, a despeito da elevação da desigualdade a partir dos anos 1970, muitos destes países ainda têm níveis de desigualdade bem inferiores aos que hoje identificamos no Brasil.

Incluídos na arena eleitoral, os beneficiários das pensões e benefícios indexados ao salário mínimo e dos sistemas universais de saúde e educação representam um grande número de eleitores. A competição política por esta categoria de eleitores favorece, por sua vez, a contínua expansão dos benefícios.

Aqui, as desigualdades de renda, de acesso a serviços, em escala individual e regional, aumentaram significativamente durante o regime militar, como consequência de um modelo de concentrador de desenvolvimento. Nos anos 80, até mesmo países cuja renda per capita era inferior à brasileira apresentavam níveis de desigualdade mais baixos e patamares de acesso a serviços mais elevados do que aqueles encontrados no Brasil. Como o ponto de partida era muito desfavorável, os progressos obtidos nas últimas duas décadas ainda colocam o Brasil em um patamar de desigualdade superior ao de diversos países da América Latina e da Europa.

Isto quer dizer que não podemos confundir trajetória da desigualdade com nível da desigualdade. Embora estes dois fenômenos estejam estreitamente relacionados, se referem a questões diferentes. A trajetória recente mostra que nenhuma das situações é imutável. Nem os países desenvolvidos alcançaram um nível de estabilidade e de mecanismos de proteção contra a desigualdade que a tornem irreversível, tampouco o Brasil está condenado a permanecer como o campeão mundial da desigualdade.

Para a elaboração do livro foram analisados 50 anos, compreendidos entre os anos 1960 e 2010 no Brasil. Por que esse foi o período demarcado para examinar a questão das desigualdades? O que este intervalo pode revelar sobre o tema?

O Brasil viveu grandes transformações neste período. Em 1960 era um país rural, no qual as desigualdades de renda e de oferta de serviços de infraestrutura no vasto território nacional eram pequenas, na medida em que a baixa renda e ausência de serviços públicos essenciais eram mais ou menos homogeneamente distribuídas no território. O mercado de trabalho era predominantemente masculino.

Em 1970, em um país esmagadoramente católico, as mulheres tinham em média seis filhos. Em qualquer dos extremos de renda e escolaridade, o arranjo predominante era a família tradicional, restringindo o mundo feminino ao trabalho doméstico. Mais de três quartos da população brasileira era funcionalmente analfabeta. A universidade era um ambiente restrito aos homens brancos oriundos dos estratos superiores. A desigualdade entre brancos e não-brancos já começava no acesso aos bancos do ensino fundamental. A escassa oferta de profissionais qualificados garantia principalmente aos provedores masculinos grandes vantagens no mercado de trabalho e no sistema de proteção social, posto que o direito à previdência e à saúde produzia marcadas distinções de status aos detentores de uma carteira de trabalho assinada.

Na virada para o século 21 este panorama mudou bastante, correto?

Sim. Em 2010, o Brasil era um país altamente urbanizado: 85% da população brasileira vivia em cidades. Os níveis de escolaridade haviam mudado radicalmente. Entre os jovens, a conclusão do ensino básico era praticamente universal – quase 70% dos jovens completavam oito anos de estudo. Logo, completar o ensino fundamental era cada vez menos dependente da origem familiar. Na outra ponta do sistema escolar, a população de mais de 18 anos que chegou ao ensino médio pulou de 6,2 em 1980 para 39,7 milhões em 2010; a que chegou ao ensino superior passou de 3,4 para 21,5 milhões. Ambas haviam aumentado em mais de seis vezes. No mesmo período, a taxa de mortalidade infantil no Brasil caiu de 69 para 16 por 1.000 nascidos vivos e a esperança de vida passou de 62 para 73 anos. A partir de 1970, as mulheres passaram a frequentar maciçamente os bancos universitários, a ponto de ser a maioria na população universitária em 2010 e reduzir substancialmente as diferenças entre profissões tipicamente masculinas e femininas. Interessava-nos reconstituir os mecanismos que explicam estas transformações. Felizmente, o Brasil é o que se chama de um “rich-data country”, isto é, há uma vasta massa de dados para download gratuito que permite fazer estudos deste tipo.

O Programa Bolsa Família é o programa mais abrangente de combate à miséria no Brasil e na América Latina e tem um impacto muito importante sobre a redução da extrema pobreza, mas não afeta a desigualdade de renda.

A senhora afirma que o Brasil passou por um processo de diminuição das desigualdades desde a redemocratização. É possível dimensionar essas mudanças?

Nosso livro mostra que a democracia pode produzir pacificamente mudanças significativas na desigualdade econômica e social, se focarmos nossa análise na base e no meio da pirâmide social, não apenas no topo da distribuição. Um conjunto muito sólido de evidências autoriza afirmar que a inclusão dos outsiders foi o principal mecanismo de redução das desigualdades do regime democrático contemporâneo.

O regime conservador de política social, adotado desde os anos 30, mas preservado pelo regime de democracia limitada (1946-64) e pelo regime militar (1964-85), produziu uma grande divisão entre insiders e outsiders. Protegia apenas os inseridos no mercado formal de trabalho, em um contexto de reduzido tamanho do setor industrial urbano e altas taxas de desemprego. O vínculo trabalhista era requisito para aposentadorias e serviços de saúde. A renda familiar tinha um grande efeito sobre o acesso à educação e às condições de moradia. Por um mecanismo de superposição de vantagens, os insiders acumulavam canais de acesso às políticas do Estado, direitos estes dos quais estavam excluídos os outsiders.

A inclusão dos outsiders tornou altamente provável a participação eleitoral dos cidadãos muito baixamente qualificados no mercado de trabalho, que eram outsiders. Além disto, a Constituição Federal de 1988 vinculou aposentadorias não-contributivas ao valor do salário mínimo bem como constitucionalizou os sistemas universais e gratuitos de saúde e educação. Grande parte da trajetória de redução da desigualdade está associada aos desdobramentos das decisões tomadas ainda na transição para a democracia. 

Que fatores contribuíram para as diminuições das desigualdades no país? Quais são os elementos fundamentais para esse processo?

Foi no contexto da transição para a democracia que as duas principais decisões de inclusão dos outsiders foram tomadas, decisões estas que tiveram impactos duradouros sobre a trajetória da desigualdade sob a democracia.

A extensão do direito de voto aos analfabetos, facultativa, foi aprovada na mesma emenda constitucional, nº 25/85, que regulamentou as regras eleitorais das futuras competições. Uma vez eliminada a barreira educacional, a participação eleitoral dos muito pobres, baixamente qualificados e precariamente inseridos no mercado de trabalho tornou-se altamente provável.

A segunda dimensão diz respeito à aprovação dos sistemas universais de saúde e educação e à vinculação das pensões ao valor de um salário mínimo nas deliberações da Assembleia Constituinte. O caráter progressista das decisões da Assembleia Constituinte de 1988, que incluiu inclusive a constitucionalização de arenas de participação extraparlamentar, é explicado pela intensa mobilização contra a desigualdade. Mas, esta mobilização não é condição suficiente para explicar a aprovação de medidas que contrariavam as preferências da maioria conservadora da Assembleia Constituinte. O uso estratégico das regras da arena parlamentar, acompanhado da grande visibilidade das deliberações favoráveis às medidas de inclusão, ainda nas fases de tramitação das propostas, foi decisivo para que estas medidas não fossem vetadas pela maioria conservadora no plenário que deliberou a aprovação do texto final da Constituição Federal de 1988.

Os outsiders são um capital político a ser explorado pela má política?

Os fatores que deram origem às políticas de inclusão dos outsiders não são os mesmos que explicam sua sobrevivência. Uma vez incluídos na arena eleitoral, os beneficiários das pensões e benefícios indexados ao salário mínimo e dos sistemas universais de saúde e educação representam um grande número de eleitores. A competição política por esta categoria de eleitores favorece, por sua vez, a contínua expansão dos benefícios. Entretanto, a viabilidade eleitoral da esquerda desempenha um papel importante na competição política pelos eleitores de mais baixa renda. Tal como em outros países da América Latina, no Brasil, foram os partidos de esquerda que politizaram a desigualdade. No Brasil, os partidos de esquerda foram mais bem sucedidos em mobilizar o eleitorado do piso da distribuição. O Partido dos Trabalhadores foi ao segundo turno em todas as eleições presidenciais a partir de 1989, tendo conquistado a Presidência da República em 2003.

A desigualdade resulta de um mecanismo de acumulação de vantagens pelo qual há indivíduos que têm acesso a todos os serviços públicos essenciais, ao passo que os outsiders acumulam desvantagens.

Qual o papel dos programas de combate à extrema pobreza na diminuição das desigualdades no país?

Nenhum. O Programa Bolsa Família é o programa mais abrangente de combate à miséria no Brasil e na América Latina e tem um impacto muito importante sobre a redução da extrema pobreza, mas não afeta a desigualdade de renda.

Onde ainda se concentram as maiores disparidades no país? Quais são os grupos com menor mobilidade social?

Protagonistas do movimento feminista e do movimento pelos direitos civis na década de 60, mulheres e pretos não tiveram, contudo, o mesmo sucesso em suas respectivas pautas de emancipação. A partir de 1970, as mulheres passaram a frequentar maciçamente os bancos universitários, a ponto de ser a maioria na população universitária em 2010 e reduzir substancialmente as diferenças entre profissões tipicamente masculinas e femininas. A taxa de fecundidade feminina caiu aceleradamente, pois o conjunto das mulheres adotou progressivamente o comportamento reprodutivo das mulheres altamente escolarizadas.

Ainda que pretos e pardos tenham paulatinamente ingressado na universidade nas últimas décadas, o fato é que, em 2010, os brancos ainda eram 75% da população universitária. Mais que isto, quando os não brancos entram no sistema de ensino superior, tendem a ingressar nas profissões de menor prestígio. Por consequência, a redução das desigualdades em relação aos não brancos dentro do sistema escolar permaneceu restrita ao nível de ensino em que o acesso tornou-se universal, isto é, no ensino fundamental. A entrada massiva das mulheres nos mundos escolar e do trabalho, contudo, não se traduziu em salários iguais. Mulheres e pretos ainda obtinham em 2010 menores rendimentos que os homens brancos, mesmo quando possuíam o mesmo nível de escolaridade.

No contexto de crise econômica atual do Brasil, é possível prever como ficará o cenário das desigualdades no país?

Nosso estudo mostra que as aposentadorias vinculadas ao salário mínimo foram muito importantes na queda da desigualdade de renda em contextos recessivos como o início dos anos 1990 e o ano de 2003. Mostra também que estes programas foram importantes para que os programas de estabilização monetária – como o Plano Real – também tivessem um impacto na queda da pobreza. Entretanto, como já disse, o Brasil mudou no que diz respeito aos níveis de escolaridade, à composição demográfica, que tenderiam, juntamente com os programas sociais, a amortecer os efeitos da crise econômica sobre a desigualdade. Por outro lado, dada a profundidade e a duração da crise econômica, é possível que estes efeitos amortecedores sejam limitados. Em suma, cientistas sociais têm que levar em conta tantas variáveis quando fazem previsões, que suas chances de acertar são usualmente muito pequenas.


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